quinta-feira, 2 de março de 2017

Peculiaridades de um leitor V

A leitura, para os verdadeiros leitores, é um prazer que tem de repetir-se. Lemos como respiramos, como andamos, como fazemos qualquer uma das coisas que fazemos no nosso dia-a-dia. É coisa de que sentimos falta quando, por algum motivo, ficamos impedidos de a praticar. E como prazer que é, não raras vezes vamo-nos a ele em várias frentes. Que quer isto dizer? Que em simultâneo lemos um, dois ou três livros, que lemos ainda umas revistas e uns jornais e o que aparecer pela frente. Ou então não e somos uns «monógamos» livreiros que mantêm a fidelidade à leitura do momento sem a misturar com qualquer outro texto.

De forma sucinta: nisto da leitura, há as pessoas que nunca lêem mais do que um livro ao mesmo tempo e há as que lêem os que lhes apetecerem, nem que sejam dois, três, quatro ou mais em simultâneo. Mais uma vez, nenhum método é melhor do que o outro. A leitura é muito democrática. É uma espécie de medicamento que se pode tomar de todas as formas possíveis, causando benefícios óbvios a quem usa e abusa desse tratamento. A leitura é quase uma panaceia que, se não cura, pelo menos alivia muito. E inquieta, também, mas de um modo salutar, pois faz pensar e crescer, e ser capaz de ver além da ponta do próprio nariz.

Mas voltemos ao tema: leitura única versus leituras múltiplas em simultâneo. Eu faço parte do grupo dos que lêem dois livros ao mesmo tempo. Geralmente não leio mais do que isso porque além dos livros tenho sempre várias revistas (algumas delas já atrasadas) na mesinha de cabeceira. Acabo por ir intercalando tudo. Muitas vezes, também, acontece-me andar a ler um livro, precisar de me deslocar e considerá-lo demasiado volumoso e pesado para desejar transportá-lo comigo. Nessas alturas dá-me sempre jeito estar a ler outro mais pequeno que se deixe levar mais facilmente sem ser responsável pelo deslocamento de um ombro. Há quem diga que quando lê mais do que um livro em simultâneo, acaba por misturar as histórias e as personagens de um e de outro volume. Não me lembro de alguma vez isso me ter acontecido. No fundo, acho que o treino dos anos de Faculdade num curso de Línguas e Literaturas ajudou a desenvolver esta capacidade (se é que se lhe pode chamar isso). Nas várias cadeiras de literatura que tinha num único semestre tinha de ler tantas obras literárias em simultâneo que precisava de desenvolver «compartimentos estanques» no meu cérebro para não confundir o Moby Dick com o Austerlitz, nem O Anjo Ancorado com Os Pequenos Burgueses. Não me dava muito jeito confundir as Memórias Póstumas de Brás Cubas com As Memórias de João Miramar. Por isso, mesmo que antes de dormir lesse um bocadinho de um e um bocadinho de outro, tinha sempre de arrumar tudo muito bem arrumadinho na minha memória. Sempre o consegui com facilidade, felizmente. Agora já ninguém me obriga a ler vários livros ao mesmo tempo, mas continuo a fazê-lo de vez em quando porque quero. 

Claro que compreendo quem gosta de dedicar-se a apenas um livro de cada vez. Já aqui disse que na leitura tudo (ou quase) é possível. São escolhas. Até pode ser não porque temam misturar histórias, datas, personagens, mas sim porque gostam de manter a concentração num único livro, pensar apenas nas questões que ele suscita e, quando o acabam, passar ao próximo quando apetecer, sem pontas soltas. Às vezes também me apetece ser assim e nessas alturas leio um único livro (quando muito intercalo com revistas), noutras vezes apetece-me ser «assado» e ando com dois volumes debaixo do braço, lendo meia dúzia de páginas de um e meia dúzia de páginas de outro. É para onde me dá.

Depois há, infelizmente, os que não lêem nem um, nem dois, nem três: enfim, os que não lêem mesmo nada. Mas desses não reza a história porque aqui fala-se das peculiaridades dos leitores e não dos que ainda não começaram a sê-lo. Esses não perdem tempo com livros, o que é uma pena. Não sonham o que perdem.

13 comentários:

  1. Eu prefiro ler um de cada vez. Fico de tal maneira "afogada" nas histórias que só consigo parar quando acabo. Depois tenho aquela sensação de órfã de livro e começo outro.

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    1. Sabes que uma vez vi um documentário francês sobre o nosso muy actual vício por séries televisivas e nele um psicólogo explicava que há pessoas que, quando terminam de ver uma série inteira da qual gostaram muito, passam por um processo de luto. Semelhante àquele que se vive quando se perde alguém. Ora, acho que o mesmo se aplica aos livros. Essa sensação de orfandade que referes é um pouco isso: o luto por uma história que te acompanhou e que te deixou. Parecendo que não, habituarmo-nos a um livro e às suas particularidades, criarmos empatia com as personagens e mergulhamos na história leva o seu tempo. Quando finalmente acontece é uma experiência fabulosa. Claro que tem de chegar ao fim e quando chega traz consigo a sensação de perda que referes. O bom deste "luto" é que, ao contrário de outros mais infelizes nas nossas vidas, obedece em maior ou menor grau à máxima "Rei morto, rei posto".

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    2. Eu lia imenso quando trabalhava em Lisboa. Um dia estava eu no comboio e acaba o livro a meio da viagem... Fiquei tão deprimida que até o homem que ia à minha frente reparou ahaha

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  2. Sou leitora de apenas um livro. Um de cada vez. Não por recear confundir histórias ou personagens, apenas prefiro focar a minha atenção num de cada vez. É tão válido quanto ler vários ao mesmo tempo. Desde que faça sentido para quem lê, é isso que importa.

    Ai, a sensação de orfandade. O que logo me vem ao pensamento é uma biografia de Sofia Tolstoy, de Alexandra Popoff (editado pela Civilização). Através de registos e diários escreveu a biografia. Para além de ter sentido imensa compaixão pela senhora Tolstoy, ou Tolstaya, senti-me revoltada pela forma como continua a ser retratada: neurasténica, má, empecilho e doente. Pouco tempo depois comprei o diário, este em inglês porque pelas pesquisas que fiz não encontrei tradução portuguesa, o prefácio é de Lessing.
    Uma pessoa que dedicou a vida ao marido, aos seus livros e aos filhos, que se anulou totalmente como mulher. A dada altura refere que é muito bom ter um marido como génio da Literatura, mas que também ela tinha interesses, tal como fotografia. Há um tipo horrível de nome Chertkov, um discípulo de Tolstoy que se tornou o beneficiário dos direitos dos livros, um chupista e um hipócrita incrível. Quatro dias após a leitura ainda não conseguia ler outro livro. Valiam-me as National Geographic.
    Recomendo-te muito a biografia, é muito interessante. Aborda variados temas, adorei.
    Sete euros na Wook. Sou uma desencaminhadora...

    (Espero que não vejas estas sugestões como uma forma de proselitismo. A intenção não é essa. De todo.)

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  3. Fui procurar "Os Pequenos Burgueses", não conhecia o título, e fiquei a saber que é do mesmo escritor de "Uma Abelha na Chuva". Gostei deste último, recomendas o primeiro? Apesar de ter "Moby Dick", nunca li, e na verdade, não me sinto muito atraída para.

    Queria ter feito este comentário no anterior, mas não deu.
    Quando estava já a terminar de escrever ouvi um som no chão, já a imaginar o que poderia ser. Ao chegar a casa pus lentilhas a cozer para o meu namorado fazer hamburguers quando chegasse(não sou dondoca, hoje fui remover um sinal e estou obrigada a ser um género de Tutankamon, de forma a não abrir as suturas), como a embalagem não colabora, algumas caíram ao chão. Mesmo de lanterna em punho falhou uma, e o barulho no chão era o Michi a brincar com a dita. Receei que fosse qualquer coisa que lhe parecesse apetitosa e enviei o comentário.
    Fiquei a vê-lo brincar com a lentilha durante muito tempo, eu e as tontinhas. Fui buscá-las, o trio está reunido e delirante :)

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    1. Sabes que já me cruzei com essa biografia umas mil vezes na Feira do Livro e nunca a comprei porque temia que fosse daquelas todas inventadas e românticas? Mas ainda bem que avisas: este ano vem comigo.

      Li «Os Pequenos Burgueses» na faculdade, numa cadeira de Literatura. É muito dentro do género de «Uma Abelha na Chuva», por isso se gostaste, lê este também. Já se sabe que fala sobre o povo, sobre os abusos cometidos sobre os trabalhadores, ou não fosse um romance neo-realista.
      Li o «Moby Dick» na cadeira de Literatura Comparada. Confesso que não tinha grande vontade de ler esse livro porque achava que aquilo era simplesmente a caça à baleia e um cheiro a peixe que não se aguentaria. Longe da verdade. O livro é maravilhoso. Está escrito com uma linguagem poética maravilhosa e tem excertos de uma beleza incrível. O próprio Capitão Ahab e a sua loucura que arrasta quase todos para a morte são tão inquietantes que além de apreciarmos a escrita do livro, apreciamos também e queremos saber que fim terá este enredo (embora saibamos de antemão o que acontece). Lê o «Moby Dick» porque não cheira nada a peixe: cheira a poesia por todos os lados.

      Tirei um sinal há uns anos, mas era pequenito, não deu muito trabalho. Espero que melhores depressa (e depois dá-me a receira dos hamburgueres de lentilhas porque tenho um pacote delas e não sei o que lhes fazer). Por hoje, aproveitas a folga na cozinha.

      Adoro vê-los brincar. São tão disparatados. Tudo lhes serve. A Gatica tem uma castanha que ficou como brinquedo de estimação. Nem sei onde anda. Mas ela adora-a. E se apanham ervilhas que escapam do pacote ou feijões, brincadeira certa. Ainda bem que o pequeno Michi se diverte. Merece muito, depois de tudo o que passou. Portanto, todos juntos significa que lá vai ele passear com a trela. Adoro a imagem de um gatito a saltitar ao lado das cadelas. :)

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    2. :)
      Lê a biografia, sim.
      Quanto a "Moby Dick" já ouvi opiniões boas e menos boas. Hei-de acabar por ler. Obrigada.
      Já é o sétimo sinal que tiro e receio bem não que não tenha sido o último. Não era grande mas como convém tirar tudo para a biópsia, a incisão é sempre maiorzita.

      Eles estão tão contentes, parecem velhos amigos. O Michi foi passear sem elas, mas a piada não é a mesma.

      Quanto à receita.
      Ingredientes:
      0.5 cup (chávena) + 2 colheres de sopa de lentilhas verdes;
      > NOTA: 1 cup = +/- 125ml
      1 cup (chávena) de pão ralado;
      2 ovos;
      Meia cebola roxa (ou branca que foi a usada ontem);
      1 Lima;
      Salsa.
      Modo de Preparação:
      1. Cozer as lentilhas até ficarem macias (uso 1-2 alhos esmagados na água para acrescentar sabor, + sal a gosto), escorrer a água e colocar de parte para arrefecer.
      2. Picar a cebola e a salsa e acrescentar às lentilhas.
      3. Juntar o pão ralado e misturar bem
      4. Lavar bem a lima e ralar a casca (eu junto também o sumo da lima, mas é opcional).
      5. Misturar tudo muito bem e ajustar o sal a gosto.
      6. Bater os dois ovos e acrescentar à mistura.
      7. Combinar tudo muito bem até formar uma massa moldável.
      Dependendo do pão ralado utilizado, poderá ser necessário triturar uma parte da mistura com um garfo ou no processador de alimentos. Em regra, não uso o processador porque deixa a massa demasiado compacta. Usa-o apenas se ralares tu o teu próprio pão, o que faço por vezes, de modo a evitar mandá-lo fora. Se for comprado recomendo que não uses o processador.
      8. Formar os hamburgers com o tamanho desejado e "fritar" numa frigideira com um pouco de azeite, ou óleo de coco (não tem sabor) ou com óleo em spray.

      Usa uma tigela ou taça grande para melhor mexeres a massa. Dependendo do tamanho dos hamburguers esta receita dá para oito. Congelam muito bem, o que dá sempre jeito para dias mais ocupados ou preguiçosos.
      O link da receita:
      https://youtu.be/x3jKrq8xXw8

      Bom apetite.
      Espero que gostem :)
      Se não gostarem, peço já desculpa!
      Tenho também receitas de hamburguers de feijão e outra de cogumelos, mas ainda não as experimentei.
      E assim se vê que quem não come carne não vive só de alface nem de cenouras ;)

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    3. Esqueci-me de mencionar a pimenta.
      Como não usamos, falhou.

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    4. Obrigada. Suponho que também dará com lentilhas vermelhas. Tenho ali uma embalagem que precisa de ser gasta. Embora eu coma carne, gosto muito dessas coisas como hamburgueres de vegetais e afins. Boa, quando provares diz-me se ficam bons. Por aqui usa-se muita pimenta. Gostamos muito. :)

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    5. Penso que também poderá resultar com vermelhas, mas o tempo de cozedura será bem, bem menor. É possível que se desfaçam. Podes fazer sopa ou masoor dal, por exemplo, se gostarem.
      Sim, o meu namorado gosta muito de pimenta, tal como outras especiarias mas o meu estômago é muito fraco. Quando comemos o mesmo, não há pimenta. Ele também come carne de vez em quando.
      Nada há nada a agradecer, mais uns tempos e trocamos pontos de crochet :)

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    6. Bem, crochê não porque nunca gostei de ver sequer. Mas ponto cruz a minha mãe ainda me ensinou. :P Os blogues têm de servir para a partilha. Se for de receitas porreiras e dicas de culinária que dêem jeito, seja. Não podemos viver só de livros. É preciso comer algo para acompanhar a leitura... Ahahahah. :)

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  4. Muito obrigado ás 2, estas conversas aumentam a lista de livros.

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    1. Ai, nem me fale... Minha rica carteira. Até tenho de respirar fundo para me controlar e não desatar a mandar vir tudo. Enfim, os livros são como as cerejas: um leva a outro, e outro, e outro... Não têm fim.

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