quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Os lambedores de botas

Eles são burros, mas safam-se; eles são incultos, mas acabam por ter lugar em conferências enquanto oradores; eles bajulam até à exaustão mas nunca levam o merecido par de estalos; eles passam por cima de quem, efectivamente, tem mérito... Eles são os lambe-botas.

Ao longo do meu percurso académico conheci uns quantos desta espécie não tão rara quanto eu gostaria que fosse. Sempre me pareceram pouco mais do que ratos desprezíveis e sempre me mereceram pouquíssima consideração. Por lá andavam a distribuir elogios eloquentes pelos professores que, apaixonados por uma boa engraxadela, lhes distribuíam a sua benção e protecção. E assim vi os maiores cretinos deste mundo ascenderem a lugares que foram vedados a gente com muito mais talento do que eles. E vi-os olharem os outros com um indiscutível ar de superioridade, até ao ponto em que já nem os olhavam, de tão inchados e de tão cheios de si próprios que se encontravam. Vi estes mesmos idiotas lutarem para ter pelo menos um dez num teste, enquanto numa outra disciplina se perdiam em verborreias pretensamente intelectuais que enojavam qualquer alma que percebesse do assunto. Só mesmo o professor é que não via o bajulanço e a ignorância que o discurso escondia. Vi-os chegarem a patamares onde outros, os realmente bons (mas que não lambiam botas a ninguém), dificilmente chegarão. Vi-os tornarem-se seres repugnantes por quem me recuso a ter respeito e com quem dispenso trocar uma palavra que seja.

Ao longo dos vários anos que passei na faculdade, conheci gente muito talentosa. Com melhores ou piores notas, fui-me apercebendo de que existiam pessoas talhadas para prosseguir na área da investigação e que, pelo trabalho e pelo mérito, acabariam por lá chegar. Esses, pensava eu, sair-se-iam bem, teriam sucesso. Enganei-me em alguns dos casos. E porquê? Porque em vez desses, que liam, que estudavam, que se dedicavam, que se esforçavam, que procuravam diariamente ser melhores eram ultrapassados pelos lambedores de botas que se iam aproximando dos professores, desfazendo-se sempre em elogios, até que lhes era dada uma oportunidade para fazerem isto ou aquilo. Uma participação num colóquio, algumas palavrinhas numa conferência, meia dúzia de linhas num artigo, uma série de lugares-comuns para lá de desinteressantes na maioria das vezes. Na assistência, os que percebem efectivamente do assunto chocam-se com as enormidades que vão sendo proferidas pelos lambedores de botas, mas a verdade é que são esses asquerosos que estão no lugar que deveria ser para aqueles que têm o talento. Os professores, ceguinhos com tanta adulação, nada vêem e continuam abençoando os seus discípulos burros e relegando os outros, os verdadeiramente bons, para um segundo plano que dificilmente chega a primeiro.

Eu nunca soube dar graxa a ninguém, nunca lambi botas e portanto nunca tive mais oportunidades do que aquelas que eram naturais. Vi muitos colegas colarem-se aos professores, mudarem-se quase de armas e bagagens para os departamentos à espera do dia em que venceriam os docentes pelo cansaço e que chegaria a primeira oportunidade; vi colegas irem à biblioteca requisitar livros que fariam falta a outros, só mesmo para mostrarem ao professor que foram muito expeditos e diligentes ao prepararem-se para a disciplina (ainda que depois não os lessem...). E os docentes, gente que eu até tinha em alta conta, derretiam-se com aqueles paspalhos sentados no lugar mais colado ao professor.

Um dia, um desses lambe botas disse-me uma frase fabulosa, pronunciada aos berros, como se eu tivesse problemas auditivos graves (que não tenho, felizmente). A diarreia verbal que pronunciou envolvia o facto de um livro de que ele gostava ser infinitamente melhor do que o Quixote (não revelo o texto que evocou). Note-se que ele nunca havia lido o livro que, com tanta sabedoria oca, minorizava. Portanto, ainda que o outro fosse efectivamente melhor, a sua opinião nunca mereceria qualquer atenção da minha parte, que, diga-se, havia lido ambos os textos. Não lhe respondi, limitei-me a olhar para ele e a sentir pena pelo tamanho engano em que vivia ao achar-se genial e ao não passar de um pobre coitado incapaz de distinguir uma águia de uma galinha.

Sempre disse, e mantenho a afirmação, que se algum dia um aluno me tentar lamber as botas, terá problemas comigo porque não tolero gente que se mostra dócil, afectuosa e interessada apenas com o fito no que pode vir a obter da minha parte. Recuso-me a ser uma professora ceguinha, como eram as professoras universitárias que tinham um séquito destes abutres atrás de si e que nunca os enxotavam como eles mereciam. Talvez elas achem que ter um lambe botas privativo seja sinal de estatuto social e eu ainda não me tenha apercebido. Se assim for, quero dois para embrulhar, por favor!

9 comentários:

  1. Ainda muitos os são. Mas também acho incrível como os profs não vêm essas coisas. Pessoalmente sempre tive uma boa relação com os professores mas não creio que alguma vez lambi botas a nenhum. Sempre me esforcei pelas minhas notas, mesmo as mais baixas, e posso dizer que nunca nenhuma foi pedida ou dada por "cunha", coisas que vi a acontecerem à minha frente várias vezes.

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  2. Heartless, uma vez vi uma colega minha, numa aula, conseguir à base de graxa, subir o 14 que tinha tido no teste para um 17!... Isto mete-me nojo.

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    1. Filha,

      Se há criaturas que me caem na fraqueza, essas são os lamvedores de votas. Mas sabe que até sinto uma certa pena porque, coitados, não têm noção da tristíssima figura que fazem todo o santo dia. Quanto às oportunidades, é verdade sim senhores, mas também acredito que o que é nosso está guardado. Se fizermos bem o nosso trabalhinho, creio que, mais tarde ou mais cedo, a coisa acaba por sorrir.

      É assim a vida! Nem todos foram bem fadados à nascença! Também há os que foram bem f*d|d*s... e os lamvedores são desses.

      Despeço-me com uma lambidinha na sua bota, sim?

      Sem superioridades ou pedantismos,
      Filho

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    2. Olhe, Filho, agora fez-me lembrar uma frase do (genial) Saramago: «Aquilo que tiver de ser meu às minhas mãos há-de vir ter». Oxalá o senhor tivesse razão e as coisas nos apareçam em boa hora e não quando já estivermos com os pezinhos para a cova. E já que estou numa de «quereres», queria que voltassem a instituir os autos-de-fé no Terreiro do Paço para os lambe botas deste mundo e que lhes dessem um tratamento estilo «Távoras»... Acha que exagero?

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    3. Não, filha, não exagera. Sugiro que se faça um todos os anos, por alturas do Santo António. Aproveita-se e dá-se uma assadela nas sardinhas!

      Despeço-me agitando um arquinho e um balão,
      Filho

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  3. Este texto merece aplausos, tantas verdades. E revejo-me na tua posição, e vi tantos colegas a fazer isso e por incrível que pareça esses agora arranjaram trabalho, vêem-se em lugares de destaque e acham-se os melhores, quando na verdade para lá chegar não fizeram um percurso limpo, esforçado. Não fazem ideia do que é uma investigação, nunca fizeram nada sem ajuda, passaram a vida a depender de outros e a "lamber botas". o país que temos tolera e enquanto não mudar será assim. Tive colegas que requisitavam todos os livros para ninguém ter acesso à informação, tive colegas que apareciam nas apresentações orais de ambos os turnos para rebaixar os colegas, fazer perguntas estúpidas sem nexo só para os ver atrapalhados, depois tiravam apontamentos de todas as críticas que os professores diziam para o trabalho deles ser sempre o melhor chegando ao ponto de mudar o trabalho no intervalo na reprografia. faziam-se sempre de coitadinhos, depressivos... para os profs fazerem-lhes tudo.
    Quem se saiu melhor no mercado foram eles, e eu cá continuo a lutar, arriscar, a procurar, empenhei-me muito mais do que eles, fiz um percurso limpo mas não sou capaz de lamber botas, mas hoje tenho professores que me apoiam e ajudam, mas pelo meu esforço não porque lhes lambi as botas. Isso nunca. Mas olha para esse o meu desprezo, eu acredito que terei a minha sorte, vou continuar a esforçar-me e a lutar por isso.

    :) Belas palavras! Só mostra o quanto tu és superior em relação a esses colegas que merecem só o teu desprezo.

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    1. Ana,

      Seja forte! Não se deixe sonegar por criaturas abjectas! O que é seu está guardado. Pode demorar, mas está lá guardado para si e não deixe que lhe digam o contrário.

      Com cordialíssimas saudações,
      Filho

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  4. É uma coisa abominável, aNa. E o que me irrita é o bem que esta gente se sai de um percurso vergonhoso em que mais nada fizeram para além de engraxar quem tinha algum poder. Vi isto acontecer vezes e vezes sem conta. Cheguei a ver esses tristes plagiarem coisas pela simples razão de que não têm dois hemisférios cerebrais que lhes permitam pensar, como qualquer ser humano. São criaturas formatadas para conseguirem o que querem passando por cima de quem for preciso. E vi e vejo, infelizmente, muita gente carregada de talento, de método, de vontade e de conhecimentos que não teve as mesmas oportunidades porque não bajulou, não lambeu as botas de ninguém. Não sei como os professores não vêem... Devem gostar de ser adulados, só pode. :S

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    1. Eu vi e continuo a ver. E haverá sempre pessoas assim, infelizmente. :) Isso dos plágios também vi muitos e tive de me calar porque não sou pessoa para julgar, nem para apontar o dedo, os professores é deveria ver. Mas quanto a mim, apesar de tudo tenho a consciência tranquila. E um dia terei o meu lugar, seja em Portugal, no UK, na china, porque para sonhar não há Limites. :)
      Sonhar é o primeiro passo para conquistar.

      Fico à espera do Livro :) :) :)

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