terça-feira, 25 de julho de 2017

Questões de agenda

Ontem à noite vi na RTP3 um documentário sobre cesarianas. Falou-se do procedimento, dos prós e dos contras, dos avanços que a técnica sofreu ao longo dos tempos, mas também da moda em que se tornou. A comunidade médica alemã, por exemplo, mostrava-se preocupada com o aumento drástico do número de cesarianas realizadas sem que houvesse verdadeira necessidade disso. 

O documentário é bastante interessante, porém o que me leva a escrever esta quixotada tem que ver com dois casos apresentados, representativos de tantos outros e por isso mesmo um pouco assustadores. 

Na China, uma mulher de 22 anos começou a pesquisar na internet mal soube que estava grávida. Pelo que leu e pelo que as amigas lhe diziam, o parto natural era muito doloroso e ela não estava para isso. Escolheu marcar e pagar uma cesariana para a qual toda a família contribuiu. Ora, por um pagamento extra, podia escolher a data da mesma. Lá foi ela para a internet procurar dias entendidos como sendo "de sorte" para o bebé nascer. Optou pelo dia dos namorados na China, 7 de Julho. A sogra, ao lado dela enquanto falava para a reportagem, disse que as mulheres agora eram "muito mimadas", que faziam tudo para escapar à dor que sempre tinha sido inevitável nos nascimentos. Eu fiquei a perguntar-me se a sorte que o nascimento naquele dia poderia trazer ao miúdo (caso se acredite nessas coisas) não ficou anulada pelo facto de o nascimento ter acontecido naquela data apenas porque a mãe assim escolheu e pagou para isso. Fiquei a pensar que já nem se tem direito a nascer quanto o corpo assim o pede. Agora vai-se ao Google e escolhe-se o dia em que a cegonha faz a entrega. Enfim...

A outra situação passa-se no Brasil, mas pelo que percebi acontece em vários outros países. Exitem clínicas sem equipas médicas próprias que alugam os blocos operatórios para os médicos fazerem lá os partos das suas pacientes. Ou seja: um obstetra segue uma paciente no seu consultório, mas não trabalha num hospital. Existe a hipótese de alugar um bloco operatório para fazer cesarianas às suas pacientes. Nesses lugares não se fazem partos normais, apenas cesarianas. O documentário explica porquê. É que um parto normal pode acontecer a qualquer momento e prolongar-se por horas. Porém, o médico tem mais que fazer e não pode parar o resto da sua vida profissional apenas para fazer o parto de uma única parturiente. Além de que, se se tratasse de um parto normal, ele poderia ocorrer num momento em que o médico nem pudesse deslocar-se à clínica. Por isso, para rentabilizar o tempo do médico, programam-se as cesarianas para a noite, para quando os obstetras já fecharam os seus consultórios e podem finalmente ir fazer nascer uns bebés. Pior: fazem-no duas semanas antes daquela que seria a data provável do nascimento, quando, segundo a reportagem, ainda faltam alguns dias para os pulmões do bebé estarem completamente  prontos para o nascimento. Não sei que consequências isso pode trazer, mas não me pareceu grande prática. Além de que tudo aquilo era impessoal, na medida em que a parturiente tem de esperar horas até que o médico termine as suas consultas, chegue à clínica com a sua equipa e tenha, então, a disponibilidade para trazer o bebé ao mundo. Mais: ainda existe a possibilidade de ter um fotógrafo a filmar a cesariana. Por um filme de dez minutos e setenta fotografias pagam mais qualquer coisa que não é assim tão pouco. A reportagem dizia que as cesarianas também estão a ser boas para os fotógrafos. Nem consigo comentar isto. 

Eu acho e já o disse aqui várias vezes que vivemos tempos terríveis. Temos acesso a tantas coisas que estamos a desumanizar-nos. O nascimento sempre foi aquele momento natural em que o corpo dava o seu sinal e começava um processo incrível que culminava com uma nova vida neste mundo. Não acho que, existindo anestesias, as mulheres tenham de sofrer tanto como no passado. Se há epidurais que facilitem a coisa, usem-nas. O que me parece de doidos é usar as cesarianas como forma de escolher dias de sorte para os nascimentos dos filhos, pagar para ter o bebé quando dá jeito ao médico, mesmo que umas semanas antes do que seria suposto. Pensei, enquanto via a reportagem, que o mundo é realmente muito triste quando um bebé já nem pode nascer quando assim tem de ser, quando a sua data de nascimento foi previamente escolhida por outros, quando até nasce antes da data prevista por questões de agenda. Parece-me tudo muito estranho, muito pouco natural relativamente a uma coisa que sempre foi tão natural.  Pensei até que os animais chegam a ter mais sorte do que muitos bebés: pelo menos ainda nascem quando assim tem de ser, sem pesquisas prévias no Google e sem fotógrafos profissionais a vender vídeos e fotografias no bloco operatório. 

Eu nasci de cesariana porque achei por bem enrolar-me toda no cordão. A minha mãe conta que lhe rebentaram as águas e que tudo começou naturalmente (ela nem sabia se ia ter uma menina ou um menino). Já no hospital perceberam que eu estava em risco e avançaram para a cirurgia. Na altura ainda a faziam com anestesia geral, portanto a minha mãe nem deu por nada. 

Neste caso, a cesariana salvou-me a vida e eu sempre a entendi assim: como um procedimento utilizado quando o nascimento não pode acontecer pela via normal. Sempre entendi que primeiro se tentasse o parto normal e só depois a cesariana. Ou que, havendo já razões médicas para crer que um parto normal não correria bem, se partisse logo para a cesariana. Nunca vi a cesariana como uma comodidade de agenda ou como uma maneira de um filho nascer num dia considerado de sorte em vez de estar sujeito ao aleatório da coisa e nascer quando tem de ser e pronto. 

A nossa humanidade, capaz de grandes invenções, está a desumanizar-nos e a conseguir tornar pouco natural aquilo que de mais natural existe nas nossas vidas: o nascimento. Vivemos tempos inacreditavelmente paradoxais: sabemos tanto sobre tantas coisas e mesmo assim optamos por deixar de lado o que é mais natural e fisiológico para nos rendermos ao que dá jeito. Camões é que sempre o disse bem: "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades" e até muda a própria mudança. Nem sempre para melhor, diria eu. 

2 comentários:

  1. Este descontrolo já leva vários anos e é fruto do défice de regulação.
    Há também a rentabilidade para os médicos e a conveniência para as mães: possbilidade de ditar a data de nascimento da criança, pela profissão dos pais e por receios de que o parto natural cause problemas no aparelho reproductor. E há também quem aproveite para fazer uns ajustes ao corpinho.
    A cesariana devia ser uma hipótese privilegiada para gravidezes de risco.
    Enfim, a tecnologia gera comodidade.

    Também sou membro do grupo Nasci Com Colar, mas o parto foi normal.

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    1. Sim, a rentabilidade para os médicos também foi falada na reportagem, nomeadamente no que dizia respeito à tal cadeia de clínicas no Brasil que alugam os blocos operatórios. Fiquei a imaginar que entre as consultas nos próprios consultórios e as cesarianas que fazem pela noite dentro, aqueles médicos têm de ter contas bancárias muitíssimo recheadas.

      Aquilo que me entristeceu foi mesmo ver que o nascimento, um momento tão importante e bonito para uma família, deixou de ser uma coisa espontânea e natural para tornar-se numa questão de agenda. Que mundo é este em que um bebé já não pode nascer quando "lhe apetecer", mas sim quando causar menos transtorno à vida profissional dos pais? E que mundo é este quando se aceita que um bebé nasça duas semanas antes do final do tempo por conveniência da agenda da obstetra? E onde vamos parar quando a data de nascimento já é escolhida com base em pesquisas no Google?

      Acho que andamos todos doidos e a fazer muito mau uso da inteligência que temos. Ao ponto de parecer que só fomos dotados de estupidez. :(

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