segunda-feira, 19 de março de 2018

Um beijo adiado

Acreditamos nos beijos como garantidos. Até ao dia em que percebemos pela dura realidade que nem sempre os beijos são assim tão possíveis e garantidos como pensávamos. Depois apetecem-nos, mas não podemos dá-los e isso dói. É tão simples, tão pequeno, mas dói.

Passei as últimas semanas a pensar nesta «quixotada». Entendam-me: pensava pouco nela, porque havia (e há) muito mais a encher-me a cabeça e os dias, mas mesmo assim pensava. Quem tem um blogue como este, pequenino e onde parece que já nos conhecemos todos, acaba por sentir uma certa obrigação para com quem simpaticamente o segue. Desaparecer de repente é feio, mas, acreditem, não me foi possível agir de outra forma nos últimos tempos. De um dia para o outro - literalmente - a vida mudou e ainda estou no meio dessa mudança a tentar perceber qual é o rumo das coisas. Contudo, mesmo achando que só escreveria este texto daqui a umas semanas, hoje é Dia do Pai e acho que é a melhor data para deixar aqui um pedaço de uma história que é muito maior do que a que escreverei. Acreditem: há turbilhões que não cabem em palavras nenhumas. E, sobretudo, há sentimentos que são intraduzíveis, incapazes de se verem vertidos em frases, por bonitas que sejam. 

Hoje, o meu beijo ao meu pai ficou adiado porque há duas semanas recebi, no mesmo dia e com seis horas de diferença entre um e outro, dois telefonemas inesquecíveis. Acho que nunca o disse aqui, mas o meu pai estava doente há cerca de um ano e vinha a piorar consideravelmente desde Novembro de 2017. Uma patologia no fígado trazia a certeza de que só um transplante poderia resolver a situação. Mas desengane-se quem pensa que a entrada na lista de espera de um órgão é coisa rápida. São precisos muitos exames, muitas consultas, é tudo muito difícil e demorado, especialmente quando vemos o nosso familiar enfraquecer de dia para dia, desaparecer aos poucos à nossa frente. Eu via o meu pai sofrer cada vez mais de dia para dia. Via-o a emagrecer, a não conseguir comer, sabia que durante a noite mal dormia... Enfim, sabia que era preciso um milagre ou acabaria por correr tudo muito mal. Como devem imaginar, isto é muito doloroso. Assistir à fragilização de um familiar tão próximo é um constante murro no estômago. A dor é mesmo essa: um nó no estômago que não sai. Senti-a várias vezes, particularmente quando chegavam más notícias, e foram várias.

Há duas semanas recebi, como dizia, um telefonema a informar-me de que o meu pai entrara finalmente na lista de espera para um transplante hepático. Forneci todos os números de telefone da família para garantir que alguém ouviria o telefone quando fosse mesmo preciso. Ficámos todos muito felizes porque, finalmente, o tempo ia passar com um sentido: a espera pela mudança. Até então os dias passavam só para o vermos piorar. Daí em diante, cada hora passada seria menos uma até à chegada de um fígado compatível.

No mesmo dia, seis horas depois, recebi uma chamada da médica do meu pai a dizer que havia um fígado compatível. Aceitámos imediatamente o órgão (sim, é possível rejeitar) e ficámos a aguardar a chamada do hospital para levarmos o meu pai. No dia seguinte, às seis e meia da tarde, levámo-no para ser internado e às nove e cinquenta da noite desceu para o bloco operatório. 

Na manhã seguinte, contactei o hospital e soube que a cirurgia tinha corrido bem e que ele estava estável. Pudemos visitá-lo nos Cuidados Intensivos nessa mesma tarde. Não consigo explicar-vos a mudança transformada nele apenas umas horas depois da operação. O meu pai estava de volta. Inchado, ainda baralhado pela anestesia, conseguia mesmo assim parecer-se mais com o meu pai antes de adoecer do que com a pessoa doente que deixáramos no hospital no dia anterior.

Depois a recuperação foi decorrendo lentamente. Tenho ido vê-lo todos os dias e é extraordinário perceber o que a mudança de um órgão traz à vida de uma pessoa. Já o vi andar, que era coisa que já praticamente não fazia antes do transplante. É uma alegria indescritível ver voltar à vida uma pessoa que nos é tão querida e que esteve tão doente. Mas, claro, não podia ser tudo assim tão simples e, no início da semana passada, o meu pai voltou aos Cuidados Intensivos devido a uma infecção. Como sabem, a imunidade de um transplantado é muito baixa e uma infecção é um pesadelo para o próprio e para a família. Voltou o murro no estômago, o nó na garganta, o pânico. Nem sei como explicar tudo. Entre a Fé de que tudo vai correr bem, aparece o medo de que tudo corra mal. Não é medo: é um terror contra o qual nada mais podemos fazer a não ser fingir perante ele que está tudo bem. Chora-se depois, chora-se em casa, chora-se longe dele porque enquanto estamos ao seu lado temos de sorrir. É difícil, custa mesmo muito, mas, acreditem, há muita, muita gente a passar por isto. No hospital, cruzam-se as mesmas caras diariamente. Já perguntamos uns pelos outros e é uma espécie de microcosmos triste que encontra assim uma pequenina forma de aparentar normalidade. Aliás, para a minha família e a dos outros doentes, aquela é a normalidade possível. É e será a nossa vida durante algum tempo.

Neste momento ele está estável, mas o beijo do Dia do Pai e todos os outros estão adiados. Não podemos arriscar mais infecções e, presentemente, todos somos um perigo para pacientes como o meu pai. Por muito que desinfectemos as mãos e que usemos máscara, quem vive um transplante tem de viver uma fase em que a imunidade quase não existe e isso significa que todo o cuidado é pouco. Por isso, para o bem dele, o beijo ficou por dar. Afinal, parece que há momentos em que não dar um beijo é um enorme acto de amor. Todavia, agora há a esperança de que pela frente existam muitos mais Dias do Pai, muitos mais dias de tudo e de nada para poder tê-lo por perto. Tempos houve em que temi que o tempo estivesse a esgotar-se. Agora sei que, sendo ainda tudo muito incerto, pelo menos há já uma esperança mais evidente de que tudo corra bem. O beijo pode esperar. Estará guardado para ele. Estará SEMPRE à espera dele.

Nota: Desculpem-me todos os que se preocuparam com o meu silêncio, mas não conseguia escrever-vos. O tempo é pouco e era ainda tudo muito incerto. Não é que tudo esteja já ultrapassado, mas pelo menos as coisas estão a correr bem e esta data é tão simbólica que acabou por ser o dia certo para partilhar isto convosco. Ficam muitos pormenores de fora, mas com o tempo, quando tudo passar e ele estiver bem e em casa, poderei respirar de alívio e escrever mais sobre isto. Também me fará bem.


sábado, 17 de março de 2018

Queridos leitores do “Quixotadas”

Passo rapidamente por aqui hoje para dizer-vos que o blogue não terminou e que ainda está para durar. Está, sim, a fazer uma pausa por motivos que brevemente vos explicarei. Não tenho vindo cá, mas não é por não ter o que partilhar convosco. Pelo contrário: tenho bastante para dizer-vos, no entanto têm-me faltado o tempo e a cabeça para alinhar ideias e frases com jeito. 

Espero regressar brevemente e retomar o ritmo. Mas, até lá, fica a garantia: o blogue “As Minhas Quixotadas” vive e está para durar. Só precisou mesmo de parar e de respirar fundo. Às vezes tem mesmo de ser, mas depois a força com que se volta é renovada. Contar-vos-ei tudo muito em breve. E espero ter-vos ainda desse lado nessa altura. 

Obrigada pela vossa paciência. 

quinta-feira, 1 de março de 2018