terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Injustiça carnavalesca


Irrita-me no Carnaval este seu estatuto de coisa só para alguns. Não é feriado, mas uns têm tolerância de ponto e os outros não. Há pouco precisei de sair e vi algumas famílias a andarem no seu passeio da tarde. Por cá, o moço foi trabalhar e conheço mais uns quantos casos assim. 

Ok, o Carnaval não é feriado, como já disse, não é festa religiosa nem nada que se pareça. Mas acho que se é para uns, devia ser para todos e, assim, ou deixa de merecer a tolerância de ponto que muitos recebem ou passa a feriado e chega a todos. Não ser carne nem ser peixe é que não tem sentido nenhum.

A Menina Quer Isto LXXXV


Na actual edição da revista Ler (Inverno 2016/2017), surge um enorme texto de Timothy Garton Ash sobre privacidade e liberdade de expressão. No final do artigo, percebemos que o que ali está reproduzido corresponte ao prefácio e ao séptimo capítulo do seu novo livro intitulado Liberdade de Expressão, publicado este mês pela Temas & Debates.

O texto que surge na revista ocupa um total de vinte e oito páginas, o que parece inicialmente um exagero num periódico, tornando-se depois numa leitura inquietante e muito interessante. Obviamente, no final surge a vontade de continuar a ler mais e para isso aí está o livro, quentinho ainda. 

O texto é inquietante na medida em que aborda questões actualíssimas, muitas delas presentes de alguma forma no nosso dia-a-dia, mas nas quais tendemos a pensar pouco. As redes sociais são mesmo o aspecto mais referido pelo autor para ilustrar a perda de privacidade a que nos temos sujeitado, bem como ao mau uso da liberdade de expressão, que culmina muitas vezes num ataque e em danos à nossa reputação. Ilustrando o que vai dizendo com exemplos, uns mais conhecidos do que outros, o autor vai procurando mostrar que o mundo em que vivemos e a nossa ingenuidade conduz-nos muitas vezes a partilharmos mais do que seria vantajoso, alertando para as consequências que daí podem surgir. Cada vez mais o ser humano é penalizado em algum momento da vida por coisas ditas, feitas e publicitadas no passado. Mais: recorda-nos que tudo o que entra na internet fica lá para sempre e que a nossa reputação pode restaurar-se (ainda que em processos longos e difíceis), mas jamais a nossa privacidade. 

É, portanto, um texto que inquieta porque expõe com exemplos factuais, acontecidos num passado mais ou menos distante, o que esta cosmópolis, como lhe chama o autor, pode fazer por nós. Se por um lado nos permite a ligação a pessoas que nunca conheceríamos de outra forma, também nos expõe mais do que aquilo que sonhamos. E pior: quando pensamos que está tudo controlado, que só dizemos o que queremos, que só sabem o que queremos que saibam, estamos normalmente muito enganados. Facebook e quejandos sabem mais sobre a maioria de nós do que seria desejável. A verdade é que contribuimos e muito para que tal aconteça. Pensamos que estamos a partilhar uma coisa sem maldade alguma com os nossos amigos e acabamos a fornecer dados sobre nós à empresa e ao mundo. Acredito que se o Facebook fizesse um dossiê com as informações que recolheu sobre cada utilizador, não havia sala neste mundo capaz de albergar tamanha quantidade de informação. E nós, inocentes, lá vamos mexendo nas definições de privacidade, achando que assim nos protegemos mais. Como explica Timothy Garton Ash, somos pequenos ratos nesta luta contra grandes gatos e cães.

Foram vinte e oito páginas que se leram de uma assentada e que mostram que a liberdade de expressão colide, muitas vezes, com a nossa privacidade. Atenção que o autor não defende que se devia limitar a liberdade de expressão. No fundo o que faz é mostrar que tem de existir sensatez no que se diz e no que se faz de modo a preservar-se aquilo que de mais nosso temos: o direito à paz, a só revelarmos o que queremos, a podermos manter como privado aquilo que não desejamos dar a conhecer. O que é complicado é manter essa privacidade quando escancaramos a boca para o mundo e contamos sobre nós o que devemos e o que não devemos contar. É complicado exigir respeito pela nossa privacidade quando somos os primeiros a espalhar por aí tantos pormenores sobre as nossas vidas (mesmo que nem demos conta de que o fazemos). No fundo, falamos tanto que quando desejamos silêncio, o nosso e o dos outros, pode ser já tarde para consegui-lo. E, neste sentido, o caso dos jovens e crianças que utilizam as redes sociais também é abordado pelo autor, na medida em que as consequências para o que é dito e feito podem ser imensas. Como exemplo ilustrativo, o caso de um jovem que se suicidou quando viu tornar-se viral um vídeo seu que foi alvo de chacota pela internet fora. Como este caso, tantos outros. O facto de muitos ainda não olharem para a internet como um oceano sem fim, cheio de tubarões e onde somos apenas uns marinheiros de água doce é preocupante. Este mundo virtual não tem fronteiras e quem acha que tem está redondamente enganado. Julgamos que é algo facilmente controlável, mas frequentemente nós e os nossos dados é que estamos a ser controlados, sendo material precioso para quem deles vive. Por isso, saber o que se diz é fundamental, saber a quem se diz e como nos apresentamos também. Não é à toa que muitos blogues e páginas do Facebook funcionam sob pseudónimo. Ainda que continuemos a ser muito indefesos para lutar contra os grandes perigos deste mundo em linha, são pequenas precauções que talvez dilatem a nossa liberdade de expressão. Se vou dizer mal do meu trabalho, é bom que não saibam quem eu sou, sob pena de um dia ter uma má surpresa. Se não quero que uma parte dos meus amigos saiba que escrevo num blogue para poder ter a liberdade de dizer o que quiser, então convém tomar precauções nesse sentido. Enfim, não é fácil viver com olhos na nuca e com receio de tudo, mas é preciso ter cuidado. É preciso, sobretudo, ter a consciência de que temos de ter cuidado. A Capuchinho Vermelho, neste mundo, não sobrevivia meio minuto: o Lobo Mau nem lhe daria tempo de chegar perto da casa da Avozinha.

Por tudo isto, quero continuar a ler este livro. O tema é interessante e actual. É inquietante, mas real e os exemplos são alertas para o que a internet já conseguiu. É um facto de que nos divertimos muito com ela e que, se de repente a eliminassem da nossa vida, pareceríamos tontos sem saber muito bem como viver a partir de então. No entanto, e como em tudo na vida, o facto de ser divertido não faz significar que possa fazer-se tudo. Nem o facto de termos liberdade de expressão deve querer dizer que devemos dizer a totalidade do que nos passa pela cabeça. Há coisas que são nossas e que ficando para nós contribuem e muito para que a nossa querida privacidade se mantenha tanto quanto desejamos.

A carta

Estimada escrava,

Serve a presente para informar-te de que estou a ver o fundo da minha tigela. Isso, em boa linguagem felina, significa que estás a expor-me à morte por inanição. Não me interessa que digas que há comida à volta nem que venhas cá abanar o pratinho (coisa que me eriça os pelinhos todos, ficas já a saber, ó parvalhona). Interessa-me que te chegues à frente e que faças "refill" à tigela. É o mínimo que podes fazer por mim, que sou um deus nórdico extremamente bonito e atraente. 

Aguardo junto à despensa que cumpras o teu dever. A propósito: roubei-te o multibanco e escondi-o. Se queres reaver o teu cartãozinho fofinho, sabes o que tens de fazer. Depois vai buscar o que é teu ao fundo da caixa de areia. Boa sorte nisso. 

Saudações cordiais,

Senhor Gato


#vejoofundoaoprato
#vingancadefelinos
#multibancofedorento
#aseguirraptoagatica
#quemmandaaquisoueu
#deusnordicoisinthehouse
#mcaw

domingo, 26 de fevereiro de 2017

A Menina Quer Isto LXXXIV

Isto agora não pára com coisinhas que a menina quer. Acabei de saber agora pelo Facebook do próprio autor que este livro, tão esperado e tão desejado, já se encontra à venda:


Como podem ver, já está à venda aqui e em promoção pelo que não há desculpas possíveis.

A. M. Pires Cabral é autor de vários outros livros como o romance O Cónego, um dos melhores livros portugueses que já li e que aconselho a todos, O Porco de Erimanto, Os Anjos Nus, A Navalha de Palaçoulo (todos estes publicados pela Cotovia), A Loba e o Rouxinol (Círculo de Leitores), O Diabo Veio ao Enterro e Aqui e Agora Assumir o Nordeste (Âncora). Tenho ainda uma edição de O Homem que Vendeu a Cabeça, de uma editora de que não recordo o nome. E agora uma confissão: tenho todos estes livros do autor, mas não os li todos. Porquê, se gosto sempre tanto do que escreve? Porque faço com os seus livros aquilo que faço com os do Saramago: vou guardando para ler aos poucos. São sempre tão bons que não quero perder em pouco tempo o prazer da primeira leitura. Sim, há sempre a hipótese de os reler, de voltar a eles as vezes que quiser, mas a primeira leitura, e a surpresa sempre agradável que permite, não se repete e por isso é um gosto que se vai saboreando aos poucos para que não desapareça de uma só vez. 

A menina quer isto e sugere isto aos «quixoteiros» que se passeiam por estas paragens. Ainda não li os contos de Singularidades, mas duvido que desiludam. São de A. M. Pires de Cabral e isso é garantia de qualidade. 

Boas leituras!

sábado, 25 de fevereiro de 2017

Só mais uma para deixar entrar o sol

Só mais esta quixotada por hoje e prometo que me calo, que três já é muito.

De vez em quando dou uma voltinha pela blogosfera e visito blogues que estão nas listas de favoritos de outros blogues que gosto de ler e deparo-me com cada guerra, com cada salganhada nas caixas de comentários, com cada coisa mais feia de dizer-se (tanto da parte do bloguer como da do comentador), que agradeço aos céus este cantinho cor-de-rosa que aqui tenho. 

Com tanta guerra parva e prepotência pela blogosfera fora, mais vontade me sobra para vir aqui, abrir a janela e deixar entrar o sol.

É uma solução, é...


O Vermeer é que a sabia toda! Provavelmente o meu problema é mais antigo do que eu...

Então vejamos: quando faço um rabo de cavalo, rapidamente fico com uma espécie de auréola de cabelos louros pequenitos que se soltam à volta da minha testa. Ao fim de uma hora estou bastante esguedelhada e parece que andei à porrada com um guaxinim enraivecido e que ele ganhou. Gostava, que gostava mesmo, de conseguir um rabo de cavalo sem cabelitos a soltarem-se por todos os lados, mas parece que o fado não mo permite. Camões seria menino para deixar este problema imortalizado num soneto (já não é a primeira nem a segunda vez que me dizem que tenho uma beleza renascentista e se vos contasse que já uma pintora já me parou na rua para dizer-me isto e dar-me um cartão seu para me fazer um retrato um dia...), mas, infelizmente, já por cá não anda e, portanto, os meus revoltados cabelos doirados ficarão no esquecimento, ocupados apenas a enervar-me quando faço um rabo de cavalo.

Ora, este quadro de Vermeer, intitulado «Rapariga com brinco de pérola», retrata uma moça que resolveu bem a coisa: espetou com um lenço na zona problemática et voilà! Nem um pelinho se lhe solta por ali! Eu gostava de algo mais fresquinho, mas como tenho um cabelo mais indomável do que o presidente Trump (ainda que mais sensato... o meu cabelo, claro), talvez só mesmo imitando esta menina deixe de parecer uma figura divina num retrato medieval com uma auréola douradinha a proteger a cabeça em jeito de capacete. Isto uma pessoa tem de valer-se do que há, não é verdade? Pois se esta moça está a mostrar o caminho, é só enfiar um brinquinho de pérola e esperar mais convites para posar para um quadrinho catita.

Nota: Nunca compareci para ser pintada pela senhora. Mas agora reparem na coincidência: sem que alguma vez eu tivesse contado isto a algum dos meus antigos colegas de trabalho, vim a saber que uma antiga colega de História me usava como exemplo para explicar aos alunos o ideal de beleza renascentista. E agora um bocadinho de gabarolice: usava-me a mim e ao quadro «O Nascimento de Vénus». Assim dá gosto!

A Menina Quer Isto LXXXIII



Gosto muito de ler Pirandello. É um autor capaz de tratar temas sérios e intemporais criando situações cómicas ou ridículas que nos fazem rir. Rimos, todavia acabamos por pensar no que acabámos de ler e inevitavelmente temos de reflectir sobre aquele problema que é da personagem, mas que é também de todos nós. Talvez não tão exagerado como no livro, mas muitas vezes aquilo que as personagens vivem, nós também vivemos, ainda que de forma mais saudável. Estou, por exemplo, a pensar na personagem do romance Um, Ninguém e Cem Mil: um marido que ouve a esposa dizer-lhe que tem o nariz ligeiramente torto. Esse comentário da mulher vai encher a cabeça do protagonista até à loucura, mostrando-nos pelo caminho que nunca sabemos como os outros nos vêem. Nós temos uma ideia de nós próprios, mas os outros enxergam-nos de outra maneira e nunca chegamos verdadeiramente a saber o que vêem eles afinal quando nos olham. Bom, pensando assim isto é um bocadinho inquietante, mas acho que ninguém são enlouquecerá a pensar nisto. Ninguém à excepção da personagem de Pirandello que, incapaz de conseguir digerir o comentário da esposa e os muitos pensamentos que dele derivam, entra numa espiral de acções loucas que terminam com um protagonista completamente aniquilado pelas preocupações provocadas por um nariz torto e pelo medo de não saber o que dele pensam os outros. Ou seja: Pirandello pega em aspectos muito humanos e exagera-os, expõe-nos ao ridículo de modo a que nós, depois de rirmos, também digamos «Mas espera lá: isto faz sentido e eu nunca tinha pensado nisso!».

Pirandello recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1934. É muito conhecido como dramaturgo, mas escreveu também contos e romances. Dele já li três livros e garanto-vos que todos eles são inquietantes, ainda que bastante capazes de nos arrancar uma gargalhada. Tenho por ali mais dois em lista de espera (contos e duas peças de teatro). No entanto, ontem fiquei a saber que a Cotovia publica estes pequenos volumes com algumas peças do autor (penso que há um terceiro livro da mesma colecção, mas que está esgotado). Fiquei interessada, até porque o preço é simpático. Pirandello é daqueles autores que jamais desilude, pelo que podemos comprar todos os seus livros com a certeza de que será dinheiro bem gasto. Por isso, a menina quer mais isto. Como são pequenitos, encontram bem espaço onde se enfiar e se não encontrarem, a pilha da mesa de cabeceira ainda não chegou ao tecto e poderão sempre ir para lá.

Nota: As imagens, como bem se vê, saíram da página da Wook.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

O beneficiário

Ainda nem vos contei quem beneficiou imenso desta minha vida desafogada de horas que parece não ter fim à vista. Foi, sem dúvida, o Senhor Gato. O meu Senhor Gato (quando ele ficar mais velho, à semelhança do gato de Os Maias, passará a Monsenhor Gato) tem um pelo tramado. Parece de peluche e faz nós que até assustam. Também não gosta lá muito de ser penteado, pelo que antes, com um trabalho que não acabava nas horas de um dia, penteá-lo não era tarefa diária.

Como agora sou uma desocupada, penteá-lo diariamente passou a ser mais fácil. Infelizmente, continuo a precisar de apanhá-lo a dormir para poder enfiar-lhe o pente e o Furminator no pêlo, mas se estiver para aí virado, acaba por deixar. E depois é vê-lo diminuir, diminuir... O Senhor Gato até perdeu as anquinhas! Parece que afinal era pêlo morto. Agora até percebo que é magrinho, apesar dos seus seis quilinhos. Está tudo muito bem distribuido, é o que é. Mas tem barriguinha. Tem ali umas «gorditas» que lhe apareceram depois da castração.

Agora o Senhor Gato já só tem um nó. É um senhor nó, diga-se, mas está no peito, numa zona que ele se recusa a deixar pentear. Aquele já só lá vai com uma tosquiazita, mas tenho esperança de que este ano, em vez de ter de despi-lo todo, possa tosquiar apenas a barriguita e essa parte do peito. Pode ser que depois ele consiga ganhar alguma tolerância ao pente naquela zona e para o ano nem precise de tosquia nenhuma.

E agora o serviço público: está aberta a época da mudança de pêlo. Vejo cada ninho a voar por aqui que nem imaginam. Sacai dos vossos aspiradores todos os dias e limpai, limpai, limpai. O meu já não aspira nada de jeito. Por dentro deve ter pêlo suficiente para vestir meia dúzia de gatos. Vejam a foto e imaginem todos os dias tirar qualquer coisa do género de cima de um gato... 


De génio, Sr. Ministro!

Parece que o senhor Ministro da Educação anda com ideias de dar mais uma reviravolta às escolas e consta que uma das medidas passará por tirar tempos de aula ao Português e à Matemática. 

Acho que sim. Ele já são tão proficientes a ler e compreender o que lêem, a escrever com lógica e eficácia comunicativa, a falar, seja uma oralidade preparada ou espontânea, que se calhar até pode é eliminar mesmo o Português do Currículo dos alunos. Substitua a disciplina por, sei lá, Introdução ao Estudo da Língua dos P's, PlayStation e Cidadania, Técnicas Laboratoriais de Linguados e Apalpões. Na loucura podem substituir o Português por Ciências do WhatsApp e do Snapchat. Português, que coisa mais estúpida para se ensinar a quem já lê tanto (mensagens do WhatsApp e feed do Facebook), a quem fala tão bem ("hadem de ver: é as melhores mudanças c'a gente já vimos na escola! Assim não haverão percas de tempo nas aulas secantes de Português.") e a quem escreve ainda melhor ("derrepente o menistero acabava era mazé com a xcola. Poriço bora tod@s fazer 1 manif a ver se deicham a jente ir sossegados para caza que temos jogos e cenas + fixes pa fazer"). 

Também já disse que consta que querem tirar horas à Matemática. 

2 + 2 = 5

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

A Menina Quer Isto LXXXII


Li uma entrevista do autor na última edição da revista LER e fiquei com muita vontade de ler este livro. António Araújo começou por querer ver as diferenças na cultura de esquerda e de direita, até que se apercebeu que maior do que essa diferença era a que existia (e existe) entre a cultura das elites e a cultura das não elites. Gosto de ler sobre este tema, sobre o modo como a cultura é entendida por intelectuais e pelas massas, bem como o modo como uns tendem a ignorar os gostos culturais dos outros. Lipovetsky tem trabalhado muito o tema da cultura que se alarga a outros que não os do costume e Mario Vargas Llosa também já fez a sua reflexão sobre as mudanças que têm acontecido no âmbito cultural, no modo como alguma coisa é considerada bem cultural (algo que deixou Llosa louco por lhe parecer que basicamente se anda a ver como cultura aquilo que está bem longe de o ser). Neste livro, a questão é tratada do ponto de vista português, o que lhe confere alguma graça. Gostei de ler a entrevista porque referia, por exemplo, o fenómeno José Rodrigues dos Santos por ser constantemente ignorado pelos intelectuais (cultura das elites), querendo ele entender-se a si próprio como um intelectual, embora pretenda também ser um best seller e, assim, chegar e muito às não elites. Ou seja: é como se isto da cultura fosse um jogo em que participam duas equipas que nem sequer querem jogar uma com a outra. As elites querem continuar com as suas óperas, os seus clássicos, as suas visitas aos museus onde estão as melhores obras de arte e as não elites querem estar sossegados com o Tony Carreira no Meo Arena e com o José Rodrigues dos Santos e o Domingos Amaral na mala (a propósito, na entrevista, o autor do livro conta uma história deliciosa sobre o escritor Domingos Amaral, autor de alguns romances históricos, e que nos leva a pensar em algumas coisas que os romances deste tipo nos tentam vender como verdades). Por isso a menina quer isto porque tem muita piada ver como (e contra mim falo) tendemos sempre a olhar de lado as escolhas dos outros, achando que as nossas são melhores e que o resto nem interessa.

Há algo de podre no reino do Arco do Cego

O Daniel Oliveira (um dos comentadores do programa «Eixo do Mal» publicou na sua página de Facebook uma fotografia do Jardim do Arco Cego, tirada ontem à noite. O grande problema do Jardim é que está completamente conspurcado com copos e mais copos de imperial que foram para ali esquecidos depois do que parece ter sido uma valente festivalada de verão. Mas não, não houve festival nenhum, nem bandas conhecidas a actuar: houve apenas mais um dia de um costume que deve saber muito bem, mas que não justifica a miséria em que fica aquele espaço público. 

Se algum de vocês já teve a oportunidade de passar naquela zona depois das dezasseis horas, mais ou menos, verificou com certeza que existem muitos jovens espalhados pelo Jardim do Arco do Cego e concentrados no passeio em frente a dois cafés que, pelo que percebi, vendem copos de imperial a cinquenta cêntimos. São mesmo muitos, acreditem. Já lá passei algumas vezes depois dessa hora e é um local que chama a atenção de quem passa por estar tanta gente concentrada no mesmo sítio ao mesmo tempo e geralmente segurando a mesma coisa: um (ou mais) copo(s) de cerveja.

Vejamos: não tenho nada contra este tipo de convívios. Todos nós no tempo em que estudávamos participámos em convívios destes, provavelmente com menos gente do que acontece ali, mas participávamos. Acho muito bem que se encontrem durante a tarde para conversarem e para beberem uma cerveja. O que não me parece normal é que o espaço por eles ocupado termine assim:


Nota: A foto foi retirada da página de Facebook do jornalista Daniel Oliveira, depois de já ter sido partilhada por outros utilizadores da rede social.

Nos comentários à publicação em que o Daniel Oliveira chama a atenção para este problema já há de tudo. Desde moradores indignados que dizem que lutam contra esta situação há muito tempo, passando por gente que aproveita isto para atacar os universitários e pelos próprios estudantes que, não raras vezes, se manifestam querendo mostrar que este país não é para jovens porque se critica um encontro saudável ao final da tarde. Também já houve muita gente a ir dizer que os serviços da Câmara, pagos com os impostos de todos nós, servem é para limpar isto e quem, dando uma lição de civismo, afirma que, para não abandonar o seu lixo à sua sorte, anda com um saco de plástico para apanhar tudo antes de ir embora. Claro que com uma coisa destas nunca poderia haver apenas uma interpretação das coisas. Quem ali comprou casa e vive com isto à porta do prédio nunca imaginou que tal viesse a acontecer. Para muitos dos alunos que ali se reunem, isto só acontece porque há poucos caixotes do livro. Há quem até já pergunte, bastante estupidamente diria eu, se quando vamos ao restaurante também levamos sacos para o lixo. Enfim, quando não há argumentos que justifiquem esta javardice, vale tudo...

Parece-me que os cidadãos, porque é de cidadãos que falamos sempre, que tentam fazer passar esta situação por algo normal que acontece porque os caixotes estão cheios não estão bem a perceber o que se lhes quer dizer. Levam a fotografia e o que ela procura mostrar como um ataque pessoal sem pararem para pensar que não há nada de pessoal nisto. O Jardim do Arco do Cego é tão público para eles estarem, como para os moradores da zona estarem com as suas crianças, os seus cães ou sozinhos. Ou mesmo para outros cidadãos passarem por lá. Só porque custa muito ir procurar outro caixote do lixo ou guardar os copos vazios num saco levado para o efeito, as outras pessoas têm de aturar isto? Querem encontrar-se? Façam-no! Querem imperial barata? Encham-se dela até deitarem fora, mas não lixem os outros. E, sobretudo, sejam todos homens e mulherzinhas e assumam que este panorama é nojento e só contribui para dar má imagem aos estudantes do superior (que, felizmente, não são, nem de perto nem de longe, um bando de javardos inconscientes como alguns parecem pensar). Imaginem uma coisa destas à porta da vossa casa e digam-me se gostariam de uma paisagem assim.

Saúdo, claro, todos os que são diferentes e procuram limpar o seu próprio lixo. Ainda que muitos queiram pôr todos os estudantes no mesmo saco, as coisas não são bem assim. Há quem limpe e não bufe. É como com os donos de cães: a maioria dos donos que vejo apanha as cacas dos cães, mas há sempre quem ache que a vida são só direitos e nenhuns deveres. 

O que é importante é que isto pare. Há quem diga que são precisas campanhas de sensibilização para que os meninos e meninas que frequentam o Jardim do Arco do Cego tenham a hombridade de colocar o lixo que fazem nos caixotes do lixo. Eu acho um bocado ridículo ter de andar a fazer campanhas de sensibilização como se faz com as crianças pequeninas, mas desta vez dirigidas a gente que anda de traje académico. Acho que até o mais apoucado dos estudantes sabe que o lugar do lixo é no lixo. Mas há quem avance com outras ideias. Cheguem a que solução chegarem, acho que importa ver que a cidade não é um caixote do lixo e que é de muito mau tom ou mesmo de grande prepotência deixar um jardim todo sujo só porque a Câmara tem a obrigação de limpar. Se evitarem esta bagunça, os serviços de limpeza não precisarão de dedicar tempos infindos ao jardim, podendo passar mais rapidamente para outras zonas da cidade. É só pensar um bocadinho que se chega lá. Acredito que ao fim da quarta imperial já custe um bocadinho, mas vá: muitos deles até devem ser bastante bons a matemática*. 


*Pelo menos percebem que imperial a cinquênta cêntimos é uma pechincha!

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Tempo português ou um regresso a casa

Tenho andado a ler o primeiro volume do Diário de Miguel Torga. A bem dizer, o primeiro volume publicado há uns anos pela Dom Quixote compreende os diários I, II, III e IV. Este foi um daqueles amores nascidos na livraria e que um outro amor resolveu: vi, há uns dois ou três anos, os quatro livros em que a editora da Leya arrumou os diários deste autor, acomodados numa caixinha especial preparada pela Dom Quixote para quem quisesse comprar todos os volumes em conjunto e não um a um, e um dia eles apareceram num restaurante, durante um jantar, como presente do meu moço, sempre atento aos meus desejos. Têm estado na estante e agora o primeiro volume dorme na minha cabeceira. 

Torga é Torga. Frase parva, eu sei, mas o que dizer de um escritor que da simplicidade dos seus montes e fragas escreveu linhas de enorme beleza, criou poemas que nos levam por ribeiros e árvores, por caminhos de pó junto de rebanhos e produziu reflexões que continuam a dar muito em que pensar? Torga é, para mim, um dos nossos maiores. Já o havia conhecido na prosa, depois na poesia, e agora conheço esta sua vertente diarística que conjuga escrita ficcional, poesia e impressões que as coisas do mundo lhe provocavam, levando-o à reflexão. Note-se que ele sabia bem que os seus diários seriam publicados, até porque Miguel Torga publicou os seus livros em edições de autor. Portanto, quem espera inconfidências amorosas e coisas parecidas esqueça. O que vemos é a mente de um escritor, a mente de um poeta e apenas conhecemos dos seus dias e dos seus pensamentos aquilo que nos quis mostrar. Mas aquilo que mostra é muito bom. Ver como uma qualquer data do calendário foi aquela em que nasceram versos únicos na nossa literatura é saboroso: parece que vemos o poema nascer em directo. Assim senti a leitura de "Ariane", poema que já conhecia, mas que nunca deixa de inquietar. É um poema sobre liberdade quando o seu autor estava privado dela, preso na cadeia do Aljube durante o Estado Novo. 

Mas os diários de Torga são para ser saboreados. Não são, parece-me, livros que se devorem, como sucede com outros que têm enredos alucinantes que somos incapazes de largar. Estes diários lêem-se com o mesmo vagar com que passavam os dias do autor e cada reflexão sua deve ser calmamente saboreada. Sim, porque Miguel Torga nunca nos entrega tudo de mão beijada. Pelo contrário: deixa-nos sempre a meditar sobre as suas palavras. Por isso, embora já vá no segundo diário, leio pacatamente porque cada dia de Torga é um mundo, mesmo que se resuma a uma impressão, a um desabafo, a um pequeno poema. 

Ora, se os diários de Miguel Torga pedem tempo e reflexão, sobram, ainda assim, minutos para encher com outras leituras. Podia dedicar-me à pilha de revistas por ler que vivem cá em casa, mas não seria a mesma coisa. Por isso, entre os dias do Torga, misturo o livro Astronomia, de Mário Cláudio. Recebi-o no meu aniversário, em Novembro, e como não andava muito voltada para autores portugueses, deixei-o parado desde então. Hoje fui buscá-lo para o tomar como intervalo para os passeios em São Martinho de Anta, em Leiria e em Coimbra pela mão de Miguel Torga (a propósito, sabiam que Adolfo Rocha adoptou este pseudónimo em homenagem a dois outros autores que muito admirava: Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno?). Duas boas leituras em bom português, proporcionadas por dois grandes escritores. De vez em quando sabe bem regressar a casa. 



Nota: As imagens das capas saíram da página da Wook. 

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Coisas simples, boas e peludas

Eu estou no sofá a ler e o meu gato vem deitar-se nas costas do sofá com a cabeça junto à minha cara. Conforme o tempo passa, ele deixa-se dormir e começa aquela respiração profunda e ritmada de um gatinho que anda pela terra dos sonhos. De vez em quando, uma patinha adormecida estica-se para tocar-me no ombro. Dorme, mas não se esquece que tem ali companhia. Mas o melhor é encostar a minha cara à sua cabeça fofinha e falar com ele em voz baixa. Não interessa o que lhe digo e, desde que lhe fale, começa logo a ronronar, mesmo sem deixar de dormir. Gosta que lhe sussurrem, que lhe dêem atenção, ainda que esteja em modo «belo adormecido». E eu adoro ouvi-lo ronronar e vê-lo abrir e fechar as os deditos das patinhas da frente como só faz quando está muito satisfeito. E tudo porque ouve a minha voz enquanto dorme. Depois acorda e semicerra os olhinhos para mim. São os beijinhos que sabe dar. 

Ter um animal de estimação é isto: são estes pequenos momentos que transformam uma casa num lar e um animal num dos melhores amigos que se pode ter.

(Quase) memórias

Ufa, já nem me lembrava de ter um dia tão atarefado, sem direito a almoço de gente de tão pouco tempo que tenho. Este dia quase chega para trazer à minha memória aqueles outros tempos em que se podia sempre acrescentar mais um apoio ou mais uma coisa no horário da professora de Português até ela passar umas belas doze horas (ou mais em dia de formações ou de reuniões) na escola. Quase trouxe à memória porque, felizmente, o facto de andar pela rua e de não estar fechada num edifício é suficiente para bloquear essa maldita lembrança e o cansaço extremo que tal vida originou. De caminho, continuo desempregada, mas bem. 

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Nem sei que título dar a isto

Doze anos, mãe ao lado. Ele fala português sem pronúncia, mas a mãe tem sotaque de algum país de leste, embora se perceba bem o que diz. O miúdo vai tagarelando pelo caminho. A determinada altura, o arrazoado chama-me a atenção. Aqui ficam algumas das pérolas que uma pessoa ouve num autocarro.

Olhando para uma parede do outro lado da estrada, o miúdo lê uns rabiscos pintados a spray.
- «Passos Coelho é ladrão.». Quem é o Passos Coelho, mãe?
- Então, foi primeiro ministro há pouco tempo. Mas tu não te lembras de ouvir falar no Passos Coelho???
(Alguns momentos de silêncio, pensei que já nem fosse dizer nada. Enganei-me.)
- Eu não sei disso de «primeiros ministros». Eu sou mais de ciências, de inventar coisas, de ganhar o Prémio Nobel da Física.

Falando de uma colega que, pelo que dizia, teria algum tipo de necessidade especial.
- Mãe, ela é deficiente e a avó dela chateou-se e disse às raparigas da minha turma que elas todas deviam ter filhos deficientes para verem como era. 
A mãe tenta perceber que história é esta e vai puxando pelo filho a ver o que dali sai. Ele vai acrescentando informação.
- Ela não tem o direito de falar assim com elas. Ofendeu-as... Ofendeu-as um bocadinho. Ela é deficiente, mas ela podia estar a usar livros do oitavo e anda a usar livros do terceiro!
- Como???
- Pois. E ela se andasse numa escola de deficientes já teria filhos. Se calhar já tinha dois ou três. Talvez já tivesse netos! Não, netos também não...
- Mas que idade tem ela? Dezasseis?
- Então, eu tenho doze e ando no sexto ano. No sétimo vou ter treze... Ora, ela devia estar no oitavo... Sim, tem dezasseis.
(Lá se vai o Nobel da Física, pensei eu.)
A mãe tenta explicar-lhe que devem dar-se bem com a colega, falar com ela, andar com ela. Mas o menino não está pelos ajustes.
- Eu só simpatizei com ela um dia. Foi no dia do baile. Depois não simpatizei mais. 
- Mas que tipo de problema tem ela? É mental? É físico?
- É deficiente. É um atraso. É atrasada mental. Mas eu fui o único rapaz da minha turma que dançou com uma rapariga no baile, mãe.
- Não estou a ver quem é essa tua colega. Como era o vestido que usou no baile?
- Não me lembro.
(A mãe continua a tentar recordar a colega de que o filho falava antes. Tenta conseguir uma descrição.)
- Ela é magra ou é «forte»? - perguntou a mãe. Recordem-se de que o Português não era a língua materna dela.
- Ela é gorda, mãe. Mas não é forte.
...

Ora bem, eu podia esmiuçar isto, mas preferi recordar os meus colegas de escola quando tinham doze anos. Eram tontos, eram, mas não eram assim tão parvos e tão ignorantes. Nem tão imaturos no que diziam, como este menino que é de uma falta de coerência no discurso que dá dó. O menino foi o caminho todo a armar-se em janota, mas a dizer disparates que só ouvidos. Depois, cada vez que ele repetia «atrasada» para referir-se à tal colega que teria um problema... Eu até tremia. Nunca ninguém explicou àquele génio que não deve falar assim dos seus colegas??? Aparentemente não. Assim como ninguém o ensinou a contar, nem a conhecer a História recente do seu país ou, pelo menos, o nome dos protagonistas. Eu lembro-me de ser bem pequenita e saber na ponta da língua que o Presidente era o Mário Soares e o Primeiro Ministro era o Cavaco Silva (credo). Podia não saber mais nada sobre eles, mas sabia isso. Ao que parece, esperar ganhar o Nobel da Física excluí a possibilidade de saber outras coisas. Mas pior que não saber é procurar desculpas para a ignorância, coisa que agora abunda, não apenas em miúdos. Há coisas que todos temos a obrigação de saber. Quanto mais crescidos, mais temos de conhecer. Arranjar desculpas para o desconhecimento de coisas óbvias é hoje quase uma espécie de desporto nacional prestes a ser parte das modalidades olímpicas, cujas provas ganharemos com orgulho porque muito provavelmente estaremos sozinhos nelas. Ganharemos por falta de comparência de putativos adversários. É o que temos, minha gente, é o que temos. 

Como este menino há muitos adultos. Adultos que justificam o injustificável, que vivem da maledicência sem um pouco de compaixão pelo próximo, sem procurarm «calçar os seus sapatos», que nem sequer sabem que «atrasada» não é palavra que deva ser utilizada para designar ou descrever alguém. Isto devia corrigir-se em pequeno e o miúdo, apesar de parvo, ainda tem alguns anos para arrepiar caminho e mudar. Os adultos que permanecem nestes erros é que já não têm solução possível e isso é triste. Triste e terrível.

Até aqui chegámos

Eu nasci a meio da década de oitenta. Na década de noventa, quando já tinha uns oito anitos e daí em diante, comecei a ir sozinha a casa das minhas amigas que moravam aqui na zona. Encontrávamo-nos e da casa de uma íamos para a de outra e assim andávamos. Íamos juntas ao quiosque para comprar as saquetas de cromos da Barbie e depois corríamos para a casa de alguém para fazermos as necessárias trocas e colarmos tudo bem coladinho nas cadernetas. Ao fim do dia regressávamos calmamente às nossas próprias casas. No dia seguinte, escola outra vez, trabalhos de casa e nova ronda pela zona umas com as outras. Assim fomos felizes e se passaram anos, até que os cromos dessem lugar a conversas sobre rapazes e a trocas de cd’s.

Lembrei-me disto porque aqui no prédio acontece uma situação que para mim, nascida em oitenta e cinco e criada na liberdade dos anos noventa, é inconcebível. Os meus vizinhos da frente têm uma filha que deve ter uns doze anos. No mesmo prédio, mas num andar superior vive a avó materna e a miúda vai para casa dela todos os dias, jantando lá e tudo. Até aqui, tudo bem. Mas o que me causa estranheza acontece quando ela volta para casa dos pais. Ouço a porta do elevador abrir, a miúda a tocar à campainha de casa e a dizer alto para o telemóvel «Beijinhos!», tornando a repetir o mesmo quando a chave de casa dos pais começa a rodar na fechadura. Isto todas as noites. Ou seja: a miúda vem ao telemóvel com a avó (que, repito, mora no mesmo prédio, mas uns andares mais acima) e só desliga quando entra em casa. 

É triste este mundo a que chegámos. Esta geração é, talvez, a que mais coisas tem ao seu dispor, mas é de todas a mais privada de liberdade. Paradoxalmente, provavelmente aos dezasseis (ou antes) andará pelas ruas do Bairro Alto ou de Santos, mas por agora até para descer uns andares tem de o fazer ao telefone com a avó para garantir que chega bem à sua casa, que fica no mesmo prédio. 

Muitas vezes os meus alunos falavam comigo sobre isto: sobre a falta de liberdade que sentiam. Muitas vezes também nós, professores, concluíamos pelo comportamento à segunda-feira o grau de encerramento em casa durante o fim-de-semana. Tinham tudo: brinquedos, jogos, roupas caras, faziam viagens extraordinárias com os pais. Contudo, se lhes apetecesse comer umas bolachas, mesmo que tivessem catorze ou quinze anos, não tinham a liberdade de ir ao supermercado no fundo da rua. Sabiam que, se preciso fosse, poderiam sair à noite, pois os pais iriam levá-los e buscá-los. Mas essa coisa básica de ir para a rua, ir a pé a casa de uma amiga, isso não podiam. Só se um dos pais os pudesse levar. E eis que agora, que já nem lhes posso contar isto, me deparo com esta situação que mostra bem o medo que existe nos nossos dias e como a vida deu às nossas crianças e jovens com uma mão para facilmente lhes rapinar com a outra.

domingo, 19 de fevereiro de 2017

A História de um Rapaz Mau - o balanço


Terminei a leitura de A História de um Rapaz Mau há alguns minutos, por isso o balanço que faço é mesmo fresquinho.

Este livro, publicado pela Tinta da China, é, antes de mais, uma delícia no que à edição diz respeito. Aliás, esta editora é bem conhecida pelos belos volumes que publica e aqui está mais um exemplo. É um livro de pequenas dimensões, de capa dura e com um reforço vermelho na lombada. O tipo de letra usado, as margens e a inclusão de ilustrações de um contemporâneo do autor dotam a leitura de maior conforto, pois aqui e ali descansamos ao apreciar os desenhos que ilustram certas personagens ou momentos da acção.

Agora, relativamente ao conteúdo: desenganem-se os que iniciam a leitura à espera de encontrar um Tom Sawyer porque terão uma desilusão. O facto de a contracapa avisar que este livro terá servido de inspiração para uma das mais famosas personagens da literatura americana pode conduzir ao erro. Eu já sabia que não iria encontrar algo parecido ao que descobri nos livros de Mark Twain porque há uns anos a minha mãe leu este livro e experimentou a tal desilusão que acabei de mencionar-vos. Portanto, eu sabia ao que ia e foi com essa preparação que comecei a ler.

Este rapaz não é verdadeiramente mau. Pelo que percebi, o título vem do facto de o protagonista estar longe de ser o anjinho que apareceria noutras obras literárias. É um rapaz normalíssimo que vai à escola, que tem amigos e inimigos, que entra em brigas, que se apaixona, que participa em partidas várias, que sofre desilusões, que se diverte e que pensa sobre as coisas que acontecem à sua volta. Os disparates que ele faz recordam os que nós fazíamos em miúdos precisamente porque são disparates possíveis, não são completas aventuras impossíveis de acontecer. Aliás, o livro tem o seu quê de autobiográfico, portanto a infância e adolescência do autor estão muito espelhadas aqui. Deste modo, é um livro que se lê com um enorme prazer, porque ali tudo é possível, porque por muito caricata que seja a situação, nós podemos ter passado por coisas parecidas. Note-se, apesar de tudo, que falamos de um jovem na Nova Inglaterra da segunda metade do século XIX, e portanto considerem-se as devidas distâncias. Todavia, o que quero dizer-vos é mesmo que enquanto no Tom Sawyer nos deliciamos com as enormes alhadas em que o protagonista se mete, aqui deliciamo-nos também, mas de outra forma. Aqui há um grupo de crianças que vive a infância e que faz um ou outro disparate tão pouco grave que inevitavelmente pensamos «Mas isto não é um rapaz mau!». A ajudar, o modo irónico como o narrador adulto descreve as situações confere-lhes muita graça, por simples que elas sejam. Ou seja: não convém estar a comparar este livro com o de Mark Twain porque vamos estar a perder a oportunidade de ler uma história bem contada e divertida. Se este este livro fala de um rapaz «mau», é por oposição a outros, do género Eusebiozinho n’Os Maias, que nada faziam e que se limitavam a «estar».

Ao ler este livro, e fi-lo em praticamente dois dias, a sensação que tive sempre foi a de verosimilhança. Isto porque os episódios narrados têm muito de plausibilidade, como já vos disse. Além disso, embora o livro seja narrado por um adulto, a graça com que conta certas situações, as comparações que lhe ocorrem, as relações que estabelece entre o que sucedia à criança e o que sucedeu a personagens literárias nos livros em que vivem enriquecem o texto. É como se fosse a voz de um adulto que mantém toda a graça e simplicidade de uma criança, que ainda consegue saber como pensam as crianças. Mas é sobretudo a voz de quem olha para trás e vê com muito carinho as peripécias vividas num outro tempo. 

Se tudo o que disse antes não chegar para vos levar a ler este livro, espero que o maravilhoso e engraçado excerto que aqui vos deixo seja capaz de convencer-vos. Este pedacinho do texto aparece num momento em que o protagonista, sofrendo um desgosto de amor que resolveu tornar maior do que aquilo que era na realidade, se refugia num cemitério para reflectir nesta sua desilusão. Ao observar as lápides, verifica que muitas têm gravados anjos de carinha redonda e com umas asas abertas que parecem partir da zona das orelhas (lembrem-se dos enfeites natalícios porque há muitos com anjinhos nesse estado). Ora, diz-nos sobre isto o narrador:

«Aqueles emblemas mortuários davam alimento adequado à minha meditação. Costumava deitar-me na erva alta, congeminando sobre as vantagens e desvantagens de se ser anjo.

Esqueci-me do que pensava serem as vantagens, mas lembro-me muito bem de ter ficado num inextricável labirinto a respeito de dois problemas, a saber: como podia um anjo, sendo ele constituído apenas por uma cabeça e duas asas, sentar-se quando estava cansado? Ter de sentar-se na parte de trás da cabeça parecia-me ser uma incómoda solução. Mais: onde guardariam os anjos os indispensáveis artigos (tais como canivetes, berlindes e bocados de guita) que os rapazes, no seu estado terreno de existência, costumam trazer nos bolsos das calças?

Eram intrincadas perguntas, às quais nunca consegui dar respostas satisfatórias.»

in A História de um Rapaz Mau
de Thomas Bailey Aldrich
Tinta da China
293 páginas

Nota: Se o resto não vos convenceu, talvez esta última informação vos convença: este livro custa normalmente 17.97€, mas está a 12.58€ na página da editora, aqui

Telecaca

Ontem andei a fazer zapping e, sendo cliente NOS, tenho aquele canal onde antes passava a «Casa dos Segredos» durante um dia inteiro. Qual não é o meu espanto ao ver que o canal está aberto, com umas caras que nunca tinha visto, uns quartos com camas, gente numa cozinha a preparar o jantar... Ou seja: tudo como se um novo reality show tivesse começado. Não sabia de nada, por isso fiz uma pesquisazita e percebi que aquilo não é bem um reality show, é mais um talent show que resvala a passos largos para outra coisa que não se percebe bem o que seja. Aquilo é um programa de dança no qual há uma série de concorrentes que ensaiam e se mostram numa gala semanal. Programas desses já nós vimos (ou não vimos, mas sabemos que existem) até ao vómito. O upgrade que supostamente agora foi feito a esse tipo de programas foi... mostrar a vida dos concorrentes durante vinte e quatro horas num canal que nem toda a gente tem. Portanto, além de verem as galas ao fim-de-semana, podem ver os dançarinos a tomar banho, a dormirem nas suas camas, a ensaiarem durante horas, a prepararem as refeições... Enfim, todo um mundo de imagens muitíssimo interessantes e capazes de competir em emoção e suspense com as nossas máquinas de lavar a roupa em pleno processo de centrifugação.

Expliquem-me, por favor, quem quer ver durante vinte e quatro horas a vida de uns quantos jovens que se inscreveram num talent show de dança para mostrarem o que sabem fazer, aprender mais umas coisas e levar um prémio no fim (que nem sei qual seja)? Ver o desempenho nas galas, bom, até posso perceber que tenha a sua piada, mas vê-los conversar em quartos claustrofóbicos cheios de beliches cor-de-rosa (foi uma das imagens que vi ontem), não é o cúmulo do ridículo? Nos reality shows assumidos a coisa já era má o suficiente, mas os concorrentes iam mesmo para aquilo. Não se lhes esperava qualquer talento além da maledicência, mas esta gente foi, acho eu, para dançar (ainda que soubessem que o resto da sua existência também seria filmada e transmitida). O que interessa, então, ao público ver HORAS de ensaios, mais os banhos que se lhes seguem, mais as refeições que vão fazendo? Quem é tão desocupado a ponto de perder tempo a ver tal coisa? Mais: com tantos canais disponíveis, quem vai parar naquele a seguir durante vinte e quatro horas a vida de dançarinos que concorrem a um prémio? Juro, fiquei com um nó na cabeça a pensar nisto depois de ter percebido o que raio estava a dar naquele canal. Não consigo imaginar coisa mais ridícula e olhem que eu vi o nariz de plasticina que puseram ao Diogo Morgado no início da novela nova da TVI. Mesmo assim, este voyerismo para com dançarinos de um talent/reality show acho que bate tudo aos pontos. Nunca me passou na cabeça que a dança pudesse encher um canal durante vinte e quatro horas, contudo começo a achar que eu é que tenho vistas curtas porque pelos vistos tudo serve para tudo.

Não sei que audiências o canal tem, mas julgando todos pela minha bitola, imagino que tenha poucas. É que ver dançar é uma coisa, ver gente a viver é outra. E se a curiosidade é ver como vivem os outros, leiam livros que ao menos vêem o que fazem diferentes personagens em diferentes situações e contextos. Sempre ocupam melhor o tempo do que a babar para cima de um ecrã que vos mostra gente a fazer o jantar, a conversar na cama, a ensaiar um hip hop...

Viver no limite

Viver no limite, no fio da navalha, correndo riscos sérios, mas sentindo uma adrenalina que não se sente de outra forma é ao mudar os lençóis da cama com dois gatos na mesma divisão. Acreditem: sente-se uma mistura de diversão com receio, de gozo com medo, porque aqueles dois lunáticos de olhos bem abertos ficam c-o-m-p-l-e-t-a-m-e-n-t-e doidos, correndo, pulando, e usando as unhas para puxar os lençóis para onde querem enrolar-se neles. De vez em quando lá levamos com uma unhita mais afiada, mas é um acidente. Eles não nos querem magoar. Estão demasiado ocupados a desfazer a cama que estamos a fazer para pensarem em matar-nos.

sábado, 18 de fevereiro de 2017

A Menina QUERIA Isto, Mas Já Tem V


A menina queria e com a ajuda de um cartão de oferta da Fnac, mais o dinheiro que tinha no meu cartão de aderente Fnac (pontos que se amontoaram nos últimos dias devido à mais recente paixão do moço: uma PlayStation 4 e mais uns jogos e auriculares ou lá o que seja aquilo para a dita consola), lá vieram por um preço simpático. O livro do Paul Auster é tão grande, mas tão grande que depois de tirar esta fotografia (e é muito difícil nesta casa fotografar-se um objecto sem que apareça um gato), a minha gatica o utilizou para encostar-se, imaginem! São oitocentas e setenta páginas. Ainda não percebi como não tomaram a decisão de o dividir em volumes, tal é a moda portuguesa, mas ainda bem que está assim. Está um bonito livro gordo, que é o que se quer. 

Um presente só porque sim

No Natal e nos aniversários já nós sabemos que nos vão dar presentes. Por isso recebê-los quando não há nada para celebrar, sem que o esperemos, é muito bom. O meu moço é maravilhoso em tudo e também nisso sabe fazer umas surpresas espectaculares. Ele sabia que eu tinha namorado uns ténis muuuuuito acima do meu orçamento de desempregada (que é inexistente) e, de modo muito querido, ofereceu-mos. Têm brilhantezinhos, coisa que eu, pindérica assumida, adoro. São lindos, lindos, lindos, mas mais ainda foi o seu gesto e o apoio que tem sido na decisão que tomei e nestes meses em que o trabalho ainda não apareceu. Há pessoas que são mais do que companheiros: são verdadeiros pilares nas nossas vidas. Eu tive a sorte de encontrar um moço assim e estou muito grata por tê-lo todos os dias.

E agora os ténis, apreciados por um verdadeiro conhecedor de calçado desportivo:




sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

O Estranho Caso do Dr. Jekill e do Sr. Hyde e outros contos - o balanço

Se ainda não leram O Estranho Caso do Dr. Jekill e do Sr. Hyde e outros contos, corram a lê-lo. O primeiro conto, «O Furta Cadáveres» é muito bom e parte de uma história de que alguns já ouviram falar e que aconteceu mesmo. O segundo conto, confesso, foi um pouco aborrecido. Esperava que alguma coisa surpreendente sucedesse e me agarrasse finalmente ao enredo, mas tal não aconteceu. Agora, o famoso conto que dá nome ao livro é absolutamente EXTRAORDINÁRIO! É um clássico, portanto todos sabemos por alto o que por lá se passa. Contudo, o texto vai muito, mas mesmo muito além do pouco que sabemos sobre ele. O narrador não participa na história, mas consegue contá-la de forma muito interessante. Para chegar ao que realmente importa, parte de um passeio pela cidade feito por dois amigos de poucas palavras. Subitamente param junto de uma porta que desperta a sua atenção e conversam sobre aquela casa. Um deles inicia, então, um relato sobre alguma coisa que viu acontecer no passado, envolvendo o habitante daquele lugar. Ora, esta história contada por um dos homens tem relação com algo vivido muito intensamente pelo outro e, assim, sempre na terceira pessoa, esses acontecimentos são-nos narrados. A forma como isso é feito impede que o mistério se perca, pelo contrário: adensa-se. Os vários detalhes que nos são dados fazem-nos ir levantando hipóteses sobre o que está a acontecer, o que mostra que a mestria com que tudo é narrado leva a que nos esqueçamos dos nossos conhecimentos prévios sobre a obra. Damos por nós a imaginar que o que pode ter acontecido é isto ou aquilo. Procuramos explicar por que motivo o testamento do Dr. Jekyll diz o que diz e afinal a resposta é tão óbvia. Mas está tudo escrito de uma forma tão simples que deixamos de ver o óbvio e complicamos tudo. No final, as revelações feitas e as justificações para alguns actos são espantosas. 

Este texto é um daqueles que deixam os amantes de boa literatura de barriguinha cheia. O primeiro conto do livro já satisfazia muito os leitores mais exigentes. Ficamos somente com pena que não seja maior. Mas este último, o famoso conto de Robert Louis Stevenson, é, quanto a mim, literariamente perfeito. Tanto pelo que é contado como pelo modo como é contado. O recurso às cartas e aos objectos confiados a amigos para serem verificados em determinada circunstância conferem ainda maior mistério ao texto e, tendo ele a natureza que tem, com um médico adorado por muitos e um homem muito mau capaz de cometer os piores crimes, mistério é o que se quer. Por isso, aconselho-vo-lo. É uma leitura única.


Feliz e recheado Dia do Gato!

Por ironia do destino, hoje, que dizem ser o Dia do Gato, chegou a encomenda de comida para os felinos que por cá moram. A satisfação e a curiosidade são evidentes. Ainda bem: querem-se gatinhos felizes e faz-se por isso. Missão cumprida: despensa felina reabastecida (e com um pratinho de cerâmica de oferta)!


(Estão a cheirar os sacos errados. Devem querer saber o que o outro come...)

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Se o olhar matasse...

...esta quixotada não existiria.

Hoje precisei de apanhar um autocarro.  Quando cheguei à paragem da Carris, verifiquei que estavam três pessoas sentadas no banco: uma idosa que conversava com outra de meia idade sobre doenças e uma terceira que assistia de forma coscuvilheira ao que as outras diziam, mas que teria sensivelmente a minha idade. Fiquei de pé junto a um dos suportes da paragem, mas de repente percebo que antes de mim tinha chegado uma senhora idosa apoiada numa bengala que aguardava de pé. Olhei com atenção para o banco para tentar perceber o que se passava e, sem compreender, disse à senhora que ela devia estar sentada. Ela olhou para mim com muita tristeza e disse que sabia disso "mas as pessoas...".

Achei inacreditável que neste mundo de bosta já ninguém veja os mais velhos, ninguém, muito convenientemente, enxergue uma bengala. Dirigi-me à moça que teria a minha idade e disse "Desculpe, mas esta senhora precisa de sentar-se."  Ela levantou-se e pediu desculpas, afirmou que não viu. A senhora lá se sentou, finalmente.

A moça que se levantara veio pôr-se de pé ao meu lado. Olhou para mim e eu sorri-lhe. Que fazer? Sou uma afável sem remédio. Mas de volta tive um olhar capaz de gelar o sangue a alguém que não se estivesse largamente a borrifar para uma pessoa tão parva. Aquele olhar dizia qualquer coisa do género "Sua vaca, fizeste-me ficar de pé!!!". Foi cena digna de ser filmada. Bem, pouco me interessa. A senhora ficou sentada e isso é que é importante. Com as raivinhas miúdas posso eu bem.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Pedido de desculpas e explicação merecida

Andei a reler algumas das minhas respostas aos vossos comentários aqui no blogue e deparei-me com umas quantas gralhas. Para mim, que odeio esse tipo de coisas, é importante pedir-vos desculpa e dar-vos a merecida explicação, se é que existe tal coisa para tamanha idiotice. Tenho sido tão rápida a publicar e responder aos vossos comentários porque o tenho feito a partir do telemóvel. E digamos que, ainda que seja um "telemóvel esperto", não é daqueles que tem um ecrã semelhante ao da sala de cinema IMAX, no Colombo. Depois, correr o texto escrito num comentário para cima e para baixo no telemóvel é uma tortura, pelo que na maioria das vezes tenho publicado as minhas respostas sem as reler. Não desculpa o terror da coisa, mas ficam a saber que eu dei pelas gralhas e que só não me irrito mais porque sei que são resultado da minha pouca vontade de estar sempre a ir ao computador fazer as coisas em condições e não do mau domínio da língua. Desculpem-me, sim? 

Peculiaridades de um leitor IV

Os vossos comentários a esta série de quixotadas a que pomposamente chamei «Peculiaridades de um leitor» têm-me feito pensar noutras particularidades de que falar. Ou seja, o vosso contributo, mesmo que nem dêem conta de que estão a dar-me ideias, é fundamental. Aquilo de que vou falar hoje nasce, precisamente, de um dos comentários que foi feito neste blogue, que desde já agradeço.

Todos nós temos as nossas manias para tudo na vida. Não apenas para a leitura e para os livros, mas para outros aspectos. Fazemos as coisas à nossa maneira, como nos dão prazer, mesmo que aos olhos dos outros soem a picuinhices. Para nós tem de ser assim e é importante manter esses hábitos. Quebrá-los pode até causar-nos alguma instabilidade. Mas, enfim, aquilo de que vos vou falar pode ser tanto uma mania quanto um método de leitura em que uns agem de uma maneira e outros de outra. Trata-se da leitura de uma obra que se divide em diferentes volumes.

Uma coisa que as editoras portuguesas adoram fazer, já o disse neste blogue, é partir livros em volumes. Isso faz com que cheguemos a Espanha ou ao Reino Unido e encontremos livros de mil páginas e aqui não. Aqui divide-se em volumes e geralmente pagamos bastante bem por eles. Ora, é fácil perceber que partir um livro em diferentes tomos tem influência sobre a nossa leitura. Reparem: se eu transportar comigo todo o livro, por exemplo, quando vou para o trabalho (como eu fazia, lendo nos autocarros), provavelmente só o devolverei à prateleira quando o terminar. Porém, se o livro estiver dividido em volumes, posso chegar ao final do primeiro, arrumá-lo na prateleira e não pegar imediatamente no segundo. Fazer uma pausa, respirar entre a leitura dos tomos da mesma obra. Raramente o fazemos durante a leitura de um livro que só tem um volume e quando o fazemos é sinal de que não estamos a gostar lá muito.

Portanto, perante obras divididas em volumes há duas maneiras de agir: ler todos os livros de uma assentada ou ler um volume, depois outro livro que não tenha nada que ver, voltar ao segundo volume, depois tornar a ler outra coisa. Enfim, ou assumimos a leitura da obra como uma missão a cumprir e não permitimos que nenhuma outra se interponha no caminho até à página onde tudo termina, ou vamos lendo os volumes ao sabor da vontade, descansando das personagens e lendo sobre outras noutros livros ou mesmo lendo livros de outros géneros.

Aqui me confesso: sou do segundo tipo. A obra pode ter mil páginas que eu aguento e leio-a de seguida, mas se estiver dividida em volumes raramente pego no segundo logo a seguir ao primeiro. A psicologia deve explicar isto, porém eu não sei fazê-lo. É como se precisasse de respirar entre os volumes. É disparate? É. Esqueço-me de pormenores entre o primeiro e o segundo volume quando passa muito tempo entre a leitura de um e do outro? Sim. Chegam a passar-se anos até pegar no segundo volume? Sim. E se a obra tiver mais do que dois volumes? Nem vos conto... É uma vida até a acabar. Foi assim com O Manuscrito Encontrado em Saragoça, cujo segundo volume ainda me aguarda; foi assim com A Família Forsyte (faltam dois volumes); foi assim com Os Pilares da Terra (em que não pegarei mais porque aquilo é uma porcaria). Enfim, são peculiaridades de um leitor, as tais que fazem com que todos sejamos diferentes mesmo quando fazemos a mesma coisa. Reparem: ler tudo de seguida não significa que a leitura seja uma obsessão, nada disso. Proceder de um ou de outro modo tem que ver, apenas, com uma maneira particular de organizar as coisas na nossa cabeça. Ler tudo de seguida significa que toda a obra ficará arrumada no nosso cérebro de forma, talvez, mais consistente, sem grande perda de pormenores. Lemos tudo e só paramos mesmo no fim, ficando desde logo com todo o conhecimento sobre o texto e com a possibilidade de o criticar na totalidade, de falar dele sabendo exactamente o que dizer. Mais: podemos dizer com toda a razão que lemos a obra A ou a obra B inteira. Ao lermos os volumes como eu, perdem-se algumas coisas pelo caminho, até porque pelo meio se vão cruzar outras leituras. Os momentos da vida em que vou ler um ou outro tomo também vão ser diferentes e isso, como vos disse ontem no texto sobre Os Maias, também influencia a nossa relação com o texto.

O que mais uma vez importa é que não há uma maneira certa ou errada de ler uma obra dividida em volumes. Há aquilo que nos deixa confortáveis. Eu fico confortável dando um tempo entre as leituras, mesmo que isso signifique ter uma experiência que deixará de fora pormenores que, inevitavelmente, serão esquecidos. Na leitura é isso mesmo que interessa: conforto. Temos de estar bem. Ler num banco de pedra também não é o mesmo que ler na esplanada ou na cama. Ler no autocarro não é o mesmo que ler numa espreguiçadeira à beira da piscina. Todos estes factores influenciam a nossa leitura e o conforto não tem apenas que ver com o sítio onde o nosso rabiosque está pousado enquanto lemos. Tem que ver com muitas mais coisas e é fundamental para que continuemos sempre a ser leitores.

A Menina Quer Isto LXXXI

Sempre que a menina vai a uma livraria, desgraça-se. Não financeiramente, que os tempos de desemprego não o permitem, mas em formato de lista que vai ganhando tamanho, temendo-se o dia em que ganhe também consistência de livro(s)... Bom, no fim de semana lá passámos por uma e acrescentei uns itens ao que agora quero ler. Mais ainda: tenho andado a ver no RTP Player os programas de «Os Livros» (passa ao fim-de-semana na RTP3) que ainda não tinha visto. Resultado: pumba, já quero mais uns quantos. Isto assim não é vida, senhores! Isto é borgiano! Só Borges explicaria esta capacidade imensa para puxar um livro atrás de outro e de outro até se viver num labirinto de volumes que, longe de nos asfixiarem, funcionam como ar puro nas nossas vidas. Como  se de uma janela para fora de tudo se tratasse.

Enfim, agora a menina quer isto:






Ou me sai o Euromilhões depressa ou não sei o que será de mim!

Nota: As imagens saíram, como se vê, da página da Wook.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Os Maias - o balanço

Fazer um balanço de uma obra que se releu é algo diferente, porém realizável. É como aquele dito que afirma que não nos banhamos duas vezes nas águas do mesmo rio. De facto, a experiência de releitura é mesmo essa: a nossa vida mudou de uma leitura para a outra, a idade trouxe maior maturidade (espera-se), vimos mais coisas, experimentámos mais emoções... Portanto, é impossível que a obra lida (parcialmente) aos quinze anos, (totalmente) aos vinte e cinco e relida aos trinta e um não seja sempre diferente.

Os Maias é aquele romance que nunca nos desilude e no qual encontramos sempre um pormenor novo ao qual prestar atenção. No arrebatamento da adolescência, estamos com Carlos Eduardo e com Maria Eduarda na ideia da fuga romântica para Itália; mas com a idade, pende-nos o coração para o pobre Afonso da Maia, cuja vida dedicada àquele neto não seria digna de tamanha ingratidão. Olham-se as coisas de modo diferente, claro. Mas reler Os Maias é, simultaneamente, como fazer uma visita a um lugar que conhecemos bem e que, por isso mesmo, temos como acolhedor. Não é livro que cause aborrecimento por ser lido pela segunda ou pela terceira vez. É, de facto, romance capaz de deixar memória de muitos acontecimentos, mas de esconder nas sombras do esquecimento pequenas graçolas, ditos inspirados do narrador, imagens descritas com aparente candura, mas com infinita ironia. Recuperá-las é uma experiência quase tão boa como conhecê-las pela primeira vez. Se quando pegamos em Os Maias para a leitura inaugural, importa-nos sobretudo como acabará aquela família a quem «sempre foram fatais as paredes do Ramalhete», para onde se mudam logo no princípio da obra, nas releituras que se seguirão, o olhar espalha-se e as finanças e o jornalismo portugueses, as soirées, os saraus literários, as corridas de cavalos e, enfim, os aspectos próprios de um Portugal romântico ganham nova importância.

Lamento muito que a maior parte dos nossos alunos chegue hoje ao décimo primeiro ano incapaz de ler este romance. Mas compreendo que assim seja, pois já antes isso sucedia. Os Maias é um romance maravilhoso, mas os quinze anos mostram-se curtos para chegar mais longe do que à ideia de que é a história de um tipo que dorme (para não dizer pior) com a irmã. E portanto perde-se muito do que Eça ali escreveu. Fica, gravada em alguns, a ideia de que o livro é «uma seca» e a vontade de nunca mais ouvir falar dele. É pena. E, ou muito me engano, ou isto será cada vez mais grave, ao ponto de a maioria dos alunos não ler nada do que se lhes pede no secundário e ponto final. Dos testemunhos que vou ouvindo, é para isso que vamos caminhando.

Calculo que todos os sete leitores deste blogue já tenham lido Os Maias. Mas aquilo que vos convido agora a fazer é a reler a obra. A procurar nos seus cantinhos o que a torna particularmente especial, a procurar os detalhes que fazem com que não seja só mesmo a paixão de Carlos e Maria Eduarda a fazer história, releiam com gozo, sem obrigação, com calma e saboreiem deliciadamente este bom pedaço de prosa que um dos melhores nos legou. Apreciem o adjectivo geometricamente colocado, o advérbio expressivo capaz de mudar toda uma imagem, o recurso estilístico que, no meio do restante texto, consegue revelar-nos o ridículo de uma situação aparentemente séria. E reparem, como desta vez resolvi reparar, nos inúmeros indícios que o narrador nos deixa de que tudo correrá mal. São tantos que é impossível não os ver, sejam eles bordados numa tapeçaria ou estejam em flores que morrem numa jarra. Enfim, releiam este nosso romance e notem vocês também que o tempo vos mudou a forma de ver as coisas e de ler os livros. É uma experiência e tanto.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Segunda-feira horribilis

Hoje não me sinto bem. Devo ter comido qualquer coisa que não me caiu como devia e sinto-me enjoada e com dores de estômago. Tinha coisas para fazer hoje, mas parece que me passou uma carroça com uma parelha de burros por cima. Estou desde ontem à noite com quase nada no estômago. Não saí do sofá o dia todo. 

Mas como sou criatura de grande sorte, além de haver uma namorada ciumenta no prédio do lado e uma vizinha mouca que grita muito no andar de baixo, agora os vizinhos de cima estão a remodelar a casa de banho e, portanto, estou desde as oito da manhã a ouvi-los arrancarem pomposamente os azulejos e o chão com todo o barulho que isso implica. Portanto, sinto-me mal desde a madrugada, deixei de conseguir dormir às sete e pouco, deixei de fazer o que tinha a fazer porque me sentia mal e muito dorida, para acabar por ficar no sofá a tapar os ouvidos. Os gatos passaram de tal forma a tarde a desesperar comigo que, depois das cinco, quando os obreiros pararam a jornada de hoje, a gatica desabou na cadeira do escritório e adormeceu, finalmente, aconchegada amorosamente pelo Senhor Gato. Ele, como bom machinho que é, aproveitou logo o silêncio para cair num sono tão invejável que até ressona e consigo ouvi-lo do sofá onde continuo deitada. 

Foi, portanto, uma segunda-feira ainda mais asquerosa do que já são por natureza todas as segundas-feiras. Eu mereço...


domingo, 12 de fevereiro de 2017

Sem assunto

E o preço a que está a curgete, han? Não tarda teremos de voltar a «embatatar» as sopas novamente. Não há direito. 

A imagem saiu daqui.

sábado, 11 de fevereiro de 2017

A Menina Quer Isto LXXX


Ontem li, em dois textos diferentes, rasgados elogios a este novo livro de Mário Cláudio. Ainda só está em pré-venda, pelo que o correcto seria «A menina quererá isto», mas fica a ideia. Entretanto dei um pulo à página da Wook e vi a sinopse do livro, que podem consultar aqui.

Considerando que a vida de Camões é um mistério, que são mais os buracos que encontramos na sua biografia do que os factos inequivocamente provados, é sempre possível imaginar-lhe novos rumos, ou melhor, outros rumos além daqueles que preenchem as narrativas sobre a sua vida. Camões é hoje mito nacional e a imagem do poeta de pena e espada que consegue salvar a sua obra-prima de um naufrágio é muito renascentista, mas também muito romântica. Camões tornou-se o patriótico por excelência, mesmo tendo passado uma epopeia inteira a apontar aspectos a melhorar em Portugal e nos portugueses. Muito ainda se pode escrever sobre ele, pois uma vida envolta em mistério (nem se sabe quando e onde nasceu) deixa muito, mas muito espaço à imaginação. No ano passado, julgo, a Maria João Lopo de Carvalho escreveu um romance sobre as mulheres da vida de Camões. Bom, não li e por isso não comento, mas tendo a preferir o estilo do Mário Cláudio. Contudo, não é isso que me importa. O que interessa é que aqui está mais um livro que procura inventar outros desfechos para o nosso, acho eu, maior poeta de sempre (vá, pessoanos, atirem-me com tomates!). Mas sobre Camões, o texto que ainda hoje consegue, a meu ver, evocar aquilo que foi a sua vida e a memória que haveria de ficar é o poema de Jorge de Sena intitulado «Camões dirige-se aos seus contemporâneos». Creio que é brilhante, mostra a enormidade do homem que nos deu uma epopeia e que viveu e morreu na miséria, nada apreciado pelos outros autores do seu tempo. Mesmo sendo sobejamente conhecido, deixo-vos aqui o poema que é, como tudo o que saiu da cabeça de Jorge de Sena, absolutamente certeiro e maravilhoso. É por poemas assim que adoro literatura, que adoro livros, que adoro o muito que se pode fazer com as palavras. 


Camões dirige-se aos seus contemporâneos

Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos, 
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável 
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos, 
Que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
Para passar por meu. E para os outros ladrões,
Iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.