quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Mãos de escritor


José Saramago faria, neste dia, oitenta e nove anos. Para recordar a data, e porque hoje Pilar del Rio recebeu as chaves da Casa dos Bicos onde se instalará a Fundação José Saramago, o Jornal de Letras dedicou parte da sua edição ao Nobel Português. Assim, nela encontramos uma entrevista com a presidenta (ai de quem lhe chame presidente!) da fundação, Pilar, e uma leitura do romance Claraboia por Maria Alzira Seixo, entre outros textos interessantes.

Como já devem ter percebido, gosto muito de José Saramago e acho que todos os dias são bons para se evocar este escritor brilhante. Polémicas à parte, importa admitir que ele foi a cereja no topo do bolo que foi o ano de 1998. Levou a nossa literatura até outras paragens e isso é sempre motivo de orgulho, principalmente porque a sua qualidade tem sido sempre reconhecida.

Embora nem sempre tenha concordado com as suas opiniões (aquela ideia da "Ibéria" era assustadora...), não raras vezes me revi em frases suas e me senti tocada por elas, pela sua agudeza. Sempre achei piada ao facto de fazermos anos no mesmo dia e perguntava-me se tamanha identificação não passaria por uma qualquer conjunção astral... Enfim, maluqueiras.

No dia em que morreu, vivi uma história que foi das mais estranhas que já experimentei. Soubera da morte dele um par de horas antes enquanto trabalhava numa livraria. Por volta das cinco da tarde entra na loja um senhor idoso que de tão parecido com o Saramago me fez dar um salto na cadeira onde estava sentada. Queria alguns títulos relacionados com Galileu Galilei, não me recordo de quais, mas sei que não os tinha por serem edições muito antigas. Enfim, começámos a conversar e eu devia estar de boca escancarada a olhar para ele, uma vez que as parecenças eram absolutamente inacreditáveis. Falou-me sobre o seu interesse na obra de Galileu e sobre o facto de muitos livros sobre os seus trabalhos estarem esgotados. Depois falou no facto de as pessoas não apreciarem a obra de alguns autores que deviam ser adorados e, nesse momento, falei-lhe de José Saramago, falecido naquele dia, que deixara Portugal devido à tacanhice e sacanice de uns tipos do Governo. Respondeu-me:

- Ah, o Saramago... Sabe, já me disseram muitas vezes que sou muito parecido com ele.

Desmancho-me:

- Olhe, eu não queria dizer nada... Mas o senhor é igualzinho a ele!

E eis que ele me conta esta história deliciosa para quem conhece a obra de Saramago:

- Sabe, menina? Eu conheci-o. Trabalhei muitos anos na embaixada de Espanha e por vezes faziam lá recepções em que ele era convidado. Um dia ele chegou e ao entrar passou por mim. Voltou atrás, parou, olhou-me de alto a baixo, mas não disse nada. Depois seguiu e foi à vida dele.

Não pude deixar de rir e de partilhar com o senhor o meu pensamento louco:

- Sabe que ele escreveu um livro chamado O Homem Duplicado. Sabe-se lá se...

Sabe-se lá e nunca o saberei, mas gostei de imaginar que tinha na minha frente a inspiração para um dos livros do meu autor português preferido. Ainda hoje acho que foi uma coincidência incrível ter tido na minha frente, no dia da sua morte, um homem que era na altura, na magreza, nas marcas de velhice, na voz, na calma com que falava e nos traços do rosto, quase idêntico a Saramago. Digo quase porque o reconheci diferente do escritor numa coisa, num pormenor a que prestei atenção: nas mãos. As deste homem eram de pele branca, pouco maltratadas pelo tempo, ainda que ele passasse já dos oitenta anos. Todavia, as de Saramago eram velhas, enrugadas e com manchas. Sei disso porque lhe vi de perto as mãos algumas vezes, enquanto me autografava os livros. Eram, agora que recordo toda a história e que penso nisso, as mãos de quem escreveu tudo o que pôde; mãos cansadas de quem, através delas, contou universos inteiros.

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