quinta-feira, 13 de julho de 2017

Da inveja

Temos hoje o mais fácil dos acessos à cultura, à leitura, à informação. São cada vez mais as pessoas que estudam muito além da escolaridade obrigatória. Enfim, temos tudo para ter uma sociedade informada, com um espírito crítico aguçado, capaz de dar e de sustentar opiniões.

No entanto, fazendo uma rápida viagem pela blogosfera e pelas redes sociais, encontramos exactamente o oposto. Gente que recorre ao insulto, à ameaça, ao palavrão para comentar qualquer coisa; gente que, quando confrontada com opiniões contrárias, deixa de saber argumentar e parte para a pura ignorância; gente que, perante uma crítica, em defesa dos bloguers ou de figuras públicas apenas consegue dizer «Vocês têm é inveja.». Esta quixotada é sobre os comentadores que vêem inveja em todo o lado. Pessoas que, se forem à praia, encontram a inveja debaixo da toalha. Pessoas que conseguem comentar dez posts no Facebook com «Tens é inveja.». Pessoas que balbuceiam «inveja, inveja» enquanto dormem. Enfim, gente tonta e de vocabulário reduzido.

Não é difícil encontrar estes GPS’s da inveja. Basta seguirem um blogue conhecido e abrirem os comentários. Sempre que alguém comentar dizendo que não gostou de alguma coisa leva logo como resposta um «Tu tens é inveja por não seres como ela.». A bloguer até pode estar vestida de palhaça, com uma caçarola na cabeça e um saco de farinha em cada pé que, invariavelmente, basta alguém com dois olhos na cara comentar com um «Não gosto lá muito do conjunto.» para vir um defensor aguerrido soltar o pseudo-argumento da inveja.

No Facebook a mesmíssima coisa. Se aparece uma notícia sobre um qualquer famoso que fez um disparate qualquer e alguém comenta que aquilo não se fazia ou não se dizia, pouco depois salta da moita o tigre defensor arremessando o maravilhoso ataque da inveja. Ou seja: algumas pessoas são incapazes de ver que outros, geralmente figuras públicas, são tão seres humanos como nós e que por vezes lhes foge a mão para o disparate, seja na roupa que vestem, seja nas coisas que dizem, seja nas acções que fazem. Perante a crítica de outros (frequentemente também ela bastante dispensável), atiram a logicazinha da inveja. Se eu achar a Cristina Ferreira uma pindérica e o disser, imediatamente virá alguém dizer que eu tenho «é inveja». Ou seja: parece anti-natura eu não apreciar o estilo dela (e estou a usá-la meramente como exemplo, podia escolher muitos outros) e, se assim é, só pode dever-se a um defeito meu, neste caso a inveja. Aparentemente todo o mundo pode detestar-me a mim, que sou uma reles anónima, pode odiar o que visto, pode gozar comigo que ninguém vem em minha defesa. Aí não é inveja, se calhar até é merecido. Mas se for com uma figura pública, alto e pára o baile: é inveja pura, inveja feia, inveja ruim! Mas isto faz sentido a alguém?

Além de este arremesso da palavra «inveja» para a esquerda e para a direita estar ao nível do que fazemos nos pátios das escolas aos cinco ou seis anos e de funcionar como argumento assim mais ou menos como funcionava a varinha mágica que se me avariou e foi para o lixo na semana passada, é absolutamente estúpido porque não, não é inveja o que sentimos quando vemos ou lemos um disparate feito por alguém conhecido. Frequentemente é mesmo sentido da realidade e capacidade de perceber que aqueles seres humanos (porque é isso o que eles são e não divindades lançadas sobre a terra para entreter a humanidade) também fazem disparates, sejam eles inocentes quanto uma roupa mal escolhida ou um bocadinho mais graves. Francamente, perder tempo a comentar tais notícias já nem faz muito sentido, mas, enfim, há quem o queira fazer e, assim, existe o direito de discordar com tal atitude. Quando alguém coloca quase diariamente a sua roupa para ser vista pelo público, corre o risco de ter opiniões favoráveis e outras menos positivas. Desde que exista educação no que se diz, desde que não se ofenda ninguém, parece-me natural que quem está lá diariamente para aplaudir também se sinta no direito de dizer «Hoje não gosto tanto.» sem que um papagaio lhe caia em cima a grazinar «inveja, inveja, inveja». Não é inveja, senhores: são dois olhos na cara! 

É ridículo este mundo digital que nos tem sido dado nos últimos anos. Nunca tivemos tanto para comentar, mas ao mesmo tempo nunca fomos tão penalizados por fazê-lo. Um dia destes também tenho de falar aqui sobre o modo como os blogues e as redes sociais têm adulterado na cabeça de pessoas pouco inteligentes o significado de «liberdade de expressão», mas ficará para outro dia. Para já fico-me pelo fenómeno da inveja que é qualquer coisa que me mexe nos nervos. Esta gente que faz a defesa (de forma ridícula) de figuras públicas que sabem que, infelizmente, na sociedade de hoje tudo o que fazem ou dizem é minuciosamente escrutinado, não percebe que tais figuras não precisam da sua defesa e que não lhes ligam um caracol? Mais: são incapazes de perceber que há quem esteja demasiado bem com a vida que tem para sentir inveja de uma figura pública? Será que as pessoas divinizam assim tanto essa gente que não são capazes de ver que, como qualquer ser humano, também erram? Por que motivo quando eu erro sou estúpida e quando eles erram eu tenho «é inveja»? Porventura haverá seres humanos de primeira e de segunda? Ainda alguém considera isso?

Enfim, é o mundo que temos. Temos tudo para sermos críticos, para pensarmos nas coisas, para sabermos o que merece que percamos o nosso tempo e o que não vale sequer um relance de olhos, mas há quem não faça uso deste presente que os tempos nos ofereceram. Há quem prefira viver uma vida nas redes sociais a defender heróis que não o são de comentários que muitas vezes não têm um pingo de maldade, que são apenas discordâncias normais porque não gostamos todos do mesmo (não me refiro, claro, a quando as pessoas são más e ofensivas). E isso é triste. Nunca tivemos tanto por onde aprender e por onde desenvolver o espírito crítico e aproveitámos tão pouco. Vivemos tempos paradoxais, de facto.


Nota: Dito isto tudo, aviso já que responderei a qualquer comentário menos simpático com um «tens é inveja». Ahahahah!

4 comentários:

  1. "O rei vai nu"!
    - Tens é inveja!

    A inteligência, a ponderação, a educação e o uso do próprio cérebro estão a dar lugar à impulsividade acéfala.
    E a liberdade de expressão, então.
    Adoro quando leio ou ouço pessoas a criticarem a má língua de alguém e que no mesmo segundo fazem exactamente o mesmo que estão a criticar.
    "Ela não é feia, isso não se diz. Tu é que és horrível e gorda e burra".
    Sem noção.

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  2. Somos umas invejosas, não digas que não :D

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  3. Bem se vê que não sou blogger famosa, porque ninguém me defendeu das "invejas alheias". Mas se calhar sou eu que tenho invejas dessas bloggers famosas e venho para aqui ranhosar. Ahah!

    Ainda sobre a supostamente inalienável liberdade de expressão dos bloggers e indivíduos que usam outras plataformas online, tenho aqui um livro em lista de espera sobre casos que chegaram aos tribunais. Estou bastante curiosa sobre o assunto. E já que me aguçaste (ainda mais) a curiosidade, talvez seja mesmo a minha próxima leitura.
    ****

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  4. O que me dói mais nem é a crítica mais ou menos decente ("não gosto do conjunto" "acho-a pindérica") à qual o argumento base de resposta é a inveja... é a forma como as pessoas se atacam horrivelmente. Pegando na Cristina Ferreira, por exemplo, ela fez umas capas de revista com a temática dos casais homossexuais. Choveram comentários sobre como as capas eram "nojentas", "aberrações", e outros que tais, o que já me custa imenso (apoio a comunidade LGBT há muitos, muitos anos, e sou activista)... mas e os comentários a dizer à própria Cristina, não que ela tinha tido mau gosto na escolha das capas (por exemplo), mas que era "uma vaca", "uma porca", etc? Porquê ofendê-la PESSOALMENTE por uma coisa dessas? Enfim...

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