segunda-feira, 3 de julho de 2017

Incidente em Antares: o balanço

Nota inicial: Vou escrever está quixotada no telemóvel por isso perdoem-me as possíveis gralhas e o desalhinhamento do texto. Se não escrever isto já hoje, passo ao livro seguinte e acabo por esquecer-me de falar-vos deste.

Hoje terminei a leitura de Incidente em Antares, de Erico Veríssimo e posso dizer-vos que este é um livro EXTRAORDINÁRIO! Assim mesmo, em maiúsculas. É daqueles aos quais ficamos agarrados e que ficam também agarrados a nós. Estão a ver aqueles livros que só queremos acabar para conhecermos o fim, mas que nos deixam uma sensação de orfandade quando chegamos à última página? Este é um desses. 

Sem vos revelar tudo, deixem-me dizer-vos mais ou menos o que compõe este texto. Numa pequena cidade do sul do Brasil, chamada Antares, acontece na década de sessenta do século XX um "incidente" que altera a vida dos habitantes daquele lugar. Mas calma: desse incidente só se fala na segunda parte do romance. Antes disso, uma primeira parte apresenta-nos a história de Antares ao longo dos tempos. Ora, aquilo que acontece nessa pequena cidade é originado em boa parte pelo que acontece politicamente no Brasil, sensivelmente desde o século XIX até ao momento do incidente. Deste modo, o autor apresenta ao seu leitor um resumo da história política do Brasil. Todavia, ao lermos, percebemos bem que aquela primeira parte é um grande preâmbulos sem o qual não conseguiríamos perceber toda a dimensão do incidente que constituirá o núcleo da segunda parte. Ligadas à história política do Brasil estão as personagens que voltaremos a ver na segunda parte. Conhecemos os seus ascendentes, os seus vícios e virtudes, os seus talentos e os pontos fracos e tudo isso será fundamental para a compreensão da segunda parte. Somos apresentados a uma sociedade patriarcal e extremamente machista, onde vale tudo, mas mesmo tudo, para chegar-se onde se deseja. Em Antares há duas famílias inicialmente rivais que têm propriedades a perder de vista e que se tornam as mais importantes da cidade, ao ponto de nenhuma decisão ser tomada sem passar antes por elas. Falamos dos "coronéis" que nos habituámos a ver nas novelas da Globo: homens que mandam e desmandam, que decidem a seu bel-prazer e que se tornam perigosamente poderosos. Os Vacarianos e os Campolargo serão o eixo em torno do qual Antares vive. 

Depois desta primeira parte em que somos contextualizados tanto relativamente à cidade como ao país, passamos à segunda, à do incidente. 

Antares vai viver uma greve geral dos trabalhadores de três empresas que laboram na cidade. O objectivo são os aumentos salariais que já não acontecem há vários anos. Se tudo correr como está previsto e se as empresas não cederem, Antares parará, até porque muitos outros trabalhadores pararão também em solidariedade com os colegas das tais três empresas estrangeiras (pormenor que mostra já a crítica à exploração por parte de outros países aos trabalhadores de pequenas cidades do Brasil, onde a mão-de-obra era barata e garantia de sólidos lucros empresariais). Bom, não existindo acordo, a greve avança e até os coveiros, em consideração com os restantes camaradas, pousam as pás e não procedem a sepultamentos. Também eles, mesmo sendo funcionários da Prefeitura, querem seguir a onda de exigências e pretendem aumentos. Por coincidência, naquele primeiro dia de greve, vários habitantes da cidade morrem. Sete, para ser mais precisa. O problema maior acontece quando falece a matriarca da família Campolargo. Depois do cortejo fúnebre, quem acompanhou o féretro ao cemitério viu-se impossibilitado de lhe dar sepultura, não só por um enorme piquete de greve, mas também porque os coveiros se recusaram a fazê-lo. Assim, o corpo de D. Quita, a mulher mais rica da cidade, fica no caixão encostado à parede do cemitério à espera de que a greve passe. Junto a ela já estão outros seis defuntos, mas desses ainda não havia história, pois socialmente não eram ninguém ou quase ninguém. Depois de uma noite junto ao cemitério, os sete defuntos levantam-se dos féretros e descen ao centro da cidade para fazerem pressão sobre os vivos de modo a que dêem enterro digno aos mortos. Primeiro farão visitas privadas e cada um visitará aqueles que mais amou e as casas onde viveu, muitas vezes para descobrirem apenas que já foram esquecidos e trocador por outros. Verificarão que aos vivos interessam as jóias, a herança, a liberdade que tal morte gerou. Poucos dias após a morte, estes defuntos já nem eram lembrados. Mas far-se-ão recordar com grande pompa. 

Não vos conto mais porque este livro é ainda melhor se certos pormenores forem descobertos página a página. Mas o que me importa ainda dizer-vos é que este incidente despirá a cidade das suas vestes falsas, arrancar-lhe-á as máscaras e as vidas duplas, paralelas, reprováveis tornam-se públicas. No fundo, cada defunto mostrará um ou vários problemas que assolavam o Brasil da época. Recorde-se que era um país sob ditadura militar, no qual a liberdade era extremamente condicionada, onde as torturas existiam em nome de um suposto bem maior. Isto tudo na tal sociedade patriarcal onde a voz da mulher não se fazia ouvir e na qual a corrupção e a ilegalidade imperavam. Estes defuntos chocarão a cidade, não só pelo seu aspecto e cheiro pestilento, mas também porque, não tendo já nada a perder, dirão e farão na morte o que lhes foi impossível em vida. 

E o que resulta dessa intervenção tão macabra? Não vou contar-vos para não estragar a leitura. Mas imaginem uma sociedade com séculos de falcatruas, inde o fosso entre ricos e paupérrimos não é bem um fosso, mas mais um precipício... o que vos parece que vão  conseguir estes corpos em decomposição, ansiosos por descerem à terra? 

Infelizmente, este não é um livro muito fácil de conseguir. Comprei o meu há uns anos numa feira de objectos em segunda mão. Gostaria que as editoras olhassem mais para a obra de Erico Veríssimo, mas é difícil abdicar de publicar porcaria para editar um dos melhores autores brasileiros. Entretanto, a quem interessar, possivelmente encontrarão este romance nas bibliotecas ou em alfarrabistas. Vale muito a pena e é um livro que constantemente nos surpreende, levando-nos a pensar sobre o modo como uns podem ter duas vidas paralelas enquanto outros, tão mais desprotegidos, nem uma vida com dignidade podem ter. Enfim, este romance levanta tantas, mas tantas questões que só lendo. Espero que o encontrem e que se divirtam tanto a lê-lo como eu me diverti. 



3 comentários:

  1. :)
    Concordo, Veríssimo está efectivamente esquecido pelas nossas editoras.
    Vou ver se o encontro, obrigada.
    Talvez na biblioteca dos meus pais, que é um mundo.

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  2. Deve ser um bom livro para se ler.
    Eu vi a obra adaptada para um seriado de TV. Mencionas as novelas da Globo - pois a Globo adaptou muitas obras de Veríssimo, e esta foi uma delas. A matriarca foi interpretada por Fernanda Montenegro.

    Abraços

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    1. Ouvi falar há uns anos dessa adaptação, mas não a vi. O livro é delicioso e com uma crítica política e social que o atravessa da primeira à última página. Parece-me que, mesmo volvidos já quase cinquenta anos desde a sua publicação, que não perdeu a frescura e Erico Veríssimo demonstra aqui um sentido de humor que ajuda a enriquecer o livro.

      No Brasil existe a inteligência de adaptar em boas séries televisivas o melhor que a literatura (e a história, também) deu. Por cá não somos tão espertos. Com livros tão bons e com uma história riquíssima, só sabemos fazer telenovelas todas iguais e séries que ficam sempre aquém do que poderiam ser. Já não é defeito: é feitio.

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