Doze anos, mãe ao lado. Ele fala português sem pronúncia, mas a mãe tem sotaque de algum país de leste, embora se perceba bem o que diz. O miúdo vai tagarelando pelo caminho. A determinada altura, o arrazoado chama-me a atenção. Aqui ficam algumas das pérolas que uma pessoa ouve num autocarro.
Olhando para uma parede do outro lado da estrada, o miúdo lê uns rabiscos pintados a spray.
- «Passos Coelho é ladrão.». Quem é o Passos Coelho, mãe?
- Então, foi primeiro ministro há pouco tempo. Mas tu não te lembras de ouvir falar no Passos Coelho???
(Alguns momentos de silêncio, pensei que já nem fosse dizer nada. Enganei-me.)
- Eu não sei disso de «primeiros ministros». Eu sou mais de ciências, de inventar coisas, de ganhar o Prémio Nobel da Física.
Falando de uma colega que, pelo que dizia, teria algum tipo de necessidade especial.
- Mãe, ela é deficiente e a avó dela chateou-se e disse às raparigas da minha turma que elas todas deviam ter filhos deficientes para verem como era.
A mãe tenta perceber que história é esta e vai puxando pelo filho a ver o que dali sai. Ele vai acrescentando informação.
- Ela não tem o direito de falar assim com elas. Ofendeu-as... Ofendeu-as um bocadinho. Ela é deficiente, mas ela podia estar a usar livros do oitavo e anda a usar livros do terceiro!
- Como???
- Pois. E ela se andasse numa escola de deficientes já teria filhos. Se calhar já tinha dois ou três. Talvez já tivesse netos! Não, netos também não...
- Mas que idade tem ela? Dezasseis?
- Então, eu tenho doze e ando no sexto ano. No sétimo vou ter treze... Ora, ela devia estar no oitavo... Sim, tem dezasseis.
(Lá se vai o Nobel da Física, pensei eu.)
A mãe tenta explicar-lhe que devem dar-se bem com a colega, falar com ela, andar com ela. Mas o menino não está pelos ajustes.
- Eu só simpatizei com ela um dia. Foi no dia do baile. Depois não simpatizei mais.
- Mas que tipo de problema tem ela? É mental? É físico?
- É deficiente. É um atraso. É atrasada mental. Mas eu fui o único rapaz da minha turma que dançou com uma rapariga no baile, mãe.
- Não estou a ver quem é essa tua colega. Como era o vestido que usou no baile?
- Não me lembro.
(A mãe continua a tentar recordar a colega de que o filho falava antes. Tenta conseguir uma descrição.)
- Ela é magra ou é «forte»? - perguntou a mãe. Recordem-se de que o Português não era a língua materna dela.
- Ela é gorda, mãe. Mas não é forte.
...
Ora bem, eu podia esmiuçar isto, mas preferi recordar os meus colegas de escola quando tinham doze anos. Eram tontos, eram, mas não eram assim tão parvos e tão ignorantes. Nem tão imaturos no que diziam, como este menino que é de uma falta de coerência no discurso que dá dó. O menino foi o caminho todo a armar-se em janota, mas a dizer disparates que só ouvidos. Depois, cada vez que ele repetia «atrasada» para referir-se à tal colega que teria um problema... Eu até tremia. Nunca ninguém explicou àquele génio que não deve falar assim dos seus colegas??? Aparentemente não. Assim como ninguém o ensinou a contar, nem a conhecer a História recente do seu país ou, pelo menos, o nome dos protagonistas. Eu lembro-me de ser bem pequenita e saber na ponta da língua que o Presidente era o Mário Soares e o Primeiro Ministro era o Cavaco Silva (credo). Podia não saber mais nada sobre eles, mas sabia isso. Ao que parece, esperar ganhar o Nobel da Física excluí a possibilidade de saber outras coisas. Mas pior que não saber é procurar desculpas para a ignorância, coisa que agora abunda, não apenas em miúdos. Há coisas que todos temos a obrigação de saber. Quanto mais crescidos, mais temos de conhecer. Arranjar desculpas para o desconhecimento de coisas óbvias é hoje quase uma espécie de desporto nacional prestes a ser parte das modalidades olímpicas, cujas provas ganharemos com orgulho porque muito provavelmente estaremos sozinhos nelas. Ganharemos por falta de comparência de putativos adversários. É o que temos, minha gente, é o que temos.
Como este menino há muitos adultos. Adultos que justificam o injustificável, que vivem da maledicência sem um pouco de compaixão pelo próximo, sem procurarm «calçar os seus sapatos», que nem sequer sabem que «atrasada» não é palavra que deva ser utilizada para designar ou descrever alguém. Isto devia corrigir-se em pequeno e o miúdo, apesar de parvo, ainda tem alguns anos para arrepiar caminho e mudar. Os adultos que permanecem nestes erros é que já não têm solução possível e isso é triste. Triste e terrível.