segunda-feira, 30 de março de 2020

Para o que estávamos guardados IV

Estou com aquele autarca italiano que se questiona sobre os eventuais problemas de próstata que possam justificar tantos passeios caninos. Neste momento, acho que até algumas fêmeas podem estar com a próstata aumentada... Há por aí canídeos que já devem verter uma lagriminha cada vez que vêem os donos pegar na trela para novo passeio. Alguns vão ficar com as patas bastante musculadas, mais ou menos uns popeyes caninos. Se isto não acaba, não sei. Somos bem capazes de vir a assistir a casos de exaustão canina por excesso de voltas ao quarteirão.

Outra coisa de que gosto muito, além dos súbitos problemas de próstata de cães e cadelas europeus, é das operações para perguntar aos condutores aonde vão. Faz-me sempre lembrar a Capuchinho Vermelho. O Lobo Mau parou-a, perguntou-lhe para onde ia e ela, tontinha que dói, contou tudo: «Ah e tal, vou levar uma marmita à minha avozinha que está de cama, coitadinha.» Bom, todos sabemos como isto acabou.

Ora, nos dias que correm, todos podemos levar a marmita à avozinha (chama-se assistência a familiares incapacitados ou coisa parecida). E imagino que cada condutor mandado parar responda (com a prancha de surf a espreitar na bagageira enquanto tenta passar a Ponte 25 de Abril) «Vou ali levar o farnel à minha avozinha que tem noventa anos. Agora deixe-me lá seguir que levo aqui feijoada para ela e não vá a coisa azedar-se-me.» O senhor guarda lá faz continência e manda seguir. 

Não consigo imaginar alguém ingénuo o suficiente para responder ao polícia que lhe pergunte que destino leva qualquer coisa como «Olhe, está um sol do caraças, a Primavera começou, eu quero apanhar já uma corzinha e toda a gente sabe que as praias da Fonte da Telha são fantásticas. Deixe lá passar, vá lá.»

Considerando que, dentro da estupidez de quem sai quando pode ficar em casa, ninguém é tão burro que responda algo assim a um agente da autoridade, não deixa também de ser engraçado o facto de a intervenção das autoridades neste momento ser meramente pedagógica. Portanto, mandam-me parar, eu paro, o senhor guarda pergunta para onde vou e eu digo que vou ali ao pão. Posso ir, posso não ir... Ele não me vai seguir, portanto... Mas pode dar-me conselhos: ah e tal, higienize as mãos, mantenha a distância social, não beba água gelada depois de comer pão quente... Tudo conselhos úteis, claro.

Para terminar, só um pormenor: quem conseguiu atravessar a ponte para levar o leitão à avozinha que mora em Albufeira com vista para o mar deve estar chateado que nem um peru. É que depois de tantos dias de sol, hoje chove. Chama-se karma.

quinta-feira, 26 de março de 2020

Para o que estávamos guardados III

Estou há dez dias em casa. Há dez dias que não vou à editora, que não me sento na minha cadeira e que não vejo os meus colegas, o que é uma treta. Há dez dias que não me maquilho, o que até sabe bem. A minha roupa de trabalho passa por calças confortáveis e sweatshirts, o que também é agradável. Boa parte do meu dia é passado na varanda (fechada, pois de outra forma hoje já teria morrido de frio), onde a luz é melhor para ler. De vez em quando vou ao escritório para usar o computador. Aí acabo por ter de lutar com patas peludas que teimam em passar sobre o teclado sempre que estou a fazer alguma coisa. Ou que passam e param teimosamente diante do ecrã, num claro exercício de narcisismo felino. Também tenho de me esquivar à monomania da Cão: a sua decrépita bola de ténis.

De vez em quando levanto-me a correr porque o apocalipse chegou na forma de um gato que atira coisas ao chão ou de uma gata que suja o hall com uma bola de pêlo. Ir buscar o balde e a esfregona é, posso dizer, o ponto alto do meu dia.

Os meus pés já não sabem o que são umas botas e temo que se recusem a voltar a entrar numas. Os chinelos com raposinhas são agora os seus melhores amigos e não sei como é que isto vai acabar. O meu cabelo, que está a ganhar proporções alarmantes, anda preso com um pauzinho. Julgo que, quando puder sair de casa, o primeiro sítio aonde irei será ao cabeleireiro. Até ia a correr, mas tenho medo de tropeçar no cabelo ou de torcer um pé com os chinelos das raposinhas.

Entretanto, no tempo que me sobra, várias questões assolam a minha desocupada cabeça. Uma delas é: será que as mulheres que estão em isolamento social em casa estão a usar sutiã? Bem sabemos que quando estamos por casa é artigo que dispensamos frequentemente. Mas se isto dura muito... Só nos faltava acabarmos este inferno todas descaídas! 

terça-feira, 24 de março de 2020

Para o que estávamos guardados II

Hoje, enquanto fazia o passeio matinal com a Cão, notei o enorme silêncio daquela praceta onde, normalmente, se ouvem os sons da pastelaria (encerrada ainda antes de o Governo o ter decretado), alguns carros que passam, pessoas que se cumprimentam, que conversam, enfim, o som da vida de todos os dias. Durante aqueles dez minutos não ouvi praticamente nada que não fosse o som dos meus passos e isso nesta cidade é, diga-se, bizarro. Além disso, vi em várias janelas desenhos infantis de arco-íris. Uns em janelas de andares mais altos, outros mais perto do chão, todos teriam, na verdade, a mensagem em que queremos mesmo acreditar: «Vai correr tudo bem.»

De repente, no meio do silêncio e de desenhos infantis, é inevitável pensar que antes de tudo correr bem, corre mal. E foi precisamente por isso que não ouvi nada, não senti o aroma dos bolos ainda quentinhos, do café acabado de tirar, das pessoas que conversam sobre futebol: porque subitamente correu tudo mal e, para não correr pior, estamos a fazer a nossa parte e a contribuir com o nosso próprio silêncio, fechando-nos em casa. No fim espera-se o arco-íris, mas por agora não se sabe muito bem quando ou como chegaremos ao dia em que ele aparecerá.

O inimigo é silencioso, oportunista, e faz-nos desconfiar. Outro vizinho passeava o cão à mesma hora, regressámos ao prédio ao mesmo tempo e parecia que fazíamos uma dança bem ensaiada e coordenada, mantendo sempre uma distância que nunca diminuiu. Os pobres animais bem queriam aproximar-se, mas os seus humanos não podiam. Eu subi pelas escadas e o vizinho foi de elevador.

A Cão dormiu durante boa parte do dia, os gatos fizeram o mesmo e eu trabalhei. De vez em quando os olhos saltavam do papel para a janela, olhavam lá para fora e procuravam indícios de normalidade ou, mais provavelmente, do seu contrário. E encontravam. Os estacionamentos cheios porque as pessoas estavam em casa; mais janelas abertas e mais roupa nos estendais; menos carros a circular; menos gente a passar; mais crianças à janela com os pais em horas que seriam, em dias comuns, passadas na escola. Voltaram os olhos ao trabalho e assim passou o tempo até ao noticiário e aos números do dia. O arrepio diário quando chegaram as novidades, quando assisti às imagens dos que ainda não perceberam a gravidade do problema e querem continuar a passear aos magotes. O murro no estômago quando saltamos da realidade nacional e passamos para Espanha e para Itália. A dor de cerrar os punhos com toda a força e o desejo enorme de que nunca sejamos nós. De que o arco-íris, que tarda tanto, chegue depressa.

Engole-se em seco e engole-se o almoço. Mais horas de trabalho com espreitadelas rápidas às notícias mais recentes. Cada vez menos espreitadelas porque, a certa altura, é preciso não ceder à tristeza. Convém não esquecer que as fronteiras são as minhas paredes e só isso é suficiente para cansar a alma. Acaba o dia de trabalho, come-se qualquer coisa e chega mais um noticiário. Só os primeiros quinze minutos. Depois um livro, uma revista, um jogo, o branco do tecto, qualquer coisa. O dia acaba e o próximo será igual. Falta-me fazer este risco no calendário, mas nem me preocupo: tenho tempo e não me vou esquecer dos dias em que ficar em casa foi a solução possível.

Amanhã o dia será assim também. Ainda não veremos o arco-íris, parece-me que ele se fará esperar. Amanhã serão apenas mais umas horas em casa, fazendo sem companhia o que normalmente faço rodeada de gente. Será um dia com outras notícias, o mesmo arrepio na espinha, o costumeiro murro no estômago, o medo e a saudade daqueles que não posso ir ver. Será mais um dia para ir à janela e ver a vida diferente dos que só a querem igual ao que sempre foi, mesmo que não fosse perfeita. «Éramos felizes e não sabíamos», dizia-me alguém num destes dias. Nunca a frase me pareceu tão certa.


segunda-feira, 23 de março de 2020

Para o que estávamos guardados I

Realmente... Não passava por aqui por falta de tempo, de vontade, de inspiração... Parecia-me que já tinha dito tudo, feito todas as piadas e que já não tinha nada para vos dar. Bom, provavelmente continuo a não ter. Contudo, agora poupo o tempo das viagens para o trabalho já que estou a trabalhar a partir de casa há uma semana. Ou seja: há oito dias que não saio a não ser para ir à mercearia, à farmácia e para passear a Cão. Resultado: agora tenho mais um bocadinho para vir aqui delirar. 

Sim, porque isto está é para uma pessoa ensandecer. Acordo meia hora antes de me sentar diante das provas que tenho para rever, trato dos animais e faço questão de vestir uma roupinha que não o pijama. Ao menos isso! Tomo o pequeno-almoço já a trabalhar, faço uma pausita de meia hora para almoçar e sigo as leituras pela tarde fora. Aí pelo meio, ouço o noticiário, reviro os olhos cento e oitenta vezes e atiro a bola de ténis para a Cão ir buscar cerca de novecentas e trinta e oito. Ela agora aprendeu a tocar-me na perna quando me faço de esquecida por isso não há como escapar à bola babada. Entre as seis e as sete da tarde arrumo as minhas coisinhas (leia-se: deixo-as fora do alcance dos dentes caninos) e dou o dia de trabalho por terminado. Tudo somado e foram oito horinhas. Mas sem colegas, sem piadas, sem gargalhadas, sem pausas para café, sem tudo aquilo a que nos habituámos e que faz parte da nossa rotina.

Se ainda desse aulas, estaria neste momento a arrancar cabelos. Imagino a pilha de nervos que professores, pais e alunos devem estar a sentir sem saberem o que vai acontecer até ao final do ano e com as candidaturas ao superior (já para não falar dos Exames Nacionais que são a dor de cabeça mor). Imagino os professores a terem de imaginar aulas à distância que efectivamente ensinem alguma coisa, pensadas e concretizadas de um dia para o outro sem qualquer período experimental. E também os imagino super elegantes da cintura para cima, mas com as calças do pijama da cintura para baixo. Essa parte é hilariante, na verdade.

Certo é que por ora é esta a nossa realidade. Resguardar-nos e proteger aqueles de quem tanto gostamos e que são, cruelmente, os mais vulneráveis, os mais atacados por este vírus bizarro que veio transformar a nossa existência num mau filme de Hollywood. No fundo, temos de aprender a viver como gatos, tal como tanto temos visto por essas redes sociais fora. Lavar as mãos, comer, dormir, mexer um bocadinho e, ao contrário deles, trabalhar em casa para lhes continuar a pagar a ração. E o nosso papel higiénico.


(Na dúvida, o Simon’s Cat ensina a viver estes dias insanos de isolamento.)



(Lady Gatica tenta substituir os meus colegas de trabalho. Mas larga mais pêlo do que eles.)



(Mas por vezes tenta sobrepor-se ao próprio trabalho. 
A ração que o meu trabalho lhe paga não lhe deve fazer falta, parece-me...)




(E depois de um dia de trabalho, vou para a cozinha espairecer e fazer coisas que NUNCA faço: doces. 
Eis umas bolachas de coco e aveia feitas hoje. Eu estava a fazer dieta, sabiam?)



(Na porta do frigorífico tenho um calendário onde vou riscando os dias de isolamento. 
Ainda não risquei o de domingo e o de hoje, mas amanhã trato disso. Sou capaz de ter tempo que chegue.)



(A foto é péssima, mas a ideia é dizer-vos que a realidade é tão má, tão estranha, tão inimaginável 
que precisei de recorrer à literatura infanto-juvenil para descansar as ideias. 
Até agora está a ser uma excelente leitura. Quando a Feira do Livro decorrer,
 lá para o final de Agosto, corram e comprem-no!)

Por hoje é isto. Talvez amanhã haja mais. Não me comprometo porque, ainda que os dias agora pareçam todos iguais, a verdade é que são mais diferentes do que nunca. Até lá, cuidem de vocês e dos que vos são queridos. Como agora vamos dizendo, à laia de mantra, vai correr tudo bem. Vamos  todos ficar bem.