quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

O Acordo Ortográfico

Eu disse que não falava, mas não consigo. Tem mesmo de ser, tenho de falar na idiotice que é o nosso Acordo Ortográfico.

Não sou contra o ele por casmurrice de quem não tolera uma mudança. Aliás, os muitos anos que passei em cursos de Letras deram-me os conhecimentos suficientes para avaliar a questão. Seria tolerante a uma mudança que aproximasse as várias variantes do Português se essa mudança tivesse pés e cabeça e não se baseasse em princípios que vão contra aquilo que deve ser uma língua. É óbvio que acho que temos de seguir os tempos e que atenuar as diferenças existentes entre o Português europeu, o do Brasil e o dos vários países africanos que o falam. Vivemos num mundo globalizado, as nações mais distantes acabam por estar quase tão perto quanto ali a papelaria da esquina e, assim sendo, a língua torna-se um factor de aproximação fundamental. Mudar é necessário, embora não acredite que a mudança tivesse de ser tão radical. Pior: acho que a mudança não tinha de ser baseada em critérios parvos que não sabemos que efeito provocarão no futuro.

Por exemplo, basearmo-nos apenas no som para escrevermos uma palavra não resulta e é simples perceber porquê. Existem muitas palavras da mesma família cujo radical é pronunciado de forma diferente de palavra para palavra. Com o novo Acordo (des)ortográfico o «p» da palavra «Egipto» vai cair e passaremos a escrever «Egito». Porém, continuaremos a escrever «egípcio». Ou seja, em prol do critério do som, mutilamos o radical de uma palavra. Mais: se o critério é o som, como se explica a queda da consoante muda numa palavra como «arquitecto» (que passa a escrever-se «arquiteto»)? A consoante muda, que para muitos é delírio de erudito, estava na palavra para abrir a vogal, o que fazia com que, sem a necessidade de um acento gráfico, pronunciássemos o «e» aberto. Se bem notaram, com o acordo, o final da palavra fica «teto» (tal e qual as maminhas dos animais) que sempre se leu com «e» médio, e não aberto. Ora, se o Acordo segue a lógica do som e se faz cair consoantes que não se lêem porque, aparentemente não estão lá a fazer nada, como se explica o facto de este «c» mudo que vai cair na palavra «arquitecto» fazer toda a diferença na forma como pronunciamos a palavra? Responder-me-ão «Ah, mas nós sabemos como é que a palavra se lê.» Pois sabemos. Mas os miúdos que no futuro entrarem no sistema de ensino não saberão. O «tecto» da vossa casa e o «teto» da vaca Mimosa escrever-se-ão da mesma maneira, embora se pronunciem de maneira totalmente diferente. Há lógica nesta mudança? Nenhuma. Há vantagem? Só mesmo aquela de nos chegarmos aos brasileiros e a de os miúdos na escola já não perderem tantos pontos nos testes por faltas de «c» e «p» mudos.

O novo Acordo é perito em retirar acentos, mesmo quando depois o resultado é descabido. Se antes eu podia encontrar num livro a frase «Ela pára para pensar.», agora com o Acordo encontro «Ela para para pensar.». Muito bem. Agora expliquem-me como é que uma criança vai aprender a ler isto? Mais, como é que assim de repente eu leio isto? Ah, o acordo dá a solução: através do contexto percebemos do que estamos a falar e, como tal, percebemos que o «a» do primeiro «para» terá de ser aberto e o do segundo fechado. Portanto, deixem-me só ir ali explicar a um miúdo de dez anos que embora as duas palavras estejam escritas da mesma maneira, numa a vogal é para abrir e na outra é para fechar. Imaginem as leituras em voz alta nas escolas: vão transformar-se em momentos interessantes, desta vez não porque a leitura ande pelas horas da morte, mas porque na ânsia de burrificar a língua, acabamos por levar à frente princípios que tinham toda a lógica.

Mais: como é que um acordo que pretende tornar semelhante o Português entre os vários países que o falam, põe acentos gráficos de formas verbais como sendo facultativos? Para vos dar um novo  exemplo, que este Acordo é fértil em asneira, as formas verbais da 1.ª conjugação que eram acentuadas no Pretérito Perfeito para serem diferenciadas das formas de Presente do Indicativo, passam a ser acentuadas de forma facultativa. Ou seja: se uma editora escrever num livro a frase «Passamos a tarde a jogar à bola.», a forma verbal tanto pode estar no Presente quanto no Pretérito Perfeito que eu não sei. O contexto o dirá, explica o Acordo. Pois, mas eu gosto de perceber as palavras não só pelo contexto em que surgem, mas também pelo que são. Que se lixe, os acentos fazem gastar muita tinta e, ao fim ao cabo, pelas mudanças que o Acordo prevê, parecem nem servir assim para grande coisa.

O uso do hífen (que devia ser uma daquelas coisas que devia fazer muita mossa aos restantes lusófonos, não haja dúvida) é outra das pérolas previstas pelo Acordo. Portanto, o hífen deixa de ser utilizado em vários casos sendo que um deles é nas locuções (expressões com sentido unitário). Dou como exemplo a palavra «cor-de-laranja» que agora é «cor de laranja». Contudo, «cor-de-rosa» continuará a escrever-se como sempre se escreveu. Desculpa dada pelo acordo? «Está consagrado pelo uso». Coitadinho do «cor-de-laranja» que foi despromovido da categoria de expressão com uso unitário para a reles categoria de amontoado de palavras, enquanto o bom do «cor-de-rosa» continua apaparicadíssimo pelos tracinhos.

A língua é uma coisa viva que muda ao longo do tempo. Todos o sabemos. Aos poucos, certas palavras que nunca julgámos virem a fazer parte dos dicionários conseguem chegar às suas páginas. Construções sintácticas que julgamos erradas, entram para a gramática da língua porque a evolução e o uso a isso obrigou. Os advérbios de modo, que há muitos anos eram acentuados, já não o são e é normal, a língua evoluiu. Parte dos problemas que os alunos têm com Camões e Gil Vicente vêm do facto de as palavras não serem iguais às actuais, precisamente porque ocorreram muitas mudanças desde o século XVI até aos dias de hoje. O que acontece é que o Acordo erra ao estabelecer critérios tão volúveis como o som. Uma pessoa do Brasil nunca pronunciará as palavras como eu e isso é normal. Assim como a minha pronuncia é diferente da das pessoas de Bragança. Não deixamos de nos entender por isso. Aliás, todos nós sabemos que a grande diferença entre as variantes do Português está no vocabulário e nesse ninguém mexe (porque não podem, senão sabe Deus se não o fariam...).

A união faz a força, todos o sabemos, e é, como já disse, importante unirmo-nos aos nossos irmãos da lusofonia nesta época de fracos e de fortes. Contudo, fazer um acordo ridículo e mal pensado não é o caminho. Aliás, trabalhar (mal, no caso) a questão das diferenças linguísticas e depois ignorar os outros veículos que espalham a nossa cultura só mostra a nossa pobreza de espírito. Podíamos mudar, mas não precisávamos de nos vender, que foi o que o Acordo fez. E sobre isto termino contando uma história que ouvi a uma professora de Português bem conhecida no meio, que no ano passado deu uma palestra a que assisti. Contava ela que uma editora brasileira abordou a nossa poetisa Sophia de Mello Breyner propondo a versão das suas histórias infantis para o Português do Brasil, porque os meninos desse país não conseguiam perceber os seus textos assim como estavam. Respondeu ela que não, que não o permitia, que se os seus filhos, em pequenos, haviam lido Cecília Meireles e Monteiro Lobato em Português do Brasil e tinham compreendido, também os pequenos brasileiros deviam conseguir compreender o Português europeu. Lamento tanto que não existam mais Sophias.

7 comentários:

  1. :) concordo com as tuas posições, às quais até dou mais crédito que às minhas porque na verdade nestes temas da língua sou quase uma leiga... Mas acredito que é um pouco a nossa aversão a mudar o que para nós não faz sentido de outra maneira que nos faz ver todos estes problemas... e que nenhuma criança no futuro vai ter mais problemas com a ortografia do que aqueles que nós tivemos só por causa do acordo. :)

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  2. Este Acordo, por muito que se seja a favor da mudança, não está bem feito. Mudar sim, não podemos querer uma língua que nunca se altere, mas importa ver que mudanças são feitas e até que ponto fazem sentido. Neste caso, há imensas coisas que não têm qualquer lógica. Infelizmente o critério económico voltou a vencer e um assunto que merecia mais discussão e mais uns arranjos, foi para a frente com disparares que vão muito além dos que mencionei. Enfim... Para quem ensina o Português isto é uma tragédia.

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  3. Acredito que sim, que realmente podia ter muitas coisas feitas de outra maneira, para melhor, claro!
    A do cor-de-rosa/cor de laranja já me tinha feito perder largos minutos a pensar mas porque raio uma tinha direito a "tracinhos" e outra não... :/

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  4. Olá :) vim ter aqui por sugestão do seu afilhado desnaturado! LoL Mas ainda bem! Porque gostei imenso do que li... Eu também sou contra o Acordo.
    A analogia pode não ser a melhor mas ninguém vê os americanos a fazer acordos ortográficos com os ingleses/irlandeses/australianos! Porque é que nos temos que submeter a uma mudança que não tem nem pés nem cabeça?!
    Tenho um caso prático do que descreveu na última parte do seu post. No mesmo país temos expressões diferentes, maneiras de dizer diferentes... e entendemo-nos perfeitamente. Juro que não percebo e o que descobri da Sophia veio a ajudar. Desconhecia.

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  5. Ah, Corina, então aquele moço anda publicitando «Quixotadas». Faz bem, faz bem, que a publicidade nunca é em demasia. Pois isto do acordo é mais uma daquelas mudanças que nunca chegaremos bem a perceber. Compreende-se a ideia, mas a verdade é que foi muito mal executada. A maior diferença entre o nosso Português e o dos outros países lusófonos está no léxico, e obviamente aí ninguém pode mexer. A língua sempre sofreu mudanças, isso não é de hoje. O que agora é diferente é que muitas não têm qualquer nexo. Enfim, isto é, no fundo, uma carolice que não tem que ver com mais nada que não sejam euros. As editoras estão a adorar!

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  6. Olá. Vim mandado para aqui pela moçoila Corina que veio mandada pelo seu afilhado.

    Eu sou contra o acordo ortográfico. Principalmente nas questões das duplas grafias e acentuações. Eu trabalho na área da tradução e o facto (ou fato) de haver uma dupla grafia pode significar para o cliente que eu é que não sei traduzir podendo ele simplesmente escolher o que está correcto ou errado e dai poder declarar que não me necessita de pagar pois não fiz uma tradução "decente". Mas creio que o problema para os miúdos seja consideravelmente diferente.

    Gostei imenso de ler o que escreveu e até me iluminou para com a despromoção do cor de laranja. Admito que não sou grande conhecedor da língua portuguesa para além do que necessito para o meu trabalho, mas como li num jornal, acho que o acordo foi realizado do ponto de vista financeiro.

    Continuação ^^

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  7. Heartless, obrigada pelo pulinho aqui ao «Quixotadas». Gosto de saber dessa publicidade que tem havido em torno do blogue. Quanto ao acordo e ao que disse, infelizmente é como diz: sendo a grafia dupla, é como der na cabeça de cada um. Ao traduzir lida com gente que escreve e que lá terá as suas manias, portanto há probabilidades de que, realmente, venha a passar por situações mais desagradáveis por falta de entendimento devido a um facto que nunca devia ser «à vontade do freguês». Eu passarei pelo mesmo no ensino da língua materna e apetece-me arrancar os cabelos só de imaginar uma eventual discussão com um aluno por uma coisa tão mal feita quanto a ortografia dupla. O que me deixa aterrada é, para além de todo o disparate que isto é, o facto de alguns dos nossos maiores linguístas terem parido esta triste ideia. Caramba, se eles não poupam a nossa língua a maus tratos, quem poupará? Nas escolas, com os miúdos mais pequenos, o processo desenrola-se sem grandes complicações porque naquelas idades são esponjas que absorvem o que lhes dão. Contudo, observo que com os mais crescidos isto vai sendo um problema. Nitidamente, os grandes senhores que participaram neste massacre à língua portuguesa pensaram muito mais nas questões financeiras do que no resto, mas escudam-se na grande nomeada que têm para que ninguém acredite nisso e pense que o fizeram, apenas, porque tinha mesmo de ser assim. Cada vez tenho mais pena de ver fazerem isto à nossa língua, que fica muito mais pobre com tamanhas enormidades.

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