segunda-feira, 17 de julho de 2017

O Duplo - o balanço (possível)

Estou aqui há algumas horas diante do ecrã a pensar sobre o que vos dizer e como falar do livro O Duplo, de Dostoiévski e não cheguei a conclusão nenhuma. Quando um livro é tão vertiginoso e ambíguo, o que dizer sobre ele? Nada de ideias definitivas, nada de conclusões interpretativas, nada. Há três ou quatro questões que levantei a mim própria, mas não passam de dúvidas. Dei uma voltinha pela internet para ler opiniões alheias. Não gostando do que vi em Português, passei às opiniões de leitores espanhóis e fiquei contente por ver que não fui só eu a ficar com a cabeça num nó ao ler este livro. Creio que a ideia do autor seria mesmo essa, a de levantar dúvidas tão embrulhadas que chegamos ao fim da leitura a perguntar «O que raio se passou aqui?».

Ao fecharmos o livro, a grande questão é: quem é este duplo? Mas mais ainda: este duplo existe mesmo? O que pode provar a sua existência? Podemos confiar no protagonista para acreditar na existência de um duplo? Sempre aprendi que devemos desconfiar de narradores bêbados ou com doenças mentais, obsessões e afins. Neste caso, o problema não está no narrador, mas no protagonista que, desde o início, assume que só usa uma máscara em determinadas circunstâncias. Quem nos garante que este duplo alegre, divertido, cativante - precisamente o oposto do «original» - não é, precisamente, a máscara que ele assume colocar apenas em alguns momentos? Na realidade, poucas ou nenhumas são as provas de que esse duplo exista fora da cabeça do senhor Goliadkin, funcionário público de baixo estatuto. Ao longo da leitura, e atentando nas falas e nos pensamentos do protagonista, pensei várias vezes que ele estava a deixar-se enlouquecer e que era um «desencaixado» da realidade, ou seja, tudo o que dizia e fazia diante de terceiros corria mal, saía ao contrario do que devia sair e era, por isso, desenquadrado daquilo que a sociedade esperaria. Se falava, enrolava-se nas palavras e acabava por sentir-se mais angustiado depois de tentar resolver certas situações do que se nem tivesse tentado esclarecer nada. Além disso, uma personagem que pára um dia supostamente alegre para ir chorar sobre o ombro do seu médico e que recebe como conselho fazer-se amigo da garrafa e soltar-se mais não pode estar bem. 

Todavia, estas pistas só colocam questões. Não creio que existam respostas definitivas para o que realmente acontece com este senhor Goliadkin. Um bocadinho como o Bentinho e a Capitu, de Machado de Assis, que deixarão para sempre a dúvida sobre a existência de traição ou não. Cada leitor entenderá os acontecimentos à sua maneira e viverá com as suas dúvidas e certezas no final.

Mas afinal, o que se passa neste livro de Dostoiévski? Um funcionário público de baixo estatuto prepara-se para um dia de luxos proporcionados por um considerável valor em dinheiro que tem na carteira. O objectivo final é o de comparecer na festa de aniversário da filha do seu chefe. A meio do dia, ou melhor, em boa verdade ainda antes de iniciar a verdadeira preparação para o evento social do final do dia, pára para conversar com o seu médico, mantendo um diálogo que aponta algumas pistas na direcção de uma fraca estabilidade mental deste senhor e de um desenquadramento relativamente ao que é apreciado pela sociedade. É, pois, nesse momento que é aconselhado pelo médico a fazer-se amigo da garrafa e a sair mais à noite, o que nos leva a crer num fechamento excessivo desta personagem, numa existência triste e diferente daquilo que seria a de outros (e a que seria tida como «saudável»). Depois, o senhor Goliadkin dirigir-se-á, enfim, a casa do seu chefe, da qual será escorraçado por não ter sido convidado para a festa da jovem Klara. Ainda assim, acabará por arranjar maneira de entrar contra a vontade do anfitrião e causando uma situação embaraçosa para a sociedade russa ali presente, mas sobretudo para aquele indivíduo que parece não encaixar plenamente em lugar nenhum. Depois de ser conduzido à rua, o protagonista cruzar-se-á, na sua deambulação, com uma figura que aparenta ser igual a si mesmo, o que o transtorna. Mais transtornado ficará quando vir, no dia seguinte, que este seu duplo ingressa na mesma repartição em que é funcionário, mas sem que os outros dêem verdadeiramente pelas suas semelhanças. Só quando ele chama a atenção para esse facto é que uma das personagens com quem conversa afirma que sim, que existem algumas parecenças. Mais estranho ainda é o pormenor de este duplo ter o mesmo nome que o senhor Goliadkin e ser proveniente da mesma aldeia. Contudo, será o que os separa aquilo que mexerá verdadeiramente com o protagonista: se em aparência são iguais, à mediocridade e à pouca alegria do senhor Goliadkin «original» contrapor-se-á um modo de ser totalmente diferente do duplo, alguém que sabe fazer-se querido pelos outros. No fundo, a sensação que fica é a de que este duplo é aquilo que o senhor Goliadkin não é. É como se existisse outro senhor Goliadkin para conter a parte positiva e feliz que no original não existe. Mas voltamos ao mesmo: afinal este duplo existe mesmo ou é efeito de uma enorme desilusão para com a vida, misturada com uma boa dose de loucura que vai crescendo, crescendo, crescendo até ao momento em que a única solução é afastar o senhor Goliadkin da sociedade? Não sei. Aliás, sei poucas coisas relativamente a esta obra literária que, de tão magistralmente escrita, deixa os seus leitores em dúvida há muitas décadas. Os leitores terão as suas teorias, mas poucas certezas. Na minha opinião, o duplo será simultaneamente alguém que nunca existe e alguém em quem o senhor Goliadkin projecta a sua própria imagem e o consequente desconforto e ciúme. É esse o processo que o conduz à insanidade: o de não ser aceite e de projectar noutro tudo o que devia ter e não tem. Mas pior: o de tentar lutar contra esse outro que poderá não ser mais do que uma ideia sua que as outras personagens não vêem como ele vê. Porém, uma outra interpretação poderia entrar mais no campo do fantástico e admitir que sim, que esse duplo que inferniza a vida do pobre e apagado senhor Goliadkin existe mesmo e atormenta o nosso herói até o fazer sair de cena.

Portanto, o meu balanço é a inexistência de um balanço. É Dostoiévski a recordar-nos por que motivo é um dos maiores da literatura universal. É um autor a saber quebrar-nos enquanto leitores chico-espertinhos que somos, a saber lindamente como trocar-nos as voltas e a deixar-nos desconcertados com a impossibilidade de respostas definitivas para as dúvidas que o texto nos coloca. Se puderem, leiam este livro e procurem vocês mesmos as respostas que eu não vos consigo dar. Assistam à queda de um homem que não cai de cima de nada porque ele já começa por baixo de tudo. Vejam como uma sociedade altamente hierarquizada trata aquele que se encontra perto da base da pirâmide; procurem perceber o que faz a um ser humano a sensação perene de que não está à altura, de que nunca é o que devia ser, embora também não seja dado a usar máscaras, nem tenha qualquer talento para isso. Lembrei-me muito de Kafka e de Pirandello ao ler este livro. Desafio-vos a lerem-no também e a tentarem perceber a razão pela qual recordei dois outros grandes autores ao ler a história triste do senhor Goliadkin. Não será tempo perdido.


2 comentários:

  1. Os Russos e os nós cegos ;)

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  2. Nunca (ainda?) não li este - mas tenho imensa curiosidade por um motivo absurdo: foi o tema da tese da Sylvia Plath, e eu adoro a Sylvia Plath.

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