(ilustração do capítulo VI de D. Quixote de la Mancha,
no qual o cura, o barbeiro, a ama e a sobrinha queimam os livros de Alonso Quijano)
Sou uma criatura de amores e ódios. Amo os clássicos da literatura moderna, mas odeio o lixo light e de auto-ajuda que hoje em dia enche os tops das livrarias desta vida. E ainda consigo detestar mais as frases profundíssimas (not) que algumas almas retiram desse lixo e espalham em mensagens escritas enviadas em cadeia ou que pespegam nos murais do Facebook.
Hoje em dia existem livros que, se realmente servissem para alguma coisa, já teriam conseguido fazer com que fôssemos criaturas perfeitas, sem colestrol, podres de ricas, com a melhor das memórias e com uma esperança média de vida de pelo menos mil e duzentos anos. Pois lamento informar que não somos nada disto, o que me leva a crer que tais leituras são uma profunda perda de tempo e de dinheiro. Ainda assim, são textos que cativam, sabe Deus como, muitas e muitas pessoas, que acreditam que poderão realmente ser melhores com os ensinamentos deste ou daquele autor. Não compreendo: pois se estou desempregada vou gastar dinheiro num livro que alegadamente tem o segredo de me tornar rica? Isto não cheira a esturro? Se isto fosse assim tão limpinho, não seríamos todos Tios Patinhas a acender charutos com notas de cem euros?
A questão é que muitos acreditam. Todos os meses vejo os livros que estão nos tops das grandes livrarias portuguesas e arrepio-me. Ele é miúdos que vão ao céu e voltam, ele é ser feliz em dez passos, ele é aprender a ouvir o meu «eu» interior (seja lá quem esse senhor for...): é todo um mundo de aberrações que convencem quem precisa de ser convencido de qualquer coisa, mas que, espremida a laranja, não tem qualquer sumo. Quem ensinou os autores destes textos a viver de uma forma mais perfeita e cheia de significado do que a dos restantes mortais para eles se tornarem professores de um modo de vida que os leitores nem conseguem provar que existe realmente? Como é que a senhora A ou o senhor B podem tomar a liberdade de dizer que andamos todos a viver mal e que eles é que sabem porque viram a luz? Uns viram Deus, os outros descobriram a pólvora numa peregrinação pelo mundo enquanto enfardavam que nem gente grande em Itália, outros descobrem o poder da meditação. O que têm eles em comum? O conhecimento de que os livros, pouco ou muito, ainda rendem dinheiro e de que há editoras que adoram esse tipo de assuntos pelo simples facto de que existe público para estes textos. Nos entretantos há quem não saiba quem foi Aquilino Ribeiro ou Miguel Torga. E é isto o que temos.
Quando leio uma frase pseudoprofunda arrepio-me. O que quer aquilo dizer? Eu própria consigo inventar frases dessas sem grande esforço... mas também sem qualquer significado. Querem ver? Ora: «Às vezes basta um sorriso para percebermos a importância da nossa vida.» Uoooooooou! Estou siderada! Agora a minha vida faz todo o sentido. Obrigada, profundidade do meu ser, por me teres mostrado a luz! Agora sim sei o que ando a fazer neste mundo.
Não, não sei porque estou constantemente a aprender e, muito sinceramente, não passo os meus dias a pensar nisso. E também não vou comprar nenhum livro que me ajude a conhecer-me porque isso tem tanta serventia quanto dar murros na ponta de uma faca. Tiro as minhas próprias lições das minhas próprias vivências e do que me rodeia: não pago a ninguém para me ensinar a viver e muito menos serei a mensageira das frases pretensamente profundas que outros produzem.
Note-se que cada um lê o que quer. Se os livros de auto-ajuda vos fazem feliz, força. Mas esta é a minha opinião: a de que vale mais passar uma boa tarde enrolada num cobertor e entregue a um clássico que sobreviveu a centenas de anos e ao julgamento de inúmeros leitores, do que ler durante cinco minutos uma página em que alguém (que eu nem sei quem seja) me tenta meter na cabeça que ando a fazer tudo mal e que me vai ajudar a encontrar o meu caminho.
Caso se perguntem por que razão coloquei aquela ilustração de uma edição do Quixote neste texto, a resposta é simples: é que o que os amigos de D. Quixote fazem aos livros era o que eu adorava fazer ao lixo que enche as prateleiras da livrarias (uma fogueirinha no quintal e os ditos livros a voarem pela janela direitinhos para o fogo).
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