domingo, 3 de junho de 2012

Partos difíceis

Adoro o Memorial do Convento. Tentei lê-lo mais ou menos aos doze anos, numa edição que a minha irmã tinha cá em casa. Cheguei ali ao quarto capítulo e acabei por desistir porque, realmente, não tinha ainda idade para alcançar tudo o que para ali ia e era, convenhamos, muita coisa. No Memorial há tantos pormenores a que dar atenção e exige-se um conhecimento do mundo e das coisas que aos doze anos não se tem. Voltei a tentar já na faculdade, por volta dos dezanove, e li-o de um fôlego. O Memorial do Convento foi uma descoberta encantadora e o início da minha paixão pela obra do José Saramago.

No ano passado tive de ensinar o Memorial pela primeira vez e digo: a tarefa é hercúlea. Os alunos embirram com aquilo, não têm os conhecimentos históricos mínimos para perceber o que por ali se passa e estão, em boa parte, habituados a papa mastigada, coisa que com aquele livro não sucede. Isso aliado à minha inexperiência fez com que no ano passado as coisas não tivessem corrido da melhor maneira. Ainda assim, a maioria dos alunos leu efectivamente o livro  e compreendeu-o nos seus aspectos mais importantes. Os que se recusaram a participar numa actividade chata (palavras deles) como era a leitura do Memorial tiveram o final de ano merecido.

Já no ano passado um colega meu de Matemática, ouvindo os meus queixumes sobre a resistência e os preconceitos de alguns miúdos relativamente ao Memorial do Convento, perguntou-me por que raio não arranjava eu aquilo em audiobook para lhes facilitar a vida. Assim conheceriam a obra e não teriam de fazer o esforço que tanto os apoquentava e que era, no fundo, ler. Virei gato assanhado. Como? Perdão? Audiobook? Então o único homem que ganhou um Nobel para a língua portuguesa escreve um monumento daqueles, aplaudido nos cinco cantos da nossa bolinha azul, e eu vou minorizar-lhes as supostas dores com um audiobook?! Mas é que nem morta!

Este ano os meninos são ainda mais preguiçosos: nas aulas percebem tudo, mas em casa não lêem o que têm a ler e limitam-se a ficar à espera de que eu, depois, explique tudo tão bem explicadinho que a coisa se faça sem o esforço da leitura integral. Asneira. No teste pus-lhes questões de verificação de leitura (coisa que eles sabiam que eu ia fazer) e foi bonito observar a quantidade de gente que despachou o livro numa semana apenas por medo do teste. Também foi engraçado perceber que muitos apenas sugaram livros de resumos que, invariavelmente, deixam de fora os pormenores. Ora foi precisamente sobre os pormenores que incidiram as questões. Alguns até suavam.

Novamente conversando com o mesmo professor de Matemática recebo como conselho a ideia de pôr os miúdos a ouvir aquilo em audiobook porque assim conhecem a obra enquanto, quem sabe, estudam Matemática. Dizia-me ele que já no ano anterior se tinha perguntado por que razão não fazia eu isso, sabendo que eles no final do ano têm tanto que estudar para outras disciplinas. No fundo, eu estava a dificultar-lhes a vida ao obrigá-los, mesmo no final do ano, a lerem um texto enorme e denso quando as suas atenções devem estar voltadas para aquilo que os vai levar ao ensino superior: os exames. Abespinhei-me novamente. Como? Então e o exame de Português não conta? Então e o Memorial do Convento não é conteúdo passível de sair em exame? Então e esta gente não tem já idade para aguentar isto e muito mais? Os que leram chegaram lá, correcto? Então aos outros também não cai bracinho nenhum por lerem uma das melhores obras que a língua portuguesa já deu à luz! Respondi-lhe que não fazia papa a ninguém e que se o Saramago tinha ESCRITO o texto e não DITADO o seu conteúdo para um gravador, então eles teriam de LER primeiramente e, só depois, se lhes apetecesse, ouvi-lo. Até porque, aqui entre nós, dada a densidade do texto do Memorial, aquilo em audiobook deve ser mil vezes mais difícil de compreender do que no canónico papel.

Bom, mas este texto chama-se «parto difícil» por uma razão de que ainda não falei. Sim, tudo isto foi o preâmbulo. O Memorial tem, nas últimas semanas, proporcionado partos difíceis na medida em que a preparação de uma aula sobre tal obra leva o triplo do tempo que me demora a preparar uma sobre, por exemplo, Os Lusíadas. São tantos os pormenores, são tantos os excertos, são tantos os símbolos que é preciso não deixar escapar nada. São, por isso, horas a folhear o livro e a escolher os parágrafos onde vamos iniciar e terminar a leitura. São horas e imaginar que perguntas se podem fazer sobre tal aspecto. São tempos infinitos até montar um puzzle que no fim se pareça com uma aula que faça sentido naquelas cabeças. Faltam-me duas aulas para terminar o Memorial e estou esgotada. Amo a obra, mas fico extenuada por tentar passar esse amor a algumas gentes surdas (muito semelhantes àquelas para quem o Camões dizia estar farto de cantar). O acolhimento dos miúdos, passado o susto inicial, até tem sido bom, embora eu saiba que muitos ainda não leram o livro. Já lhes disse que nisso sou como Pilatos: lavo as minhas mãos. Já ando a mandar ler desde o Natal: se a quinze dias do Exame Nacional ainda não leram uma das obras que pode ser alvo que questionário, problema o deles, que o meu exame foi feito em 2003 e já não volto a fazer outro.

Já ouvi vozes contra a presença do Memorial do Convento no Programa de Português do 12.º ano. Evocam razões como o grau de dificuldade, a pouca ligação aos restantes textos lidos no resto do ano (este argumento só pode vir de gente muito ignorante porque se há coisa que o Memorial tem é intertextualidade com fartura, não só com Os Lusíadas, mas também com a Mensagem, e a própria temática da opressão é, em alguns pontos, comum à do Felizmente Há Luar!), entre outras preciosidades. Eu acho que o Memorial do Convento está muito bem onde está e nós, professores e alunos, é que temos de saber lidar com ele. É um trabalho hercúleo, é verdade, mas no final de contas bem gostoso e perfeito para concluir um ano muito cansativo.

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