Acabei ontem de ler El Misterio Cervantes e foi ainda mais fraquinho do que já esperava. A história é mais ou menos esta: o responsável pelo Tribunal da Inquisição aparece assassinado no quarto e o rei chama um médico jesuíta, com alguma experiência em investigações, para tentar perceber o que aconteceu. Ora, o falecido, em vida muito amigo do investigador, deixou-lhe uma série de pistas escondidas nos livros da sua biblioteca que o levam a perceber que existe um livro maldito (o Speculum Cordis) que pode pôr em causa os fundamentos do Cristianismo. O que acontece é que esse volume foi escondido, em tempos, pelo belo do Miguel de Cervantes, a mando do Cardeal Acquaviva, de quem era criado. No decurso da investigação, o jesuíta Alonso apercebe-se de que o responsável pela boa da Inquisição lhe quis deixar a mensagem de que quem o matou o fez porque ele sabia como chegar ao Speculum Cordis (que a meio do livro o leitor ainda não percebeu o que raio tem de mal...). Mais: percebe que as pistas para chegar ao excomungado livro se encontram no Quixote, uma vez que Cervantes, ao escondê-lo, espalhou as pistas pela sua obra-prima. Assim, quem as soubesse interpretar poderia ir resgatar a obra e guardá-la em local seguro, longe de unhas que a pudessem usar para macular o Cristianismo.
Ora, tendo em conta que o leitor vai até à última página sem perceber o que raio tem o Speculum Cordis de tão mau que justifique gente a morrer por ele e que explique o facto ameaçar tanto o Cristianismo, a coisa torna-se verdadeiramente aborrecida. Contudo, piora ainda mais se tivermos em conta que qualquer alma que conheça minimamente o Quixote sabe desde o início qual o único lugar onde o diabo do livro pode ter sido escondido. Quando o genial jesuíta incumbido da investigação do homicídio descobre que o Cervantes escondeu no Quixote as coordenadas necessárias para que se chegue ao sítio certo, já eu berro para o Kindle que o maldito do Speculum Cordis está na Cova de Montesinos. Recorde-se que esta é uma espécie de gruta onde, no Quixote, o Cavaleiro da Triste Figura vive uma aventura que depois renega no momento da morte. Aliás, é uma das partes mais obscuras do texto de Cervantes por não chegarmos a perceber se o fidalgo feito cavaleiro a viveu mesmo ou não.
Depois, esperava um final estrondoso, já que o resto do livro não tinha sido nenhuma especialidade. Qual quê? Ali o momento do resgate do Speculum Cordis acaba quase numa página e, quando achamos que vamos saber qual o problema do livro, já ele jaz numa zona inacessível onde apodrecerá para sempre. Boa... Na última página aparece, então, uma carta deixada pelo finado responsável pela Inquisição onde se diz, entre muitas frases pretensamente poéticas sobre a paz, que o livro tão procurado diz que a Terra Santa não existe. Uoooooou... Mataram-se todos por um livro que se resume assim? Parvos.
Sou sincera: nunca tive grandes expectativas, já que um livro que mete mistérios e coisas escondidas que, sendo descobertas, põem em causa as bases do Cristianismo nunca promete grande coisa. Ainda assim, como neste volume as pistas para se chegar ao esconderijo onde o senhor Miguel de Cervantes enterrou o tal "livro sensação" estavam no Quixote, achei que devia conhecer o enredo montado e verificar de que modo foi tratada a obra-prima cervantina.
Não fiquei nada impressionada. Como já disse, percebi logo que o único local que no Quixote serviria para esconder alguma coisa seria a tal Cova de Montesinos. Depois, fica-se com a sensação de que o que é proposto no El Misterio Cervantes é que o Quixote não é o livro fantástico que é pelo muito que o compõe (humor, aventura, valores, entre muitos outros aspectos), mas sim porque foi o meio usado pelo autor para deixar aos vindouros a indicação de onde se podia encontrar o mítico livro. Parece-me, francamente, que em vez de fazer um elogio à obra-prima espanhola, El Mistério Cervantes apenas a apouca. Reduz o fidalgo manchego a um tipo que faz o que faz porque assim serve o suposto objectivo de Cervantes e explica certas aventuras à luz de teorias templárias que envenenam boa parte do interesse que têm (como é o caso da «Cabeça Falante» da segunda parte do Quixote). Enfim, não é nada que não entretenha minimamente um leitor, mas é um livro que não acrescenta nada e que ainda peca por reduzir a pouco (na tentativa de tornar mais misterioso) um livro que é tão rico como o Quixote. Felizmente no fim traz uma nota do autor a indicar que tudo aquilo é produto de fantasia, servindo a mesma, parece-me, para lembrar aos mais distraídos que o Quixote vale pelo que é e não pelo que nele se consegue, século após século, enfiar à força.
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