Descobri na semana passada que afinal até sou capaz de ler nos autocarros, sem ter de sair quatro paragens depois da primeira página completamente almareada. Assim sendo, faço por ter sempre um livro pouco pesado na mala, de modo a aproveitar o muito tempo morto que passo nos transportes públicos. Ora, se em casa continuo a ler El Misterio Cervantes, na rua vou lendo um livro muito bonito que comprei na última Feira do Livro de Lisboa (e digo bonito não só pelo conteúdo, que vai sendo amoroso, mas também pela capa que é lindíssima). Chama-se Uma Vida à Sua Frente e foi escrito por Romain Gary ou, na realidade, Émile Ajar, já que o primeiro nome foi inventado para fintar o júri do prestigiado prémio Goncourt (galardão que só se pode receber uma vez). Com esta pequena trapaça, conseguiu ser o único a ganhar o dito prémio duas vezes. Engenhoso, han?
Logo no início do livro, que foi publicado pela primeira vez em 1975, deparei-me com uma passagem fantástica. O narrador é, deixem-me dizer-vos, um pequeno rapaz orfão a quem chamam Momo, que vive num bairro pobre de França aos cuidados da Madame Rosa, uma antiga prostituta sobrevivente de Auschwitz. Veremos o mundo através dos seus olhos ingénuos e acabamos por percebê-lo tal como ele: de um modo tosco porém infinitamente terno. No fundo, o que encontramos, é um terrível mundo de adultos que um pequeno miúdo tenta, com alguma dificuldade, entender.
A passagem a que me referia é, então, esta:
«Desci até ao café do Senhor Driss, em baixo, e sentei-me à frente do Senhor Hamil que era vendedor ambulante de tapetes em França e que já viu tudo. O Senhor Hamil tem olhos bonitos que fazem o bem à volta dele. Ele já era muito velho quando o conheci e desde então não parou de envelhecer.
- Senhor Hamil, porque tem sempre um sorriso na cara?
- Agradeço assim a Deus todos os dias pela minha boa memória, meu pequeno Momo.
Chamo-me Mohammed, mas toda a gente me chama Momo para parecer mais pequeno.
- Há sessenta anos atrás, quando era jovem, conheci uma mulher que me amou e que amei também. Durou oito meses, depois ela mudou de casa, e, sessenta anos depois, ainda me lembro. Eu dizia-lhe: não te esquecerei. Os anos passavam e eu não me esquecia dela. Às vezes, tinha medo porque ainda tinha muita vida pela frente, e que esperança poderia dar a mim próprio, simples mortal, quando é Deus que segura a borracha que apaga? Mas, agora, estou tranquilo. Não vou esquecer a Djamila. Sobra-me pouco tempo, morrerei antes disso.»
Uma Vida à Sua Frente, Sextante Editora, p. 8
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