quinta-feira, 22 de novembro de 2018

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Ironias canino-literárias

O meu cão, mais conhecido como Madame Pochita, atacou um livro da minha estante. Teve gosto, pode dizer-se. Mas acredito que até o nome do livro fosse uma afronta difícil de suportar. Vai daí e o melhor mesmo é fazer desaparecer o maldito livro da prateleira e, se possível, da face da terra. Madame Pochita tentou, mas o livro deu luta. Melhor: os gatos deram luta. Sim: Madame Pochita tentou destruir O Livro dos Gatos, de T. S. Eliot. Tenho ou não tenho um cão capaz das maiores ironias?






sábado, 10 de novembro de 2018

A Quinta dos Animais - o balanço



A primeira edição deste livro deveria ter tido um prefácio do autor que, no entanto, acabou por não ser publicado. Foi descoberto anos mais tarde. Nele, Orwell explicaria que vários editores, na década de quarenta do século passado, se recusaram a publicar esta obra por perceberem que ela metaforizava lindamente o que se passava na Rússia. Ninguém queria provocar a Rússia e, portanto, era melhor deixar o livro no fundo da gaveta.

Felizmente foi publicado e cá está para nos contar uma história, uma espécie de fábula que não deixa ninguém indiferente. Creio que é daqueles livros de que todos conhecemos em traços gerais o enredo, mesmo sem os termos lido. Numa quinta, os animais iniciam uma revolução que os levará a livrarem-se dos humanos, gerindo eles próprios o espaço, o seu trabalho e tudo o que diz respeito à sua existência. Inicialmente, tudo é idílico. Todos parecem ter o mesmo objectivo e todos parecem ter o mesmo valor naquela quinta. Contudo, rapidamente as coisas começam a mudar e a igualdade entre os animais vai ficando cada vez mais diluída. Esta mudança decorre numa gradação que, se no início chega a ter graça, começa a deixar o leitor desconfortável à medida que tudo se torna mais sério. Mais: nós, que já vimos isto acontecer, percebemos todos os paralelos entre o que acontece com estes animais e aquilo que já vimos suceder em sistemas totalitários (ou no meu antigo local de trabalho...). Assistimos ao fim da liberdade de expressão, ao culto do «bode expiatório» que quer distruir o que de bom o «grande líder» fez, à repressão, aos castigos, à criação de uma força repressiva protectora dos que mandam, entre outros aspectos. Não falta ali nada, até aqueles acéfalos que dizem amén a tudo sem qualquer espírito crítico lá estão.

Ao mesmo tempo que lemos uma história com animais que falam, como nas fábulas da nossa infância, entramos também com estes bichos numa realidade terrível que só é a deles no papel. Na verdade, tais erros só acontecem na realidade humana, o que mostra que somos profundamente idiotas e que cometemos alegremente os mesmos erros vezes e vezes sem conta. Ora, esta estranheza causada pela dicotomia entre uma história impossível de se tornar realidade e uma história que é real  embora com outros protagonistas é uma das razões pelas quais este livro é tão bom. É preciso ser-se um tijolo para não se sentir o incómodo que este texto nos provoca. Só mesmo alguém que viva numa realidade completamente irreal poderá ler A Quinta dos Animais e ficar apenas pela camada superior. Há sempre mais qualquer coisa. Há sempre um espelho que nos reflecte enquanto humanos e que nos desfoca, nos distorce. Reconhecemo-nos ali, naqueles cavalos, naqueles porcos, naquelas ovelhas... mas não nos reconhecendo ao mesmo tempo. Acho mesmo que em certo momento damos por nós a pensar no animal que seríamos, se ali estivéssemos. Qual seria o nosso papel? Conseguiríamos manter o nosso espírito crítico, mesmo quando os outros nos quisessem conduzir cegamente? Conseguiríamos erguer a voz? Conseguiríamos ser mais do que as ovelhas que se limitam a repetir sem pensar a propaganda que lhes passam? Ou seríamos como elas e viveríamos felizes na mais profunda ignorância?

A boa literatura abana-nos pelos ombros. Este livro é indubitavelmente boa literatura. Em tempos tive um colega de trabalho que afirmava ser este o seu livro favorito. Agora, tanto tempo depois, percebo a razão e rio-me ao imaginar as vezes em que ele viu semelhanças entre os porcos deste texto e aqueles que nos lideravam...