domingo, 5 de março de 2017

Os livros de viagens

Há alguns dias li as primeiras linhas de um texto sobre livros de viagens. Nem consigo dizer-vos onde o li porque não me recordo mesmo. É que foi numa visita muito rápida à internet entre uma coisa e outra que tinha para fazer. Por isso não li o texto todo e tenho pena. Mas sei do que falava. Colocava a seguinte questão: numa época em que viajar é mais fácil e barato, continuará a valer a pena escrever (e ler) sobre viagens?

Na minha opinião, vale. Mesmo que eu tenha agora mais possibilidade de correr o mundo do que teria há cinquenta ou cem anos, não significa que possa ou queira privar-me dos relatos dos outros. Quantas vezes vamos a algum lado com ecos de quem lá foi antes e vamos aqui ou ali porque lemos sobre esses espaços? E esse relato anterior à própria viagem não lhe retira a surpresa, pois uma coisa são as palavras que correspondem à visão que outro teve do lugar e outra muito diferente é a forma como eu mesma vejo o espaço para onde viajei. Mais: há relatos de viagens que ultrapassam e muito o mero relato. São verdadeira poesia. Há autores que são capazes de verter no papel experiências que podemos não ter, mesmo que viajemos para o mesmo lugar que ele. Que sabem contá-las de uma forma única. Posso ir ao mesmo sítio e experimentar algo parecido: ler é e será sempre diferente de viver. Uma coisa pode preparar para a outra, mas nunca o faz completamente. Há sempre uma boa dose de desconhecido que não vem nos livros e ainda bem. Ler a experiência dos outros não empobrece a minha, pelo contrário: enriquece-a. 

Gosto muito de livros de viagens. Gosto de ver o modo como os autores olham para os lugares para onde se deslocam e o que lhes merece digno de ser partilhado ou não. Já me aconteceu ir a lugares sobre os quais li anteriormente e, acreditem, ler primeiro sobre eles não diminuiu nada o prazer da visita. Os olhos dos outros não substituem os meus, ainda que, numa primeira instância, possam servir para informar-me e espicaçar a minha curiosidade sobre determinado lugar. Além disso, há sempre muitos olhares diferentes e possíveis para ver a mesma coisa. Uma viagem feita em trabalho não é igual a uma viagem feita por lazer, assim como um livro de viagens encomendado por uma editora será diferente de um que nasceu espontaneamente da vontade do autor. Assim sendo, por muito que hoje seja mais acessível e fácil correr pelo mundo fora e ver o que antes só poderia imaginar, os livros de viagens continuarão a fazer sentido, não só para despertar a vontade, mas também para permitir o confronto de impressões. Creio que nunca deixarão de fazer sentido e há livros de viagens que são verdadeiros monumentos, alguns tão maravilhosos e firmes quantos os de pedra e cal que eles mesmos descrevem.

4 comentários:

  1. Ler sobre viagens serve para nos encher o coração enquanto não viajamos. Infelizmente não podemos estar em constante viagem (excepto alguns sortudos), então ler é um bom passatempo e dá ideias para futuras aventuras.

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    1. Eu também acho. Acho que eles não serviram apenas enquanto as viagens pelo globo não se democratizaram. Acho que ler a experiência de outro não invalida que venha a ter a minha. Ninguém com inteligência deixa de ir a um sítio que gostaria de visitar só porque já leu um relato de uma viagem a esse lugar. Podem existir outras razões a demovê-lo, mas acho que não será apenas porque já leu o livro, e portanto já «conhece» o espaço, que deixará de ir visitá-lo.

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  2. "Ler a experiência dos outros não empobrece a minha, pelo contrário: enriquece-a." Totalmente de acordo.
    E há também a questão de "mundos" e formas de vida que se foram perdendo com a passagem dos anos e dos séculos. Se não fossem os livros de viagens, o que saberíamos desses "mundos" perdidos?
    Cada um de nós vê e assimila de forma diferente. Irmos aos mesmos sítios não significa vermos e sentirmos o mesmo.

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    1. Exactamente. Quando falei em livros de viagens, em continuar a escrever (e ler) estes livros, queria referir-me sobretudo aos que por agora se escrevem. Os que já cá estão, já cá estão. Mas a questão é: vale a pena continuar a escrever sobre viagens? Eu considero que sim. A experiência de uns não é a experiência de outros e mesmo o modo como processamos a informação e sentimos o que vemos e vivemos é diferente de ser humano para ser humano. Assim, ter acesso ao olhar do outro, à sua análise das coisas só pode enriquecer-nos, nem que seja para no fim dizermos que fomos ao mesmo sítio e discordamos completamente daquilo que o autor afirmou. Acho que esse contacto com visões alheias de outros lugares só pode ser benéfico e lá porque agora o mundo é um ovo e todos podem ir a todo o lado, não significa isso que abandonemos um tipo de discurso que é interessante e que até pode continuar a apresentar-nos novos locais onde nunca fomos porque nem sabíamos deles e aos quais, afinal, até gostaríamos de ir.

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