Os grandes livros, os que nos mudam e nos falam mais intensamente acabam por chamar-nos mais do que uma vez. É a esses que voltamos, são esses que desejamos voltar a escutar. A vida é curta e são muitos os textos que queremos conhecer, porém nem por isso conseguimos afastar-nos das releituras que sentimos a obrigação de fazer.
Não sou, devo admiti-lo, a pessoa que mais relê. Para que o faça é preciso amar, amar de verdade um livro e isso, constato, tem sido raro. Foram, até hoje, poucos os livros a que regressei. Aliás, apenas me recordo de dois (ignorando as releituras juvenis que fiz de volumes de "Uma Aventura" e outros do género): Todos os Nomes, de Saramago, e Dom Quixote de la Mancha, de Cervantes. Se o primeiro me colocou (coloca ainda) uma série de questões, o segundo mudou a minha vida. Li-o aos dezoito anos porque saiu de forma gratuita com um jornal. Tinha sobre ele uma porção de ideias pré-concebidas e achava que ia odiar aquele cavaleiro andante e as suas aventuras. Felizmente, aos dezoito anos e embrenhada num curso superior de Literatura, tinha a mente suficientemente aberta para começar a ler uma obra longuíssima de que julgava impossível vir a gostar. Felizmente, também, os dezoito anos permitem admitir certos enganos e apadrinham novas paixões. E eis que o Quixote se tornou o meu livro, a minha paixão literária. Tive muita sorte: há quem faça uma vida de leituras sem deixar tocar-se desta maneira por texto algum.
Depois de ler o Quixote percebi tudo muito melhor. Desde os outros livros às outras pessoas, tudo ficou mais claro para mim. Foi livro a que muitos, uma imensidão de autores, foram buscar inspiração, por isso conhecer o Quixote é condição sine qua non para se perceber efectivamente o que outros autores quiseram transmitir-nos. É um dos livros mais conhecidos no mundo e, mesmo para quem não o leu, há aspectos partilhados e conhecidos. A sua iconografia, o poder das imagens que sobre ele se fizeram ajudaram (ajudam ainda) a aumentar a sua fama. Sobre o Quixote há imagens lindíssimas feitas por nomes sonantes como Doré, Picasso, Dali, Pomar. Há bailados, óperas, filmes, bandas desenhadas e uma imensidão de outros produtos que só nasceram porque um dia Cervantes fez de um fidalgo cavaleiro e de um homem "com pouco sal na moleirinha" seu escudeiro.
Bem vistas as coisas, li o Quixote há quase dez anos e levei uma semana a fazê-lo. Depois disso reli-o duas vezes e já fui relendo alguns capítulos de forma isolada. Nestes nove anos, e porque a paixão foi imensa, comecei a coleccionar edições da obra e tudo o que com ela tenha que ver. Não tenho uma colecção valiosa do ponto de vista material, não tenho nenhuma edição rara (tomara eu tê-la), mas adoro cada livro que a compõe e adoro sabê-la minha. Talvez isto nem seja gosto ou passatempo próprio de alguém com vinte e sete anos, mas que se lixe. Aprendi mais com o Quixote do que com muitas pessoas e tive mais companhia por parte daquelas páginas do que com alguns ditos amigos.
Por tudo isto e porque sinto já há alguns dias uma enorme saudade das palavras de um homem bom que queria mudar o mundo, vou até às prateleiras para procurar o livro com o qual farei a próxima releitura.
"Num lugar da Mancha de cujo nome não consigo lembrar-me..."