terça-feira, 30 de abril de 2019

Histórias de Nova Iorque - o balanço

Terminei ontem a leitura deste livro, pertencente à colecção de textos de viagens da Tinta da China. O autor, Enric González, é jornalista e no início do milénio esteve em Nova Iorque como correspondente do El Pais

O livro aborda temas tão diferentes quanto as origens da cidade, a loucura que é arrendar por lá uma casa sem declarar falência, a adoração que os nova-iorquinos têm por beisebol (e as peculiaridades de alguns dos mais conhecidos jogadores dos Yankees e dos Mets), a máfia da cidade e as suas personagens, os bifes e a sua ciência, os diferentes bairros da cidade, os homens ricos que criaram grandes impérios que ainda hoje rendem muitos milhões e, claro, aquela data inesquecível que nunca mais se separará da cidade: o 11 de Setembro. 

É um livro pouco extenso, lê-se rapidamente. Além disso, o autor tem um humor imenso e sabe rir-se dos desastres que lhe vão acontecendo na cidade, quer seja na odisseia desmedida para conseguir um tecto sob o qual viver, quer seja perante uma perseguição policial enquanto se encontra carregado com as compras feitas no supermercado. Têm um olhar jornalístico inequívoco e, assim, consegue olhar para Nova Iorque sem ficar preso aos elementos mais conhecidos. Pelo contrário, consegue olhar além do óbvio e descobrir beleza em aspectos muito pequenos da cidade. Sendo estrangeiro, consegue ainda olhar de fora e aperceber-se mais facilmente das peculiaridades que fazem de Nova Iorque uma daquelas cidades que nos atrai e repele. Atrai porque nos entra em casa pelos filmes, porque sentimos que a conhecemos desde sempre, porque gostaríamos de ver ao vivo aqueles arranha-céus, o Ground Zero ou a Estátua da Liberdade. Repele porque temos ideias prévias relacionadas com a criminalidade em bairros como o Bronx e outros, porque tememos ser engolidos pela velocidade a se vive por ali e por muitas outras razões. 

Seja como for, fechamos o livro confirmando a sensação criada, provavelmente, pelos inúmeros filmes que mostram Nova Iorque: aquela não é uma cidade como as outras. Tem uma identidade muito própria e acredito que quem lá vai deseje regressar. Como o autor deste livro. Nova Iorque, os seus sons, as suas luzes ficam na memória, exercendo encanto como as sereias de Ulisses. Livros como este servem para provocar a vontade. Servem, diria eu, para acrescentar um novo lugar à lista de destinos a conhecer. E servem para entreter os que não podem partir e a quem resta viajar à roda do quarto, vendo o mundo pelas páginas de um livro. 

segunda-feira, 29 de abril de 2019

Diário de Madame Pochita I

Aqui onde me vedes, luto contra a minha manta azul que acabou de engolir uma das minhas 5835 bolas de ténis. E não a cospe! Ah, mas eu não desisto! Não desisto de recuperar a minha bolinha e não desisto de tentar deixar a minha dona sem um chinelo. Se tem dois, por que motivo não posso ficar com um?! E eu que até tenho quatro patas. Oh vida injusta!

sexta-feira, 26 de abril de 2019

Pelo Latim: habemus grammaticam!

Esta quixotada podia perfeitamente pertencer ao grupo «A Menina Sugere Isto», mas falando-se aqui de uma gramática de latim, língua que poucos chegam a aprender, achei que podia fazer isto de forma diferente. 

Como penso que já disse aqui no blogue, sou, de acordo com o meu diploma, professora de português e de latim. No entanto, nunca dei aulas de latim fora do estágio. Tive a oportunidade de o fazer, mas não quis aceitar a oferta por uma razão muito simples: não viria a ser boa professora. Deixo essa tarefa para quem domina a língua melhor do que eu. Fiquei-me pelo português já que ensiná-lo era mesmo o meu sonho.

Contudo, aprendi latim na faculdade e dou-lhe até maior valor hoje do que dava na altura. Foi soberbo para perceber melhor a nossa língua, para compreender de onde vinham as palavras e que caminho haveriam de percorrer até chegarem a ser as que hoje usamos. Foi uma aprendizagem importante para mim e acredito que faz muita falta aos nossos alunos. Tenho a certeza de que a nossa gramática seria mais fácil de aprender se também passassem pelo conhecimento da gramática latina. No entanto, a lógica do útil e do inútil e do imediatamente utilizável foi-se sobrepondo e Portugal deixou morrer o ensino do latim nas escolas. Aqui e ali ainda se aprende, sobretudo nos colégios privados, mas a maior parte das escolas desistiu da oferta da língua latina. 

Porque é uma língua morta, porque não dá dinheiro, porque não garante acesso a postos de trabalho: as razões foram imensas e todas presididas por uma enorme ignorância. O latim está-nos no sangue, na história e quem manda optou pelo esquecimento. Louvo os colégios que insistem no seu ensino, que o têm inclusivamente como disciplina obrigatória, que percebem que o português se aprende melhor se a base latina estiver lá. Eu, como disse, não daria uma boa professora de latim, mas nem por um segundo lhe retiro a importância que tem. E não deixo de lamentar o esquecimento a que tem sido sujeito. É mais estudado, lido e ensinado em países de língua não românica, como a Alemanha, do que em Portugal. E hoje, com a autonomia das escolas, até seria mais fácil inclui-lo nos curricula. Felizmente, ainda existe quem a ele dedique a vida: a estudá-lo e a ensiná-lo.

Por isso mesmo, porque tenho o privilégio de conhecer alguém que se apaixonou pelas línguas e literaturas clássicas e que tem a elas dedicado o seu tempo, aproveitei para deixar no blogue um testemunho muito mais rico do que o meu no que à importância do latim diz respeito. 

Gabriel Silva é professor de latim desde 2010, se não me falha a memória. Fez o seu mestrado e o doutoramento na área das línguas e literaturas clássicas. Continua a traduzir e a investigar (porque este mundo não tem fim e são poucos os que labutam nele), mas também a ensinar latim a crianças e jovens do ensino básico e secundário. Pedi-lhe para escrever um pequeno texto sobre a língua dos romanos e ele acedeu. Aí vão as suas palavras.

«Olavo Bilac (o poeta brasileiro, não o cantor) disse, em tempos, que a língua portuguesa é a última flor do Lácio. O Português é, sim, uma das flores que o Lácio deu ao mundo. Que todos sabemos que o Latim é a base principal do nosso idioma, não duvido. Mas até que ponto utilizamos palavras de todos os dias sem conhecermos um pouco da sua história? Saberemos nós que quando estamos a considerar uma coisa, de certo modo estamos com o olhar posto nas estrelas? Teremos noção de que o verbo pular está relacionado com frangos? O Latim tem muitas utilidades. Passar um raio-x em boa parte da língua portuguesa é apenas uma delas. Poderia agora elencar os mil benefícios de aprender Latim: ajuda na gramática, dá uma maior sensibilidade para o Português e outras línguas românicas, abre portas para um mundo imenso de literatura..., mas já consigo ouvir um coro que se levanta contra o ensino/aprendizagem da língua do Lácio. Os argumentos são os habituais: já não se usa, não tem utilidade, não dá dinheiro, não gera emprego... Mas agora pergunto eu: e não é bom conhecer/saber uma coisa apenas porque sim, pelo simples gozo de aprender e de saber? Estou longe de imaginar (quanto mais de querer!) que toda a gente se torne latinista, mas não é tão bom aprender uma coisa nova? Eu não sei tocar nenhum instrumento musical, mas gostava apenas porque sim, porque é agradável aprender, e é mais um meio de olear a nossa maquinaria mental. Sabem que mais? A ignorância é atrevida.»

E já que falamos tanto de latim... Frederico Lourenço tem sido responsável por traduções de textos clássicos e por adaptações dos mesmos aos mais novos. Tem feito um trabalho imenso na área. Na Quetzal, publicou recentemente esta Nova Gramática do Latim.

Wook.pt - Nova Gramática do Latim

Já a tenho e está estupenda. Além de que era difícil aos alunos de latim encontrarem uma boa gramática (o velhinho Compêndio já não era fácil de encontrar), é bom ver sair estes títulos que dão novo fôlego e chamam a atenção para esta «língua morta» (linda expressão). Não deve haver aluno de Letras que não vá a correr para esta gramática, mas seria bom que outros se sentissem tentados a aprender um pouco mais sobre esta língua. Por extensão, saberão mais de português. E isso é sempre bom.

Por isso, se tiverem curiosidade, se quiserem tentar perceber o que ainda existe de latim no nosso português, fica esta sugestão. É um livro bonito, bem feito e com um conteúdo importantíssimo para os falantes de português. E, nunca se sabe, pode ser que nasça assim a vontade de saber mais. Até porque essa deve manter-se sempre. 

Nota: A imagem saiu da página da Wook.

quinta-feira, 18 de abril de 2019

A Menina Quer Isto CXV

Wook.pt - Kentukis

Nunca li nada desta autora e confesso que nunca havia ouvido falar dela. Mas hoje li esta crítica no Observador e fiquei muito curiosa relativamente a este romance que trata de um presente meio futurista, no qual humanos adquirem por alguns dólares um peluche que lhes fará companhia, sendo remotamente comandado por um outro humano. O leitor acompanha ao longo de mais de duzentas páginas as relações de várias personagens com estes Kentukis, os bonequinhos japoneses que viverão com elas e que nunca poderão ser desligados. No fundo, parece-me haver aqui a questão da solidão dos nossos tempos, mas também do modo como a tecnologia entra na nossa vida com grande pompa e circunstância. Abrimos-lhe a porta com gosto e deixamo-la aberta até ao dia em que percebemos que essa mesma tecnologia está a arruinar-nos, como parece suceder a alguns dos donos de Kentukis. É tudo muito bom e bonito até ao dia em que se percebe que aquele boneco, aquela companhia simpática tem alguém por trás dela e é mais prejudicial do que benéfica.

Fiquei muito curiosa com esta história. Acho que vou acrescentar este título à lista de desejos para a Feira do Livro de Lisboa, que começa no final de Maio. Se entretanto algum dos três leitores desta casa passar os olhos por este romance, manifeste-se, por favor. Gostava de saber o que pensam sobre tal história.

Nota: A imagem saiu daqui.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Os novos Velhos do Restelo

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Todos ficámos de coração apertado ao ver um monumento com séculos de História ser devorado pelo fogo. A queda daquele pináculo foi um murro no estômago para toda a Europa e, claro, sobretudo para França. Todos sabemos que o que ali estava tinha um valor incomensurável e que cada centímetro ardido era uma perda inestimável. Acho que nunca tinha assistido a uma reação de choque tão profundo perante a destruição de um monumento (e recordem-se que, infelizmente, nos últimos anos vimos muitos serem deliberadamente arrasados por fanáticos religiosos). Creio que entrou também em campo a questão da proximidade e do simbolismo. Mesmo sem termos visitado a Catedral de Notre Dame, ela estava próxima, aqui no nosso continente, e era um símbolo do seu país. Muitos recordaram o célebre corcunda, fosse o de Victor Hugo ou o da versão da Disney: todos ficámos suspensos das notícias que chegavam e reduzidos à nossa insignificância perante um fogo que devorou séculos de História, toneladas de cultura.

O Presidente Macron fez nessa mesma noite uma comunicação ao país apelando à união de esforços para a reconstrução da catedral. Salvaguardada a estrutura, torna-se possível falar em reconstrução. Imediatamente alguns milionários doaram avultadas quantias para que a catedral volte a erguer-se. E, quando as notícias dessas doações chegaram à internet, ergueram-se também os Velhos do Restelo que por lá andam adormecidos (mas só até à oportunidade seguinte para reclamar com o mundo).

Os Velhos do Restelo do Facebook (a única rede social que sigo) começaram a fazer circular textos sobre a pouca vergonha que é arder um monumento e aparecerem logo milhões para a sua reconstrução, havendo fome em África sem que alguém se preocupe com isso. Alguns apressaram-se, inclusivamente, a justapor duas imagens: em cima a catedral em chamas e em baixo umas cinco crianças em situação de fome extrema. Nem preciso de falar na quantidade de likes que estas publicações que vi conseguiram em pouco tempo. Acho que podem imaginar.

Também encontrei comentários às notícias sobre as doações que podiam ter sido proferidos pelo Velho do Restelo camoniano. De repente, estes combatentes da fome no mundo saíram dos seus casulos e revelaram indignação por, aparentemente, se ajudar mais depressa a reerguer paredes antigas do que a matar a fome a crianças que necessitam de auxílio imediato. Mais likes. E, como a estupidez funciona por osmose, mais comentários do mesmo género por ali fora.

Claro que todos gostaríamos que o mundo não tivesse problemas. Claro que fome, guerra e pobreza são coisas que gostaríamos de eliminar, ninguém põe isso em causa. E acredito que diariamente haja quem tente minimizar a dor dos que sofrem e quem tente resolver os problemas que conduziram aos conflitos ou à fome. Porém, não podemos esperar que todo o dinheiro que existe seja canalizado para esses problemas. Reerguer uma catedral que faz parte da nossa História, que é um elemento cultural da maior importância não significa que não nos preocupamos com outros problemas e que nada fazemos para acabar com eles. É como quando alguém ajuda uma instituição de animais e vêm logo estes indignados de serviço dizer que é uma vergonha estar a dar dinheiro a cães e gatos com tantas crianças a passarem mal. São incapazes de perceber que é possível olhar para os dois lados, que é possível tentar resolver diferentes problemas. E são ainda mais quadrados para compreender que, infelizmente, alguns problemas não se resolvem simplesmente mandando dinheiro para os locais onde existe fome. Por vezes, há questões políticas na base dessas dificuldades que impedem inclusivamente que façamos mais por aquelas pessoas (basta pensar no que se passa na Venezuela e no que aconteceu à ajuda humanitária que para lá se enviou, impedida de entrar pelo próprio governo). Além disso, são extremamente injustos quando até vemos que as pessoas se mobilizam para ajudar quando a isso são chamadas. 

Estas pessoas também não devem ter noção de que há paredes de pedra («cimento», como um iluminado chegou a dizer) que dizem mais sobre nós do que mil páginas de internet, do que qualquer rede social. Paredes pelas quais se tem afecto e que se desejam de pé, não no meio de cinza e escombros a existir apenas na memória. Estas pessoas encontrarão sempre o que criticar e se calhar até são as mesmas que nem contribuem para recolhas de alimentos porque «há sempre quem se aproveite sem precisar» ou porque «a mim ninguém me ajuda». No fundo, tais criaturas encontrarão sempre motivo para a indignação e espalharão na internet questões que não existem e aspectos que não colidem. Doar dinheiro para reerguer um símbolo de França não exclui que se faça mais por um mundo melhor. E muitos praticam o bem sem querer publicidade sobre isso. Muitos doam sem desejar que isso se saiba. Quantos gostariam de fazer mais e não podem porque as questões políticas não o permitem?

Mas isso já obriga a pensar, a ler, a ver noticiários e os indignados não têm tempo para essas coisas. Eles servem para apontar as injustiças sociais, mesmo que tais acusações sejam, elas próprias, injustas. No fundo, acho que falam para não estarem calados. São estes Velhos do Restelo que geram e embarcam em populismos, que abrem as portas a ideias demagogas, vazias e perigosas. Tudo porque são mal-informados com a mania de que sabem muito; porque são pessoas que não enxergam além do óbvio e que ficam pela rama; porque são incapazes de pensar sobre um assunto e de resistir ao imediatismo das redes sociais, ao gozo bacoco de ter likes e gente a apoiar as suas palavras. São pessoas que vêem uma catedral com centenas de anos a arder e não entendem sequer o que estão a ver. Estes Velhos do Restelo, estes indignados, estas pessoas que sofrem de quixotismo inerte são um perigo. E são, para mim, dignos de dó.

segunda-feira, 15 de abril de 2019

A Menina Sugere Isto XXXIX

Wook.pt - Sabrina

Sabrina é o título de uma novela gráfica que reflecte em boa medida os tempos loucos que vivemos. Nesta história de Nick Drnaso, uma rapariga desaparece e, ao contrário do que poderíamos esperar, o leitor não encontra a busca por essa personagem, mas sim as repercussões que o desaparecimento teve na vida de quem a rodeava, sobretudo a irmã, o namorado e um amigo dele. Não é que não importe saber o que aconteceu a Sabrina: interessa-nos e sabê-lo-emos a seu tempo, contudo, mais do que a história de quem desaparece, nesta novela gráfica destaca-se a história dos que ficam e que, além da dor, têm de lidar com os outros e com um mundo onde as teorias se espalham muito rapidamente, sem ter em conta sentimentos alheios ou o respeito pelo próximo.

Aquilo a que frequentemente assistimos na nossa vida quando abrimos o Facebook e encontramos as mais disparatadas teorias e opiniões sobre determinados acontecimentos (lembrar-me-ei sempre da opinião de uma senhora que considerava culpada a mãe do menino espanhol que caiu num buraco no início deste ano apenas porque... nunca a viu chorar) está neste livro. E o que é curioso é que, ao lê-lo, me senti minúscula: o que sou, o que somos estava ali. Uma personagem desaparece e o mundo dos que faziam parte da sua vida fica de pernas para o ar. Porém, esse medo e essa dor são completamente estraçalhados pela opinião pública e pelas muitas teorias da conspiração veiculadas através de redes sociais, da rádio e de outros meios de comunicação. Todos têm uma explicação para o que aconteceu a Sabrina, todos conseguem explicar o que lhe aconteceu REALMENTE, mesmo quando já existe uma resposta verdadeira e comprovada. Ainda assim, as pessoas continuam a sentir-se livres para emitirem opiniões cruéis, infundadas, acusatórias e profundamente dolorosas para os familiares da personagem desaparecida. Pouco importa o sofrimento deles, não interessa se vão magoá-los ainda mais. O que as pessoas querem é fazer-se ouvir, mostrar que pensaram sobre o assunto e que vêem mais longe do que os outros, dar a entender que não se deixam enganar por nada nem ninguém. 

Sabrina desaparece. E, de facto, após as primeiras páginas Sabrina desaparece mesmo do livro. Saberemos o que lhe aconteceu, mas não a voltaremos encontrar como nas primeiras vinhetas, sendo uma rapariga com uma vida normal e pessoas que a amam. Para o autor, mais importante do que a história de um desaparecimento é a história dos que ficam e têm de lidar com os destroços. Com a angústia de não saber o que aconteceu e com a dor de lidar com aquilo que entretanto sabem ter acontecido. E mais: que têm de saber lidar com as teorias de quem não conheceu nenhum dos intervenientes, mas que mesmo assim não tem qualquer pudor em levantar dedos acusadores, transformando em menos que miseráveis as vidas de familiares e amigos da vítima. Tudo isto é tão real, tão próprio dos nossos tempos que terminamos a leitura boquiabertos com a pertinência da história. Mas, sobretudo, fechamos o livro embaraçados com as opiniões escusadas que já emitimos; com os dedos que também já apontámos e que aumentaram em muito uma dor que já existia; com as teorias da conspiração que desenvolvemos e com o orgulho que sentimos por considerarmos que nós é que sabíamos a verdade e que ninguém era capaz de nos enganar. Terminamos a leitura com a sensação de que a vida agora, infelizmente, também é aquilo. Mas também é um passeio de bicicleta pelo campo. E também é a amizade. No fundo, este livro, mostrando o ser humano como ele é, tem muitas coisas dentro de si. Eu diria ser quase um livro sem fim de tanto que é capaz de nos fazer pensar sobre o que somos para os outros (e mesmo para nós mesmos). Quem o lê como deve ser tem de sentir-se levado a pensar sobre o modo como lidamos com os outros e com a sua dor. Se não o fizer, não leu verdadeiramente esta novela gráfica.

Os desenhos de Nick Drnaso são de uma simplicidade comovente. No fundo, mais do que a perfeição dos bonecos, importam-nos a história, as personagens, o que com elas se passa. Ainda assim, existem detalhes que saltam à vista. Os facto de tudo ser tão simples, tão limpo evidencia precisamente qualquer aspecto mais incomum. Portanto, podemos dizer que texto e desenho se complementam muito bem e que a simplicidade do traço serve perfeitamente o objectivo do autor que, note-se, é um jovem de trinta anos com uma sensibilidade incrível, como o livro demonstra bem.

Por tudo isto e pelo muito que poderíamos dizer sobre esta novela gráfica, aconselho-vos vivamente este livro. Lê-se num instante e não nos deixa indiferentes. Leva-nos a um mundo que, sendo o de Sabrina, é, afinal, o nosso. A boa literatura é isto mesmo e é sempre tão bom encontrá-la. Sabrina foi uma das melhores leituras que fiz nos últimos tempos e, portanto, achei que devia partilhar este título convosco. Espero que gostem tanto como eu.

Nota: A imagem da capa saiu da página da Wook.