Embora ainda esteja constipada, arrastei-me até ao computador para falar sobre o tema do momento: o Nobel da Literatura entregue a Bob Dylan.
Assisti ao anúncio do prémio em directo e quando a senhora anunciou, ainda em sueco, o vencedor e a razão da escolha, pareceu-me perceber o nome do cantor, mas como não fazia sentido, esperei pelo anúncio em inglês. Afinal tinha ouvido bem.
Depois da estranheza inicial, pensei no assunto e não é fácil falar sobre as conclusões a que cheguei porque, de facto, o tema é complexo. Muito mais do que parece inicialmente.
O primeiro disparate que ouvi foi o daqueles que diziam que o Nobel da Literatura não podia ir para um cantor. Ora, o prémio foi para as letras que escreveu e não para a sua voz ou performance em concertos. Foi a palavra escrita nas suas letras, foi a poesia que produziu e depois musicou que lhe garantiu esta distinção. Além dessa poesia, o facto de ter sido muito engajada também a destaca e isso nós sabemos que é muito importante para o Comité Nobel.
Portanto, não me choca o facto de ser um cantor a receber o prémio por poder não escrever literatura. Dizer isso é ignorância. Lembrem-se que a nossa literatura começa, precisamente, com canções medievais (a lírica galaico-portuguesa) e que esta é tão importante que voltou a fazer parte dos currículos escolares. Mas se isto não for suficiente, lembrem-se de Homero e das suas epopeias. Há lá textos mais basilares na nossa cultura e que nasceram precisamente para serem cantados? A oralidade de um texto não lhe retira qualidade, apenas lhe dá outra dimensão.
O que me preocupa são, no fundo, duas coisas: o precedente que foi aberto e o que fica de fora. Relativamente ao precedente, preocupa-me esta mudança de rumo que aconteceu agora e que já tinha sucedido em 2015 (prémio que, a meu ver, foi muito mais chocante do que este). Se até aqui todos sabíamos mais ou menos o que esperar do Comité Nobel, a partir de agora é o desconhecimento total. Pode sair dali qualquer coisa, seja ela com sentido ou não. E digo isto porque se as letras de Bob Dylan podem ser consideradas poesia e, consequentemente, literatura, dificilmente posso aceitar prosa jornalística como literatura e, portanto, merecedora do Prémio Nobel da Literatura. Mas foi isso mesmo o que venceu no ano passado. Além deste aspecto, preocupam-me todos os autores que estão na lista, alguns já muito velhinhos, com uma obra literária imensa e que merece ser premiada e que vêem agora uma mudança num jogo que parecia ter as regras traçadas há muito tempo. Posso até não dizer que Bob Dylan não escreve literatura, mas daí a trocar autores como Kundera, Rushdie, Roth ou outros por ele é coisa que não me faz sentido. Parece-me injusto para os outros. Ele pode ganhar Grammys, os outros tinham o Nobel e já nem isso é deles. Além disso, acho que é um sinal terrível que se dá: o Nobel da Literatura premeia livros. Agora vão fazer-se livros a correr com as letras das canções de Dylan. Já existia um, penso que editado pela Relógio D’Água, e o resto eram as suas canções, cujos poemas se conheciam ouvindo-se a sua música.
A sensação que tenho é que o Comité Nobel quer ser polémico. Mas parece que só quer sê-lo com a literatura. No ano passado fez a monstruosidade de atribuir o prémio a uma jornalista que escreve não literatura. Este ano deixa uma série de autores notáveis de lado para atribuir o prémio a um cantautor. Será que se o Roth pegar numa guitarra e cantar os seus romances passa a ter direito ao Nobel? E o Rushdie, que teve uma fatwa sobre ele durante tantos anos e que durante tanto tempo e que por isso mesmo esteve tão envolvido em causas como a liberdade religiosa, merecerá o Nobel se pegar no xilofone e recitar Os Versículos Satânicos em Fá Mi Ré? Estou a ser exagerada, claro, mas é para mostrar que é normal que haja uma enormíssima sensação de injustiça por parte dos escritores. É como se o Nobel da Medicina fosse entregue a um santo pela cura milagrosa de qualquer coisa. É inesperado e parece que deixa de parte quem de facto dedicou conscientemente uma vida inteira à literatura. O Bob Dylan escreveu, é verdade, muitas canções que são composições poéticas. Cantou, gravou discos, fez concertos. Mas será que ele pensava nele próprio como um autor de literatura?
A parte boa disto é que levou as pessoas a pensarem no que é literatura. Onde está a literatura? O que dá características literárias a um texto? É só nos livros que encontramos literatura? Está visto que não. Há poesia em muitos lugares e aí vai existir literatura. Bob Dylan escreveu poemas que musicou e, por isso, pode considerar-se que escreveu literatura. Mas se eu fosse escritora estaria neste momento muito chateada com esta decisão. Muitos autores, eternos inscritos na lista dos possíveis vencedores, devem sentir agora que a sua vez nunca chegará porque agora o Comité Nobel pretende mudar as regras do jogo, pretende chocar e voltar ao que era habitual não acontecerá tão cedo. Ainda bem que o nosso Saramago o ganhou noutros tempos, pois se fosse agora talvez o prémio não lhe chegasse.