terça-feira, 8 de novembro de 2011

Coisas preferidas III



«Não tenhamos pressa, mas não percamos tempo.»
                                                                               José Saramago


A minha estante de "Saramagos" está completa. Tenho todas as obras dele (algumas autografadas), umas quantas biografias, o volume de cartas a José Rodrigues Miguéis, uma cronobiografia, o volume da Camões que saiu quando ele ganhou o Nobel, os jornais e suplementos extra publicados quando morreu, os livros de crítica, uma agenda dedicada ao senhor e mais umas quantas coisitas. É o autor português que mais me aquece o coração e a cada vez que acabo um livro dele, lamento ser menos um que terei para ler pela primeira vez.

Devo, contudo, admitir que em tempos fui uma daquelas preconceituosas que, sem ainda ter lido nada escrito por ele, afirmei asininamente que ele não sabia escrever e que não usava pontuação. Felizmente a adolescência é uma fase passageira e os chicotes são bons para nos penitenciarmos.

Agora sou uma apaixonada. Acho deliciosa a veia de contador de histórias que tinha; a capacidade de fazer falar vozinhas dentro da nossa cabeça, que se fazem ouvir precisamente porque ele escreve com uma pontuação que procura assemelhar-se à oralidade; a capacidade de fazer de figuras com grande potencial para serem desinteressantes (como o Sr. José de Todos os Nomes) verdadeiros heróis. Adoro o modo como aquele escritor se fez a si próprio, saltando por cima de uma formação académica que não pôde ter e como afirmava, no meio dos mais sábios, que havia dormido ao relento quando criança e que o homem mais sábio que conhecera fora analfabeto. Claro que o facto de o fazer enquanto recebia o maior prémio que a Literatura pode receber também demonstra um orgulho enorme e pretendia fazer com que quem o ouvisse o admirasse ainda mais por, tendo tão humildes raízes, ter subido às estrelas.

O livro Todos os Nomes é até agora o meu preferido. Aquela busca que, como diria Camões, «nasce não sei onde / vem não sei como e dói não sei porquê» cativa-me porque me leva a pensar que mesmo no meio da maior solidão eu posso fazer falta. Ainda que o desconheça, ainda que isso não atenue a minha dor, talvez alguém me busque e não me encontre. Talvez eu seja alguma coisa para alguém. Aquele Sr. José, tão desinteressante e de vida tão frouxa, funcionário da Conservatória do Registo Civil de um qualquer lugar, coleccionador de informações sobre figuras famosas, um dia tropeça no verbete de uma desconhecida e não consegue deixar de procurar essa mulher. Que fascínio exerce aquela estranha de quem pouco mais sabe para além do nome e das datas em que nasceu e em que casou! E o nome dela (que não chegamos a saber qual seja, o que, num livro com um título como o que tem, chega a ser irónico) é o suficiente para o fazer ultrapassar muitas barreiras que ele, apagado homem de meia idade, nunca pensara ter de superar. Valeu a pena? Conseguiu encontrar a mulher? Que importa isso? O que interessa é a busca e o sopro de vida que ela constitui para um homem que vivia meio morto todos os dias.

Leio lentamente os livros dele porque sei que já cá não está para escrever mais e porque, que se saiba, não deixou nenhuma arca cheia de tesouros prontinhos para o prelo. Às vezes penso que com esta lentidão, se calha de eu me finar antes de ler a obra toda, quem acaba a perder sou eu e a estante, tão compostinha como está na foto, fica para a posteridade como sendo a da rapariga tonta que achou que teria todo o tempo do mundo para ler tudo o que vale a pena.


3 comentários:

  1. Cousa más hermosa: os Saramagos todos enfileirados. Veja lá se me oferece um... O Ano da Morte de Ricardo Reis, por exemplo!

    Com amizade,
    Filho

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  2. Gosto muito de ler mas confesso que Saramago ainda não faz parte do rol de autores já lidos e muitas vezes devorados. Tenho praticamente todos em casa e apesar de já ter folheado o primeiro capítulo de alguns nunca senti grande atracção por continuar nenhum deles, com grande pena minha. Sinto como uma grande falha literária, e um dia destes vou voltar à carga e forçar-me a ler um...
    Alguma sugestão para Saramagoiniciantes??

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  3. Miss Pipetas, a minha sugestão para iniciar Saramago é mesmo o Todos os Nomes. Eu comecei por ler o Memorial do Convento, não para a escola, mas porque o título me parecia muito apelativo. E depois, era na altura em que a Caminho publicava Saramago com aquelas capas beges sem qualquer resumo em lado nenhum. Ou seja: querias saber do que tratava a obra, pois só mesmo lendo! Depois li o Todos os Nomes e se já tinha admirado o Memorial, com este fiquei completamente rendida. Pela aparente simplicidade da história que, contudo, tem tanto significado, e pela aventura protagonizada por aquele homem pacato que é o Sr. José, é um livro que se devora e me enche as medidas. Um nome, um simples nome (que não chegas a saber qual é), faz aquela pessoa sair da sua zona de conforto e acho que isso só por si já é um ponto de partida extraordinário para uma história. Quando o leres, diz-me a tua opinião. Boa leitura! :)

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