quinta-feira, 30 de novembro de 2017

«Caça aos gordos»


Na edição deste mês do Courrier Internacional surge um artigo publicado pelo londrino The Observer que é absolutamente desconcertante. A capa refere-se a ele como «Caça aos gordos», situando essa mesma caçada em França. Ler o texto é entrar num mundo horrível que tendemos a esquecer que existe, mas onde se ostraciza gente que parece cometer o gigantesco pecado de... ter peso a mais.

O texto nasce a propósito de um livro publicado por uma professora francesa de educação especial que desde cedo na vida começou a ter excesso de peso. Até que, com 1,53 m se viu a pesar 150 quilos num país onde a magreza é celebrada e, aparentemente, lei a ser seguida por todos sob pena de se acabar como Gabrielle Deydier: ostracizada por uma sociedade que não quer ter lugar para gordos. 

Uma das experiências terríveis relatadas por Gabrielle Deydier prende-se com a sobrevalorização do seu aspecto físico em relação às inegáveis qualidades académicas e profissionais que evidenciava: numa entrevista de emprego, foi admitida com distinção, já que era detentora de duas licenciaturas e parecia ter o perfil adequado para o cargo a desempenhar. Porém, já depois de admitida, foi avisada de que trabalharia com uma outra pessoa que teria um temperamento difícil. Feliz pelo novo emprego como docente de educação especial, minimizou este aviso até que conheceu a colega. Foi por ela recebida com um simpático «Gabrielle Deydier, é a senhora? Não trabalho com gente gorda.». Primeiro pensou que a colega estaria a brincar, mas rapidamente percebeu que não. Aliás, o modo como foi por ela apresentada à turma de meninos autistas com que Gabrielle iria trabalhar é também digno de nota: «Aqui está o sétimo deficiente da sala.». 

Gabrielle está, presentemente, a viver num quarto de uma Pousada da Juventude francesa porque não tem rendimentos para poder ter um lugar seu. A obesidade prejudica a sua vida, mas talvez prejudique menos do que o preconceito dos outros em relação a ela. Acabou por ser dispensada da escola onde fora admitida porque a professora de temperamento difícil começou a fazer queixas sobre ela: que suava demasiado, que já a tinha visto em dificuldades para subir uma escada até ao terceiro piso... A direcção do estabelecimento de ensino, perante estes relatos, colocou-se do lado da professora mais antiga e decidiu dar a Gabrielle tempo para perceberem se estava motivada para continuar o seu trabalho. Agora reparem: esta motivação que procuravam não se prendia com a forma como ela desenvolvia as suas tarefas como professora, mas sim com a sua motivação para perder peso. Colocaram-na numa situação em que ou emagrecia e trabalhava ou permanecia como estava e ia para a rua. Gabrielle acabou por sair e quando questionada sobre a razão pela qual não recorreu à justiça, diz que todos, incluindo as autoridades, lhe disseram que nenhum tribunal lhe daria razão. 

Depois de muito sofrimento e de considerar, inclusivamente, pôr termo à própria vida, Gabrielle conheceu, por acaso, dois escritores e, por conselho deles, passou para livro estas suas tenebrosas experiências. On ne naît pas grosse, o livro que daí nasceu, ainda não existe em português, mas é um sucesso no mercado francês e já tem os direitos vendidos para outros países. Desde a sua publicação, a autora tem recebido muitas cartas de pessoas que admitem sempre ter humilhado aqueles que têm excesso de peso e que, depois de lerem o seu livro, percebem que o que fizeram era errado, pedindo-lhe desculpa por isso. É assustador que existam pessoas que precisam de um livro para perceberem que gozar com alguém devido à sua forma física é uma atitude asquerosa e absolutamente reprovável.

Visitas ao ginecologista com comentários nojentos por parte do médico, colegas que negaram tê-la assediado puxando do argumento «Por que haveria de violar uma gorda?»... Gabrielle viveu de tudo um pouco e essas vivências transformaram-se num livro que, aparentemente, está a pôr muitos franceses a pensar sobre o preconceito que têm relativamente ao excesso de peso. Aliás, a autora do artigo refere mesmo que Gabrielle viveu uns tempos em Espanha enquanto estudava e que nunca sentiu por lá o mesmo preconceito. Todavia, refere que em França uma conversa rapidamente deriva para o seu peso. É como se as pessoas mais pesadas estivessem constantemente a serem lembradas de que o são e a serem culpabilizadas por não se porem rapidamente de acordo com os padrões de magreza que a sociedade estabeleceu. O excesso de peso, segundo o artigo, afecta não só a saúde, como já bem se sabe, mas toda a sua vida pessoal e profissional, como se fosse impossível encontrar a pessoa que existe sob a gordura corporal. 

É um artigo chocante e nem consigo imaginar como será o livro de Gabrielle Deydier, uma pessoa academicamente muito qualificada, mas que vai sempre ficando na prateleira devido a uma imagem idealizada pela sociedade e à qual ela não corresponde. Sempre soube que o excesso de peso é, com frequência, alvo de chacota, mas não a este nível. Sempre tive consciência de que as pessoas são estúpidas e falam do que não interessa (teria eu uns dezasseis anos e uns cinquenta e cinco quilos quando fui chamada de gorda pela primeira vez... e tomara eu ter hoje o aspecto que tinha naquela altura!). Mas desconhecia esta fobia à gordura alheia ao ponto de arruinarem a vida de uma pessoa que podia estar a dar tanto à sociedade.

Infelizmente, no ano passado engordei um pouco de mais. Depois de vir para casa após despedir-me, comecei a acumular mais uns quilinhos. Fui a um casamento no Verão e uma tia «emprestada» sentou-se ao meu lado em determinado momento e, sem querer saber mais sobre mim, disse-me rindo que no dia seguinte íamos as duas para o ginásio. Mandei-a mentalmente para um sítio muito feio e respondi de facto tocando onde dói mais: perguntei-lhe pelo curso superior do filho. Note-se que o meu primo desistiu muito prematuramente de estudar e anda a servir às mesas (nada contra: mas combati o fogo com fogo, pois naquela altura foi o que me ocorreu). Hoje esses quilinhos já fazem parte do passado e outros continuam a desaparecer, mas não me esqueço da sensação de ter as pessoas a olharem e a comentarem como se fosse minha obrigação aparecer alta (que não sou) e esbelta (que já não sou desde a adolescência). Todavia, que eu saiba, nunca a minha figura me prejudicou na vida profissional, pelo que nem imagino o que Gabrielle Deydier e tantos outros como ela possam ter já sofrido nesse domínio.

Escrever isto no século XXI parece-me ridículo. Nunca tivemos tanta gente com excesso de peso e nunca lidámos tão mal com isso. Em algumas épocas da nossa história, ser «gordinho» era até o ideal. Hoje e em alguns lugares é o suficiente para eliminar todas as possibilidades da vida de um ser humano. E noutros lugares onde não se é tão drástico, é razão para dizer piadolas e fazer comentários absolutamente desnecessários. A mente humana, capaz das coisas mais brilhantes e admiráveis, é também responsável por momentos em que estar calado seria uma benção. Conseguimos ser muito maus uns para os outros, esquecendo-nos de que devemos sempre tentar colocar-nos no lugar do outro e imaginar o que sentiríamos se fôssemos ele. Chama-se a isso empatia e parece-me hoje que deve ter sido a primeira coisa a escapar da mítica caixa de Pandora, de tal modo se vai vendo cada vez menos. Nunca a gordura de alguém devia ser tema de conversa; nunca o seu peso devia prejudicar aspectos determinantes da sua vida como a carreira profissional; nunca o resultado de uma balança devia abrir as portas da humilhação e criar vítimas da sobranceria dos que não padecem do mesmo; nunca os quilos extra deviam definir um ser humano. Magros ou gordos somos mais do que o que aparentamos. Mal de nós se o nosso aspecto fosse tudo o que somos. Bem sei que para muitos é praticamente só isso que importa, mas depois, felizmente, há os outros e são esses que ainda trazem alguma esperança ao mundo.

Excessos do amor felino

A madeira da estrutura lateral da minha cama, junto à minha cabeceira, está toda marcada por unhas de gato. Do lado do moço não. E porquê?

Pooooorque o amor felino leva a minha Gatica a ir com frequência empinar-se na trave da cama para ver se eu estou acordada para lhe fazer umas festinhas. Resultado: muitas marquinhas que provam um excesso de amor felino e a existência cá em casa de uma mariquinhas peluda que tem de estar sempre a ver se a sua mamã está ali para ela. É uma peste, mas ao mesmo tempo é tão querida!

domingo, 26 de novembro de 2017

Em busca de lugar na estante X

Com o vale FNAC recebido no aniversário, pude aproveitar os descontos da Black Friday e trouxe, finalmente, o Best Of da Ana Moura (já estava a ficar em desespero por não o ter) e dois livros que estavam na lista dos desejados. E se mais vales houvera, de mais prateleiras precisara. 



Nota à fotografia: É muito difícil fotografar objectos cá em casa sem que se dê a intromissão de umas orelhas, umas patas ou uns bigodes felinos. Senhor Gato estava interessado no Roth e a sua orelha foi apanhada. Lamentamos esta situação fofinha. 

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

O festival da mantinha

Quando chegamos a esta altura do ano em que a temperatura desce e o corpo pede mais um agasalho, dá-se início cá em casa ao “Festival da Mantinha”. É ver mantinhas polares a saltarem de tudo quanto é armário, baú e gaveta para irem para sofás ou qualquer outro lugar passível de servir de assento a humanos e felinos. O moço dizia que tínhamos mantinhas a mais, mas agora vejo que nem me chegam! Ora, tirando as três mini-mantas dos gatinhos que já estão a forrar sofás, as mantas de tamanho normal já andam também todas num virote entre as necessidades de humanos e felinos. 

Vejamos: além de ter mantinhas onde nós paramos, também ando atenta aos novos lugares predilectos dos gatinhos para pôr lá uma manta. Embora eles sejam bastante peludos, o aconchego de uma mantinha cai sempre bem e gatinhos felizes fazem donos felizes (até porque gatos danados são do piorio). Com o Senhor Gato, então, é infalível: durante o tempo mais frio, ele estará onde estiver uma mantinha. Por exemplo, apercebi-me de que ele andava a dormir em cima do tapete da bicicleta estática e por isso pumbas: hoje já lá tem uma mantinha. Neste momento, está a ressonar aqui ao meu lado, deitado nas costas do sofá sobre uma das suas mantinhas privativas (cortesia da sua clínica veterinária). 

Infelizmente, as mantinhas polares agarram bem o pêlo dos miaus e nem com mil lavagens elas voltam ao estado inicial. Assim, os gatos vão ganhando cada vez mais mantas para si e os donos vão ficando com cada vez menos para eles, já que os felinos se apropriam até das que são usadas pelos humanos (basta um descuido e
lá temos um gordito peludo deitado numa manta que não lhe pertence). 

Ora, colocado este problema, penso que posso pedir ao Pai Natal mais umas mantinhas polares cá para casa. Não somos esquisitos quanto a cores e padrões: elas têm é de ser quentinhas. Pode ser, Pai Natal?

Ps.: Senhor Gato deve estar a sonhar. Está a dormir e a mexer as patinhas. Que coisa ternurenta!

Um Eléctrico Chamado Desejo e Outras Peças - o balanço


Já acabei de ler este livro há uns dias, mas depois destas quatro peças de Tennessee Williams fiquei com a sensação de que é um autor que, além de se ler com muitíssimo gosto, deixa tanto em que pensar que são precisos alguns dias para digerir o que lemos.

Falei-vos, há algum tempo, da primeira peça deste volume: Gata em Telhado de Zinco Quente. Essa foi, provavelmente, a peça que mais me tocou. Nunca vi uma encenação deste texto, mas achei tudo tão plausível, tão verdadeiro. Há ali situações que facilmente encontramos na vida de todos os dias: a entrega a vícios como forma de desistência; os abutres que só esperam a hora de poderem apropriar-se do que a outros pertence e que usam a bajulação como forma de conseguir o que querem; aqueles que se tentam ajustar à realidade, nem que isso os mantenha num equilíbrio tão instável e desagradável como será o zinco quente sob as patas de uma gata. 

Ainda que as duas peças que se lhe seguem também sejam muito boas, não me senti tão tocada por elas. Subitamente, no Verão Passado é, ainda assim, um texto em que há uma linha muito fina entre a loucura e a sanidade. Tão ténue é a linha que chegamos ao fim do texto sem saber quem diz a verdade, pois o que nos é contado é demasiado bizarro para que nisso acreditemos sem antes nos questionarmos. A morte de um filho, aquilo que se descreve como a dor maior, é o ponto de partida para um texto em que as personagens têm de confrontar-se com a verdade, com aquilo que pode ser a verdade e com o que não querem que seja a verdade. Também aqui encontramos os tais abutres que desejam subir na vida à custa de perdas alheias, algo que me pareceu ser recorrente nas quatro peças que compõem este volume. 

Verão e Fumo é um texto que nos apresenta uma personagem com uma sexualidade florescente que parece aperceber-se demasiado tarde dessa mudança, deixando passar aquilo que gostaria de ter e que esteve sempre ao seu alcance. Parece ser a história de alguém que assume tais responsabilidades ao longo da vida e desde uma idade tão precoce que depois deixa pelo caminho uma parte de si, perdendo um comboio que não poderá voltar a apanhar.

A última peça deste livro tem um título para lá de conhecido: Um Eléctrico Chamado Desejo. Muitos já a terão visto no teatro ou mesmo alguma das suas adaptações cinematográficas (e algumas meninas recordarão o Marlon Brando em t-shirt branca). A peça coloca em rota de colisão duas realidades muito distintas: o fim de uma sociedade aristocrática e a emergência da modernidade, daquilo que substituiria o estado de coisas anterior. A realidade em que as grandes famílias e as suas fortunas moviam a América é representada por Blanche DuBois; aquela em que a força alcança aquilo a que antes se chegava pelo dinheiro surge-nos com Stanley, o cunhado de Blanche. Estas duas forças antagónicas vão, desde o início do texto, enfrentar-se, medindo forças num crescendo de tensão que culmina num final terrível em que um aniquila o outro física e psicologicamente. No fundo, o que ali está são duas versões do mundo: a que foi ficando no passado e a que o futuro fez presente. Temos de um lado a «princesinha» que se viu desapossada de tudo e o bruto que tem perspectivas de futuro naquela nova América da primeira metade do século XX. É um combate que só um pode vencer e não é difícil imaginar quem será, já que o tempo não pode voltar para trás e regressar a uma ordem que já estava praticamente ultrapassada. Aliás, o «sonho americano» nem existiria se essa tal realidade aristocrática, a das grandes famílias com grandes plantações e muitos seres humanos a servi-la, não tivesse desaparecido. O problema (e é o que nem sempre percebíamos nas aulas de História) é que as transições não costumam ser fáceis e se tudo sabe bem a quem sobe na vida, tudo sabe muito mal a quem desce e se vê perder uma série de coisas que dava como certas. Blanche perdeu tudo, mas não sabe viver sem nada e por isso cola-se como uma lapa a todos os que possam ajudá-la a continuar a viver. Além disso, pretende continuar a viver numa fantasia muito desajustada ao meio onde tentou inserir-se. Os vestidos demasiado pomposos, as tiaras e outras jóias, o modo como esconde sempre a sua idade para poder continuar a viver presa ao passado não se enquadram na nova América e Stanley faz questão de a confrontar com a falta de lugar para ela nesse novo mundo em formação. É, por tudo isto, uma peça marcante. Tal como todas as outras referidas, lê-se muitíssimo bem, mas precisa de ser trabalhada dentro de nós porque somos confrontados com aspectos em que poderíamos nunca ter pensado antes. Como disse atrás, as aulas de História sempre nos mostraram um mundo em mudança, mas tendemos a esquecer-nos de que na voragem da mudança estão seres humanos que com ela sofrem ou que dela tiram dividendos.

Tennessee Williams foi uma das melhores surpresas que os livros me reservaram este ano. Não lia textos dramáticos há bastante tempo (excepção feita aos que fazem parte do Programa de Português do Básico e Secundário) e já quase nem me lembrava do modo fabuloso como os dramaturgos talentosos conseguem destacar tantos aspectos importantes da nossa existência e deixar-nos incomodados com eles. Senti com Tennessee Williams aquilo que em 2003 senti quando li Shakespeare pela primeira vez: que estava perante alguém que conhecia os problemas humanos e que sabia mostrá-los com uma mestria difícil de suplantar. Embora um tenha escrito nos séculos XVI/XVII e outro no século XX, ambos conseguiram olhar para a realidade, olhar para o ser humano, ver o que o move, o que o comove e o que o destrói, fazendo disso um espectáculo que deixa o leitor/espectador com a obrigação de analisar tudo profundamente. Não se fica indiferente perante as suas histórias mais poderosas. Há autores assim, capazes de ver dentro daquilo que somos, dos defeitos e virtudes que temos em comum e que, seja em que século for, interferem profundamente na nossa vida. Assim são os bons escritores.

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

À pequena «Corujinha»

Há cinco anos tornei-me tia. E nunca me vou esquecer do bebé mais pequenino em que peguei nem do amor tão grande que nasceu ali mesmo na maternidade. Também não me vou esquecer de que em tempos difíceis e de perda, ela foi a alegria e o sorriso de toda uma família. Recordarei para sempre o muito que saltou e riu ao meu colo ao som da música que aqui vos deixo e que, por alguma razão, a deixava sempre contente. 

Por isso, hoje, para a pequena «Corujinha», a tia aproveita o blogue As Minhas Quixotadas para dizer-lhe que gosta muito dela e que com ela o mundo é claramente um lugar mais ternurento. 

Parabéns, L.!


sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Chora, Camões, chora... XVI

Acabei de ver no Facebook a pseudo-palavra “incensia” em vez de “essência”. Camões, grita, filho!

Peculiaridades de um leitor XIV

Nos dias em que estive em repouso devido à pomposa cólica renal que se fez sentir no final da semana passada, caiu-me no colo um tema curioso que tem que ver com hábitos de leitura, particularmente aqueles que temos quando ficamos doentes. 

Este blogue nasceu em 2011, mesmo no final de um período em que estive em casa devido à varicela que apanhei num casamento (sim, uma mãe genial achou que levar o filho em fase de contágio para um casamento era o melhor a fazer, mas enfim). Nesses dez dias em que estive trancada em casa para não contagiar mais ninguém (embora a minha irmã não tenha escapado), li muito. A leitura de que me recordo imediatamente é Atribulações de um Chinês na China, de Júlio Verne. Foram horas e horas de leitura para despachar numa noite ou duas aquelas aventuras tão típicas na escrita do autor. Era, ao mesmo tempo, um livro divertido, leve e envolvente, muito apropriado para uma altura em que ora se lê, ora se dorme e em que a concentração pode não estar no seu melhor. Por isso mesmo, perto do final da minha querida varicela, peguei num portento que se tornou num dos meus livros favoritos: David Copperfield. Aliás, uma das primeiras quixotadas que escrevi foi, precisamente, sobre esse romance de Dickens. Já estava melhor, mais concentrada, mais capaz de me lançar a largos voos e aquelas centenas de páginas foram percorridas a grande velocidade.

Mas desta vez, com as dores da cólica renal e, sobretudo, as imensas náuseas que ela causava, a vontade de ler foi-se. Consegui ver séries e outros programas, mas não consegui ler grande coisa. Mesmo andando com o Tennessee Williams debaixo do braço (já agora, uma vénia para ele que é absolutamente brilhante e, talvez, a minha melhor descoberta de 2017), só pensar em ler era causa de enjoo. E foi assim que me caiu no colo o tal tema desta quixotada e que é mais uma peculiaridade dos leitores.

Falando com uma Professora universitária de quem gosto muito e perguntando-me ela como estava a minha saúde, disse-lhe como me sentia e, inclusivamente, que não conseguia ler nada há vários dias, mesmo passando o tempo aninhada no sofá ou na cama. Disse-lhe que não querer ler era muito invulgar em mim, mas que mostrava bem o estado em que estava. A isto ela respondeu com alguma graça que sempre que sentia que vinha lá uma gripe, pegava invariavelmente num Eça que a acompanhava até ao final da doença. Na última vez que tal aconteceu leu A Capital.

Fiquei a pensar nisso, naquilo que entendi como «leituras de conforto»: naqueles livros que sabemos que não nos vão falhar, que não vamos ficar desapontados com eles. Para esta Professora, a leitura que nunca a deixa mal e que pode acompanhá-la num período de maior fragilidade passa pelos vários livros de Eça de Queirós. Já eu não tenho uma leitura de conforto propriamente dita, embora tenha percebido, depois de pensar no assunto, que normalmente escolho livros infanto-juvenis ou livros mais humorísticos. Não foi afinal à toa que, no segundo ou terceiro dia de dores, peguei no quinto volume do Manolito Gafotas. Para a Professora, Eça tem aquilo de que precisa quando se sente pior; para mim o que me importa é que o texto seja leve, engraçado e que não exija muito de mim. Ainda que as peças de Tennessee Williams se leiam muito bem e sejam muito fluídas, os temas sérios nelas abordados eram demasiado para um cérebro mais concentrado nas dores e na falta de posição para estar do que propriamente naquilo que estava a ler. 

Portanto, acredito que cada leitor tenha as suas preferências quando está doente. Talvez uns prefiram abandonar os livros e optar pelos periódicos; outros largam todo o material de leitura e entregam-se à televisão e às séries e filmes; outros ainda optam por um determinado autor ou género; alguns pegarão em BD e infanto-juvenil e outros poderão manter-se como sempre e ler o que apetecer sem pensar mais no assunto. A verdade, é que mesmo sem darmos muita conta disso, os livros que nos acompanham combinam muitas vezes com o modo como nos sentimos: se mais tristes, tendemos a fugir de dramas; se estamos felizes, já podemos ler um dramalhão; se aborrecidos, venham as aventuras; se cansados, a leveza de alguns livros infanto-juvenis ou de algumas bandas desenhadas ajuda imenso. Cada leitor é um mundo e agirá de acordo com o que sente. Chegados à décima quarta «Peculiaridades de um leitor» creio que já ficou bem claro isso mesmo: que são peculiaridades e não regras. Alguns de nós temos uma ou outra esquisitice, outros temos muitas das que já referi nesta onda de quixotadas. Com isto dos «livros de conforto» passa-se o mesmo, mas uma coisa é certa: só os leitores, só os amantes dos livros param para pensar nisto. E isso torna-nos peculiares e peculiarmente felizes.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Chora, Camões, chora... XV

Agora, até a pontuação deve saltar para fora das mensagens escritas porque parece que há um estudo que indica que ela tem “significado”. (Meu Deus, quão estúpido é isto?!) Podem ler hoje a “notícia” completa no Notícias ao Minuto.




Aniversário

ANIVERSÁRIO
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, 
Eu era feliz e ninguém estava morto. 
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, 
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer. 
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, 
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma, 
De ser inteligente para entre a família, 
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim. 
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças. 
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino. 
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui... 
A que distância!... 
(Nem o acho...) 
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa, 
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas), 
O que eu sou hoje é terem vendido a casa.
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos... 
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez, 
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui... 
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
15-10-1929

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).
  
E assim cheguei aos 32 anos. 

domingo, 12 de novembro de 2017

Em repouso

Abençoado Netflix é abençoadas dez temporadas de “Friends”. É que, para verem como estou, nem sequer me apetece ler. Acho que as náuseas só me permitem ver televisão e dormir. Estou, portanto, a devorar episódios de “Friends” entre sonecas. 

Não tenho respondido aos vossos comentários porque apenas estou a utilizar uma aplicação no telemóvel para publicar no blogue e publico os comentários directamente a partir do e-mail. Nem para ligar o computador tenho grande ânimo. Espero arrebitar até quinta-feira para, pelo menos, ter um aniversário normal. Mas agradeço-vos muito as palavras simpáticas e o desejo de melhoras. Obrigada, queridos leitores. Vocês são uns amores. 

Ah, a infância...

Dizem que todos temos uma criança dentro de nós. Nada contra, pois por vezes dá-nos muito jeito tê-la.
Mas há quem a tenha muito activa quando o que até devia fazer era mantê-la sossegadita e deixar o adulto tomar as rédeas da coisa. O problema é quando a criança abafa o adulto (que o mundo considera nem existir), como neste evidentíssimo caso:


sábado, 11 de novembro de 2017

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Azares

Depois de seis horas na urgência na terça-feira devido a um derrame num olho acompanhado por uma valente dor de cabeça, eis que ontem experimento as piores dores de costas que já senti. E, muito elegantemente, as ditas dores mantiveram-se durante todo o dia de hoje, levando-me a sair da cama às 4:50 da madrugada. Não aliviam em posição nenhuma e só o Voltaren está a permitir que tenha algum descanso. A boa notícia é que com isto o apetite também se foi. Pena é ter deixado em substituição uma sede dos diabos. 

Portanto, é isto. Uma coisa nunca vem só e, mesmo sabendo que há quem tenha maleitas muito piores, não têm sido dias famosos. Mas, qual Exterminador, “I’ll be back”, na versão fresca e fofa. 

Nota: Relativamente à ida à urgência, nem o exame oftalmológico nem a TAC acusaram nada. Menos mal. 

domingo, 5 de novembro de 2017

Sem fôlego

Acabei agora de ler a primeira peça de Tennessee Williams da minha vida. É também a primeira das quatro que compõem o livro que estou a ler no momento. O título é conhecido: Gata em Telhado de Zinco Quente e trata do drama de uma família sulista a braços com diferentes tipos de mortes em vida: o jovem a quem é indiferente estar vivo ou morto porque sente que falhou a vida e perdeu o que lhe importava realmente; o homem maduro que quer viver, mas que tem uma morte anunciada à sua espera; o casal cuja moral, cujos valores sucumbiram perante a ganância e a vontade de vencer passando por cima de outros... Enfim, uma série de desencontros sem solução possível porque, ao que parece, pode ter-se tudo menos aquilo que se deseja verdadeiramente. 

Já não lia um texto tão bom há muito tempo e este é daqueles que nos tiram o fôlego. Parece que fiquei com a cabeça cheia de ideias e com a sensação de que Tennessee Williams conseguiu tocar em pontos da experiência humana que poucos escritores alcançam realmente. Sinto que o dramaturgo conseguiu encaixar na única divisão da casa que serve de cenário à peça todos os conflitos que sempre separam as famílias, expondo tanto a mesquinhez quanto a busca de uma morte física que dê, ironicamente, alguma lógica ao definhar que já se experimenta em vida. É absolutamente brilhante e avassalador. E nem mencionei ainda a própria “gata”, Margaret, talvez a única personagem que consegue ir mantendo o equilíbrio sobre este tornado devastador que expõe a fragilidade das relações humanas baseadas em mentiras e em ambições mal disfarçadas. Como uma gata em telhado de zinco quente, Margaret agarra-se ao que tem com toda a força, mesmo que não tenha quase nada, e aprende a viver com esse pouco que é o seu casamento com um homem que não a ama e que, provavelmente, nunca poderia amá-la porque aquele que lhe mereceu o mais puro amor, o seu melhor amigo, morreu depois de o trair com Margaret e deixou-se morrer por isso mesmo. 

Se não leram esta peça, façam-no. É demasiado boa para ficarmos sem a conhecer e garanto-vos que não deixa o leitor indiferente. É como assistir à iminência de um desastre sem que nos seja possível desviar o olhar. É sobretudo sentir que o que ali está é tão possível na nossa vida de todos os dias quanto num palco ou num livro. E isso é, no mínimo, desconcertante. 

A Menina Quer Isto CV


(Acabadinho de sair e desejoso de juntar-se aos dois anteriores volumes.)


(Visto e namorado na última feira do livro. Ainda 
à espera de que ele caia do céu.)


(É o único volume que me falta. Um problema.)

Desabafo: Eu já nem sei o que diga... Precisava de mais dois pares de olhos para ler tudo o que quero.

sábado, 4 de novembro de 2017

Moderadamente orgulhosa

Imaginem o meu espanto ao encontrar hoje online um artigo no E-Konomista que menciona o meu outro blogue, Moinho de Vento - Livros Usados, como uma das cinco melhores livrarias lisboetas para a compra de livros usados. Estou pasmada, mas moderadamente orgulhosa. Acho que o meu stock anda nas ruas da amargura, mas de qualquer modo agradeço o destaque, que desconhecia completamente.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Peculiaridades de um leitor XIII


Não nascemos leitores: fazemo-nos leitores. Ao poucos, muito lentamente nuns casos, mais rapidamente noutros, habituamo-nos às letras, aos livros e quando damos conta estes fazem parte inseparável dos nossos dias. Mas para muitos de nós, mais do que os livros que a escola pudesse levar-nos a ler, o que nos fez leitores foi o exemplo daqueles que nos são mais queridos.

Sempre vi a minha irmã e a minha mãe a ler jornais e livros. O meu pai ainda hoje lê um ou dois jornais por dia (podem não ser os meus favoritos, mas lê). Acho que mesmo tendo poucos livros enquanto pequenita, sempre convivi com eles como algo que faz parte da nossa vida. Com o tempo fui lendo mais e mais, passei pelos livros parvos da adolescência e fui trilhando o meu caminho, descobrindo aquilo que resultava para mim e o que não valia a pena ler. Quando dei conta, estava a escolher uma Licenciatura na qual pudesse ler muito e dos mais variados tipos. Mais tarde, para muitos dos meus alunos, eu era um bicho raro e anacrónico, pois era a única docente que trazia sempre um livro na mala e que falava frequentemente do que lia. Para alguns eu vivia algures no século XIX, bem antes das tecnologias que lhes ocupavam os dias. Infelizmente, muitos daqueles miúdos não tinham leitores em casa que lhes dessem o exemplo. Tinham acesso a muitos mais livros do que eu tive em criança, mas poucos adultos que lhes mostrassem que ler é bom em qualquer idade. 

Por outro lado, tive alguns (poucos) casos de alunos que tinham a sorte de ter pais leitores que lhes transmitiram o gosto e os incentivavam a ler mais e mais. Alguns tinham listas de livros que queriam comprar com o dinheiro que recebessem no Natal. Era delicioso vê-los agarrados a livros, orgulhosos por lerem centenas de páginas, livros cada vez maiores e mais complexos. Os pais lá lhes alimentavam a paixão e, em alguns casos, tinham de fazê-lo em alta velocidade, tal era a rapidez com que devoravam as páginas impressas. Esses também eram bichos raros para os colegas, mesmo partilhando outros gostos com eles como a paixão pelas tecnologias, pelos melhores telemóveis e tablets. Eram do mesmo século que eles, mas tinham aquele gosto estranho que envolvia livros grandes e chatos. Já eu era mesmo qualquer coisa saída de uma máquina do tempo directamente para a sala de aula.

A imagem que deixei no início deste texto (e cuja fonte não consigo citar porque não a encontro) ilustra bem a falta de exemplo e de noção de que é preciso fazer primeiro para que os miúdos aprendam a fazer depois. Pais e professores, irmãos mais velhos e outras pessoas importantes na vida das crianças são modelos que muitas vezes tentam imitar. Se no início o que queremos é fazer o que eles fazem, tempos depois já queremos ler porque gostamos, porque descobrimos que é divertido. Comigo foi assim e com muitas outras pessoas que conheço também. Mas desdenhar dos livros  que os filhos liam (como vi encarregadas de educação fazerem na frente dos seus educandos) é meio caminho andado para não se fazer um leitor.

Note-se que nisto não há nenhuma receita infalível. Há miúdos com pais que lêem imenso e que se recusam a «perder» tempo a ler. Também há os que gostam de ler sem que alguma vez tenham visto alguém lá em casa fazê-lo. Porém, sabe-se que o exemplo daqueles que nos importam é fundamental em vários níveis do desenvolvimento e a leitura não é excepção.

A minha mãe conta muitas vezes uma história fabulosa sobre ignorância que, claro, gerou ignorância. Uma tia minha, certo dia e a meio de uma conversa telefónica, dizia com um tom muito revoltado à minha mãe que alguém tinha oferecido um livro ao filho dela. Um livro!!! Falava como se fosse o mesmo que levar a lepra para dentro do seu lar. A minha mãe perguntou qual era o mal de ele ter recebido um livro e a outra lá armou uma desculpa esfarrapada qualquer que passava pelo facto de o meu primo, um ano mais velho do que eu, não se interessar por livros. Bom, é óbvio que com aquele choque todo por causa de um livro oferecido pelo Natal também não passaria a interessar-se mais. Tudo o que não fosse um espalhafatoso brinquedo era pouco para o seu menino. Um livro, dois bocados de cartão com folhas no meio era, então, o pior que se lhe podia oferecer. Nem sei quem gostaria menos de tal presente: se a mãe ou o filho.

Enfim, nisto como em muitas outras coisas, não podemos fabricar o que queremos com peças que para ali tenhamos. Podemos dar o exemplo e ninguém querer segui-lo. No entanto, estando provado que há mais hipóteses de que famílias de leitores venham a gerar leitores, qual é a dúvida? Se o meu filho só aceder a smartphones e nunca a livros, não poderei esperar um milagre. Se passar anos de vida sem sonhar que nos livros se contam histórias extraordinárias, provavelmente continuará a sua vida sem que nenhum lhe provoque a curiosidade. Se um miúdo assiste frequentemente aos discursos da mãe diminuindo a importância e a utilidade dos livros, é provavel que ele próprio acabe por pensar que aquilo não vale a pena, pois se a mãe o diz... 

Como disse no início, não nascemos leitores. Vamo-nos construindo aos poucos enquanto tal. E se os olhos de um leitor em formação observam os livros que o rodeiam, também prestam muita atenção aos outros leitores para que reforcem positivamente tal actividade e lhes indiquem os melhores caminhos a seguir pelo meio de tantas páginas possíveis.

A Menina Quer Isto CIV


Um best of da Ana Moura?! Claro que a menina quer! Aliás, a menina já se está a imaginar a ler e a ouvir isto em loop até fazer enjoar os vizinhos da frente. Mentira: ninguém enjoa Ana Moura. Mas já disse que a menina quer isto??? E que faltam treze dias para fazer anos??? Pois, a menina quer isto. Muito. Mesmo. A sério. 

Notinha: Mas com talão de oferta, não vão lembrar-se todos de oferecer-me a mesma coisa.

Ah, e já que estamos numa da «ah e tal, quero isto», a menina também soube hoje que a Antígona está a publicar isto:


E adivinhem! Sim, a menina também quer muito isto. Mark Twain nunca falha e este ficava tão bem ao pé dos outros Twains todos...

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

A estupidez da «linguagem institucional»

No colégio onde trabalhei alguns anos, havia um fundamentalismo da linguagem institucional que fazia com que a gramática levasse diariamente uns valentes beliscões. Se, por exemplo, quiséssemos dizer que os nossos alunos eram muito bons, tínhamos de dizer «os nossos alunos e as nossas alunas eram muito bons e muito boas»; se quiséssemos agradecer a participação de todos os encarregados de educação numa determinada tarefa, tínhamos de dizer «a participação de todas e de todos os encarregados de educação»; se quiséssemos dirigir-nos aos nossos alunos num qualquer discurso, era obrigatório dizer «caras alunas e caros alunos», como se o masculino não abrangesse toda a gente, segundo a gramática. Mas o pior, meus caros, é que não seguir estas regras idiotas e pseudo-igualitárias dava direito a raspanete grande (e público, muitas vezes). Ora, para mim, que era docente de Português, a coisa ainda doía mais porque sabia muitíssimo bem que este exagero linguístico que só visa o politicamente correcto ia bastante contra aquilo que sempre aprendi sobre a nossa língua. Certos textos que nos chegavam às mãos vindos «de cima» eram hilariantes e quixotescos, pois diriam coisas como, imaginem, «caras e caros docentes, hoje é um dia importante para todas e todos os nossos alunos e alunas e para aqueles e aquelas que contribuem para a sua educação». Palavra que me doía na alma, mas nem valia a pena tentar mudar esta maneira quadrada de pensar. Simplesmente, o que fazia era esquivar-me a escrever o que quer que fosse ou fazê-lo de forma a nunca precisar de utilizar palavras que me obrigassem a utilizar os dois géneros separadamente. Era de doidos, acreditem. Porém, infelizmente, há por aí muitas almas que cuidam ser mais inteligentes que os restantes mortais e que crêem que assim é que se fala bem porque deste modo nunca ninguém fica de fora, todos são devidamente abrangidos e sempre com igualdade. Para mim é apenas pedantismo, estupidez e desconhecimento das regras gramaticais. Imaginem agora, só por este pequeno exemplo, o inferno em que vivi. Mas adiante.

Lembrei-me disto porque o conhecido blogue «Horas Extraordinárias» referiu este mesmo problema que, ao que parece, não é exclusivamente português. Aparentemente, nuestros hermanos debatem-se com o mesmo rigor exagerado na escolha de palavras. Podem ler o texto aqui e, sempre que possam, corrijam estas aberrações. Eu fiz o que pude, mas quando se lida com pilaretes em vez de seres humanos com cérebro, não se verificam quaisquer efeitos.

Título de propriedade

Sendo verdade que os gatos roçam o focinho para marcar tal território como seu, então estou a pontos de ir ao notário para oficializar o facto de que já não sou dona das minhas bochechas. Aliás, atesto aqui mesmo que a minha cara é propriedade do Senhor Gato e que ele tenta renovar diariamente a posse da mesma. Basta apanhar-me deitada e pumbas: lá vem ele para cima de mim para roçar o focinho peludo nas minhas bochechas e mostrar ao mundo que eu sou pertença sua. Sim, é verdade: sou pertença de um gato. Podia ser pior. Podia ser uma capivara ou um dragão de komodo.

A Menina Quer Isto CIII


Este é apenas o primeiro volume. O segundo virá mais tarde, mas mesmo assim estão aqui mais de quatro centenas de páginas de um autor muito conhecido, mas até agora fracamente editado por cá. A E-Primatur, que tem feito um admirável trabalho na edição, disponibiliza finalmente em dois volumes a ficção curta de H. G. Wells. Parece-me bem ter tudo assim reunido numa só obra. E também me pareceria bem ter este na estante...