quinta-feira, 16 de março de 2017

Casa à deriva e o cúmulo da ignorância

Tenho estado com uma profunda falta de inspiração, pelo que esta modesta casinha tem andado ao desamparo. Isto ou bem que se diz alguma coisa de jeito ou bem que mais vale estar calado, por isso não me tenho arriscado muito e vou andando calada.

Mas já que aqui estou, deixem-me partilhar convosco uma daquelas coisas que faz ignorantes. Isso mesmo. É uma coisa que, para quem não saiba mais do que aquilo que é evidente, cria preconceitos onde eles não devem existir. Apresento-vos a capa do Jornal I do Dia da Mulher (8 de Março):


Estão a ver ali do lado direito onde diz «Frases de homens contra mulheres que ficaram célebres» (frase, aliás, muitíssimo ambígua e mal escrita, mas pronto, já é pedir de mais...)? A frase escolhida para a capa é do Cervantes e, caso não consigam ver bem, deixo-a aqui: «Faz parte da natureza das mulheres desprezar quem as ama e amar quem as detesta».

Portanto, quem viu a capa deste jornal naquele dia ficou a pensar que o Cervantes era uma besta que dizia coisas contra as mulheres. Pois... A frase (além de não ser necessariamente má para com as mulheres: muitas vezes é simplesmente um facto, já que não se escolhe quem se ama) está COMPLETAMENTE fora de contexto. Digo-vos eu que já li o Quixote, livro de onde esta frase foi retirada, e o que lá está é outra coisa muito diferente. A frase é, de facto, de Cervantes e saiu da sua obra-prima, mas é dita num contexto muito favorável à defesa das mulheres perante os abusos dos homens. Uma personagem feminina lindíssima desperta várias paixões, mas não está interessada em nenhuma. Por causa dela, morre um homem e a moça, que causou um desgosto ao rapaz, é apelidada de cruel, de não ter coração, entre outros epítetos. Durante as cerimónias fúnebres do jovem que morreu por amor, a rapariga, que vive uma vida bucólica pelos campos, deixa-se entrever e dá-se início a uma série de impropérios contra ela. Alguns homens querem, inclusivamente, ir atrás dela, ou para vingarem a morte do amigo ou porque também eles estão apaixonados. É o louco Dom Quixote que os ameaça fisicamente e impede de perseguirem a bela donzela, fazendo um discurso sobre a liberdade das mulheres. Pelo meio diz aquela frase que está totalmente descontextualizada na capa do I, prosseguindo o seu discurso num sentido que diz sensivelmente isto: as mulheres têm o direito de amar quem querem e não têm de se sentir obrigadas a aceitar um marido só porque ele sofrerá se não as tiver. Alguma semelhança com o que está na capa do jornal? Rigorosamente nenhuma!

E assim os dois leitores do I ficaram a pensar que o Cervantes era uma besta. Na altura até espumei da boca precisamente porque sabia muito bem que as palavras daquele génio no início do século XVII eram exactamente no sentido oposto e eram até demasiado modernas para a época. Enfim, é uma tristeza. Só mesmo isso: uma enorme tristeza e o sinal de que a ignorância é perigosa, pois pode deixar a sua semente em todos os que não têm espírito crítico, vontade e tempo para buscar a verdade. Felizmente, eu sabia o contexto real da frase, senão talvez também me sentisse desiludida com o Cervantes. Assim não... Só acho aquele jornal uma leitura ainda menos adequada do que já  antes achava.

3 comentários:

  1. Ah, isto parece um artigo do "Truques da Imprensa Portuguesa" (conheces a página do Facebook?), mas o pior é que o Cervantes já não pode defender-se. Agora mais a sério, podes pegar neste texto e enviar para alguém tipo o provedor do leitor do i ou mesmo para o editor/director, sei lá... Alguém que mande, e que provavelmente nunca leu o D. Quixote. :)

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  2. Voltamos aos jornalistas, não é?
    Esse tipo de frase de Cervantes é encontrada em muitos livros e nunca com sentido depreciativo. Caso a houvesse lido na capa da revista, não me passaria pela cabeça achar que Cervantes era isto ou aquilo.
    Mas percebo que muita gente possa pensar o contrário. Não somos, na maioria, muito informados. E muitos de nós são bastante permeáveis ao que está impresso. Muita gente se fica pelas parangonas, o que é grave.
    Hoje em dia importam os títulos, a precisão e o saber sobre o que se escreve é absolutamente secundário e até irrelavante.
    No dia da Mulher podiam ter optado por outra imagem. Mas não, olha a escolhida e repara na frase que salta à vista.
    O feminismo ainda é visto por muita gente como um bicho papão e não como igualdade de género. A capa e os dizeres nada ajudam os mais cépticos a entender.
    Em muitas revistas e jornais há um jogo de espelhos, para provocar, para se falar. Raramente para informar. E muita gente vai na conversa. O que me perturba imenso.

    Como sabemos, Rentes de Carvalho admitiu votar no partido da extrema-direita holandês. Como forma de protesto. Há gente a dizer que nunca mais lerá um livro seu e que queimará os que têm. Uma amiga mostra-me estas pérolas no fb. Isto é ignorância pura, a meu ver. Mas, atenção somos todos Charlie! E numa ida ao Google copiam frases de Voltaire ad nauseam.
    Há vários anos vi um documentário em que um sobrevivente de um campo de concentração dizia estar-se nas tintas para o anti-semitismo de Wagner, achava a sua música incrível e era isso que contava. Eu também penso assim, adoro Mishima, Céline e outros que de alguma forma estiveram conotados com a extrema-direita.
    Aparentemente nem precisamos de ser invadidos pelo daesh, estamos a adiantar-lhes o trabalho no que respeita à intolerância.
    Há algum tempo o mesmo se passou com Raposo, aquando da publicação do livro sobre o Alentejo. O homem ia sendo linchado.
    Continuarei a ler Rentes de Carvalho,nos livros e no blogue, e continuarei a ler Mishima e Céline.
    Diaghilev foi uma extensão do braço do czar e nem por isso deixou de fazer coisas extraordinários com a sua companhia de bailado.

    Os escritores, os bailarinos, os actores e etc são gente comum. Desde que se lhes reconheça apenas a autoridade nas suas áreas de competência, tudo vai bem. No entanto, até um colega o achincalhou gratuitamente. Mãe disse estar contra Rentes de Carvalho. Isto num festival literário. Não aprecio os livros que escreve e pelo que leio cada vez menos o aprecio enquanto pessoa, não só mas também pela lavagem de roupa suja em público e pelo Eu, Eu.
    As pessoas têm muito a dizer nas redes sociais, sempre em questões muito fracturantes, sem dúvida.
    Cada vez mais regredimos, temos acesso a tanta informação e nunca fomos tão estúpidos.

    Excedi-me bastante. E apesar de nãp parecer, para mim faz sentido juntar o tema do teu post com o que desenvolvi no comentário. Tudo é ignorância.
    E estou no rol dos ignorantes e estúpidos, não sou melhor que ninguém.
    Espero que não andes aborrecida, que estejas apenas desinspirada :)

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    1. Gostei muito deste comentário e fiquei a saber umas coisas.

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