Hoje sugiro um livro de um Prémio Nobel da Literatura: Mário Vargas Llosa. Quando era mais nova, vi uma edição oferecida por uma revista na montra de uma papelaria e o título do livro interessou-me. A Tia Júlia e o Escrevedor tem hoje uma capa muito mais bonita e uma edição mais cuidada (regalias que o Nobel confere) e é um livro que enlouquece.
Marito gostava de ser escritor, mas apenas lhe cabia um modesto trabalho na rádio Pan-Americana onde devia recortar as notícias interessantes que saíam nos jornais, dar-lhes um ar pomposo para que fossem lidas como se fossem da autoria daquela estação. Nos tempos livres, Marito gostava de ir até à Rádio Central, que funcionava na mesma rua e que pertencia ao mesmo dono, ainda que tivesse umas instalações muito pobres e proporcionasse uma programação muito diferente daquela em que trabalhava. Ligavam pouco às notícias e davam primazia à música peruana. Contudo, o prato forte dessa estação eram mesmo as peças radiofónicas, compradas ao quilo sem qualquer critério e sem serem lidas antes da aquisição. O dono da rádio confiava aos seus santinhos o milagre de cada peça compensar com audiências o dinheiro gasto. Por vezes, no transporte, perdiam-se capítulos inteiros e como ninguém se dava ao trabalho de ler aqueles setenta quilos de papel antes de se iniciar a transmissão, muitas vezes tinham de remendar os seus buracos à última hora.
No dia em que Marito vê a tia Júlia, por quem se apaixona, ouve falar de Pedro Camacho, famosíssimo e conceituadíssimo autor de peças radiofónicas e contratado pela estação onde trabalha. A partir daí, o que acontece no livro é que um capítulo será dedicado às peças de Pedro Camacho e o seguinte à vida de Marito, e assim sucessivamente até ao final da obra. Com o avançar da leitura, vamo-nos apercebendo de que alguma coisa se passa com Pedro Camacho, pois as personagens das suas novelas radiofónicas começam a misturar-se, a ressuscitar, a contradizer-se... E para saberem por que razão isso acontece, leiam o livro.
Deixo-vos o início do texto, retirado da edição que tenho em casa e não desta cuja capa aqui deixo. Espero que vos aguce a curiosidade.
«Nesse tempo remoto, eu era muito jovem e vivia com os meus avós numa quinta de paredes brancas da Rua Ocharán, em Miraflores. Estudava em San Marcos, Direito, creio, resignado a mais tarde ganhar a vida com uma profissão liberal, ainda que, no fundo, tivesse gostado mais de chegar a ser um escritor. Tinha um trabalho de título pomposo, salário modesto, apropriações ilícitas, horário elástico: director de informação da Rádio Pan-Americana. Consistia em recortar as notícias interessantes que apareciam nos jornais e maquilhá-las um pouco para que fossem lidas nos noticiários. A redacção, sob as minhas ordens, era um rapaz de cabelo empastado e amante de catástrofes chamado Pascual. Havia noticiários de hora a hora, de um minuto cada, excepto os do meio-dia e das nove, que eram de quinze, mas nós preparávamos vários ao mesmo tempo, de modo que eu andava muito na rua, a tomar cafezinhos na Colmena, às vezes ia às aulas, ou então estava nos escritórios da Rádio Central, mais animados do que os do meu trabalho.»
O duplo sentido nas trocas de personagens tornam esta obra magnífica.
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