sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

A vida no bolso

Hoje precisei de ir a uma consulta e na viagem de regresso (em transportes públicos) reparei nos telemóveis gigantes que algumas pessoas carregam. São smartphones, mas são enormes. Andam ali entre o tamanho de um telemóvel considerado jeitozinho e um tablet. Mas obviamente não pretendo dar-vos nenhuma novidade a este respeito, pois sois gente entendida nisto das novas tecnologias. A minha reflexão é mesmo outra.

Dei por mim a pensar que com aquilo as pessoas estão confortáveis para ver filmes ou séries, para editar fotografias, para ler livros (coisa que duvido que façam), para ler revistas e jornais sem terem de andar sempre a puxar as páginas para os lados, para cima e para baixo. Além disso, surpresa!!!, ainda podem telefonar, receber chamadas, fazê-las... Ou seja: podem tudo com aqueles telemóveis (eu também posso com o meu, mas o ecrã é mais pequenino, fartar-me-ia bastante mais depressa). Ora, a minha questão é: desde quando passámos tão desesperadamente a precisar/querer trazer toda uma vida dentro do bolso? São vídeos, são fotografias, são documentos vários, são os emails, as mensagens, as chamadas, os livros, as revistas, os jornais, as várias redes sociais... Quando foi que, de repente, sentimos a necessidade de abandonar de vez certa ideia de que determinadas coisas ficam em casa e outras podem, sim, seguir no nosso bolso? E em que medida é este constante carregar do que somos (e do que fingimos ser) no bolso benéfico para nós? Se estamos sempre ligados, como saberemos um dia viver em «modo off» novamente?

No emprego que deixei no final de Agosto, os emails eram uma constante. A grande maioria era escusada. Não continha qualquer tipo de informação relevante. Mas de vez em quando (com maior frequência do que nós gostaríamos), vinham emails importantes, que não raramente eram indicadores de problemas para nós, os funcionários. Os emails chegavam de manhã a manhã. Não, não me enganei no que disse: é que não havia um momento em que soubéssemos que eles não chegariam. Recebiamo-los de madrugada, à noite, durante a tarde, à hora de almoço, quando estávamos a enfiar-nos na cama... Ao fim de uns anos disto, de saber que um único email pode desencadear uma guerra, cada vez que ouvimos o som da chegada de uma nova mensagem, quase caímos para o lado com tanta tensão. Mas ao mesmo tempo não conseguimos não ir ver o que sucedeu, qual o motivo para mais um email. Anos disto matam-nos aos poucos, acreditem. De tal maneira que acabamos por fazer o que eu fiz: pegar na tralha, enviar a carta e vir para casa, mesmo sem ter outra coisa em vista.

Mas a que propósito vem isto e que relação tem com o que dizia no início? É que muitas vezes odiei o meu telemóvel e o meu tablet. O facto de os ter comigo e de me avisarem quando chegava um novo email acabava por fazer-me andar sempre a actualizá-lo, a ver se tinha chegado coisa nova. Eu e muitos dos meus colegas deixámos de saber desligar do trabalho, uma vez que podíamos ter notícias dele a qualquer hora do dia. Isto prejudica a saúde, coloca os níveis de ansiedade em alta, não é benéfico para nós (mas a entidade patronal queria lá saber se nós estávamos bem ou mal...). Odiei os malditos telefones em que podemos ver os emails porque eles, e a sua generalização pelos bolsos de todos, passaram a significar que estávamos sempre disponíveis. Por vezes, se não déssemos resposta a um email rapidamente, mesmo que viesse a um sábado à tarde, por exemplo, recebíamos uma chamada umas horas depois a perguntar se não tínhamos visto o email e por que motivo não lhe tínhamos dado resposta. Todos partiam do princípio de que estivéssemos onde estivéssemos, os telemóveis estariam connosco e os emails seriam abertos na hora. Deixámos de poder dizer «Não vi, não estou com o computador.», até porque todos sabiam que telemóveis tínhamos. Aliás, aquele sítio achava-se tão bom que até nos olharia de lado se tivéssemos telemóveis de trinta euros que dão apenas para fazer e receber chamadas e mensagens.

Aprendi que odeio trazer a vida no bolso. Odeio estar constantemente ligada. Têm sido meses a aprender a desligar-me desta pressão que foi o pão nosso de cada um dos meus dias durante vários anos. Até o hábito de ler antes de dormir eu consegui começar a perder devido ao facto de estar sempre ligada e à espera de notícias do trabalho. Sim, porque não era só recebê-las. Quando eram revoltantes, eu e outros colegas dávamos início a longas conversas pelo WhatsApp, a discutir e a gozar a mais recente invenção da instituição. Na altura não me apercebia, mas este prolongar dos assuntos que nos irritavam, mesmo que fosse em tom de gozo, também nos fazia mal. Continuávamos ligados, mesmo em horas em que já devíamos ter tirado a cabeça do trabalho. 

A culpa não será dos telefones nem dos tablets. É nossa, é desta sociedade em que estar ligado é tão importante que nem ousamos outra coisa. Ter smartphones para depois só enviar sms’s seria estranho. Queremos explorar aquilo, mexer nas aplicações, estar sempre informado e actualizado. Nada de grave existirá em saber as últimas notícias do mundo mal elas saem. Mas já existe algo de grave quando estamos a jantar com a nossa família depois de um dia de trabalho e o telefone informa-nos que temos de dar resposta imediata a uma questão de um encarregado de educação que pergunta por que motivo o filho teve «Satisfaz» no teste se estudou o suficiente para ter um «Muito Bom». Mesmo que só leiamos o email depois do jantar, que resto de noite teremos nós? E se não o lermos pode vir de lá o temido telefonema e ainda é pior... É uma prisão e cada vez acho mais que é das facetas mais negras da evolução tecnológica. A influência que isto de andar constantemente com a vida no bolso está a ter sobre nós é terrível. Estamos a alienar-nos da realidade. Vemos mais o mundo através da câmera fotográfica do que com os nossos olhos. Preocupamo-nos tanto com as notícias que chegam por email do que com o que um amigo nos diz cara a cara. Enfim, vivemos a vida que temos no bolso e não a que existe à nossa volta. E para isso, para que se viva em todo o seu esplendor, os ecrãs que outrora se queriam pequenos, querem-se hoje grandes. A mim, que vivi o lado mau disto (mais vezes do que aquelas que gostaria de relembrar), isto preocupa-me. Agora que me livrei daquela pressão, tento todos os dias descolar-me mais um bocadinho desta ditadura do telefone e do iPad. Os livros voltaram em força à mesinha de cabeceira, não para apenas uma página por noite, mas para ler umas dez ou vinte antes de dormir. Procuro retomar hábitos antigos que eram muito mais saudáveis antes destes malditos ecrãs me invadirem a vida. Ainda não o consegui totalmente, mas vou caminhando para lá.

5 comentários:

  1. Identifico-me muito com o que dizes e não conseguiria dizer tão bem.
    Há quantos anos vemos as pessoas sempre de telemóvel? Há alguns anos houve notícias sobre a quantidade de pessoas versus telemóveis. Já foi há muito.
    Tenho um Samsung dos mais baratos, porque efectivamente não vivo do telemóvel e não preciso de muito. Para fotos tenho uma boa máquina com excelentes lentes. Se há anos o primor eram os telemóveis muito pequenos hoje são os iphones gigantes. Tenho um ipad que o meu pai me ofereceu mas não tem influência na minha vida. Em vez de usar o portátil uso o ipad, só isso. O meu namorado, com quem vivo, (para dar um exemplo oposto, tem um cargo importante, no sentido de ser responsabilizado por muito do que acontece na empresa) recebe emails a cada 3 minutos, um dia equivale a 100 ou mais emails. A empresa tem escritórios nos Estados Unidos. A toda a hora recebe emails, a cabeça dele não pára. Eu, anti esse tipo de vida, disse-lhe que não poderia continuar assim. Ele mal dormia com preocupações, sonhava com o trabalho, chegou a levantar-se da cama a falar sobre trabalho no sono. Chegou a fazer 14 horas durante meses a fio. Após a conversa que tivemos o telemóvel, tablet foram desligados ao chegar a casa. Ou seja, os emails foram bloqueados. A partir daí muito mudou. Chega a casa e faz o que quer, sem a pressão de emails. Na Alemanha há anos que proibiram os emails fora do horário de trabalho, a França está a fazer o mesmo. Somos escravizados e achamos normal.
    Eu lembro-me de Cossery, o chamado escritor da preguiça, que ao lhe perguntarem qual a arte de viver respondeu simplesmente "Desprender-mo-nos de tudo o que nos ensinam, de todos os valores e dogmas".
    A sociedade - que somos nós - nada respeita, estarmos em casa ou a trabalhar é igual. Antigamente uma coisa que levava semanas a ser feita hoje tem que ser feita obrigatoriamente no mesmo dia. Somos uns escravos.
    É mais importante termos fotos nas redes sociais do que aproveitarmos o momento. Quantas vezes já não vimos pessoas a tirar fotos da comida do que a saboreá-la? Já vi muitas vezes. Não faço parte de redes sociais,apesar de reconhecer partes boas.
    Somos sugados e não nos apercebemos.
    Sim, sou um velho do Restelo.

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    1. Bem, o Velho do Restelo não deixava de ter a sua razão naquilo que dizia. Era uma outra forma de ver a realidade.

      Acho que o que se passa neste âmbito é gravíssimo e tem dois lados: o das pessoas que se entregam alegremente ao telemóvel e que o incluem em todos os domínios da sua vida; e o das pessoas que já identificaram o problema, que querem lutar contra ele porque sabem que sofrem com ele, mas que se vêem limitadas pelo trabalho ou pela própria sociedade. O que dizes sobre o teu namorado recorda-me o que eu vivi. Não sei muito bem se no caso dele isto acontecia, mas comigo o pânico já era mesmo o de chegar um email que me pusesse a vida num virote. A instituição era tão complicada, tão inexplicável que já sabíamos que a qualquer momento podiam chegar problemas. Eram diários! A pressão que isso nos causava era inacreditável. Bem tentávamos brincar com a situação, mas a verdade é que deixou marcas. Marcas essas de que verdadeiramente só me apercebi depois de sair de lá e que estou agora a tratar a pouco e pouco.

      O telemóvel, também por isso, começou a ganhar um peso grande na minha vida. Não que faça muito com ele, já que sou pouco dada a grandes invenções. Mas estava sempre a ver o email, e depois a comentar com colegas as novidades disparatadas daquela empresa. Isso foi, gradualmente, expandindo-se até eu dar conta de que mal conseguia ler duas páginas de um livro sem mexer no telemóvel ou no iPad. Noites em que ia para a cama para ler, mas começava a passear pelo facebook no iPad e acabava por adormecer assim. Lá se ia a leitura... Com tudo o que de doido se passava no trabalho, mais o trabalho que trazia para casa, mais aquele que podia chegar a qualquer momento via email, posso dizer que o trabalho ocupou toda a minha vida durante uns tempos. Mesmo quando saía com o meu moço, eu só falava em trabalho. Mesmo quando os problemas ainda não tinham acontecido, eu já estava a sofrer por antecipação.

      Obviamente, o telemóvel e os emails não têm culpa disto tudo. A culpa é do lunáticos responsáveis pela instituição. Os emails e o facto de agora termos telemóveis que os recebem em qualquer lugar foram parte dessa mesma loucura e serviram para nos controlarem ainda mais. Mas eu não deixo de perguntar-me: se fosse noutros tempo, tempos em que não houvesse telemóveis ou em que eles ainda fossem muito arcaicos, seria este assédio possível?

      Só me ocorre mesmo a expressão «vida no bolso» porque de facto é assim que andamos a viver. Vamos ao banco por uma aplicação, compramos coisas através do telemóvel, fotografamos e editamos fotos com o telemóvel, guardamos documentos no telemóvel... Está tudo lá. Somos umas tartarugas que carregam a casa às costas só que somos muito viciados nessa casa e não a largamos.

      Apesar de tudo, apesar de querer voltar a trabalhar (preferencialmente longe do ensino), apesar de ter pena de estar há vários meses sem fazer nada, sinto que este tempo está a fazer-me bem e que estou a fazer progressos em alguns aspectos que estavam destroçados. Ainda ontem peguei no telemóvel para ver o email quando me deitei. Mas acabei por bloqueá-lo e pousá-lo antes de o fazer. A última coisa que os meus olhos vêem antes de dormir já não é a luz do telemóvel ou do iPad: são as páginas de um livro. Parece muito idiota o que estou a dizer, mas foram cinco anos de inferno. Voltar à vida normal é uma aventura diária e exige controlo sobre as minhas acções. Porém, não é fácil. O que sei de certeza é que não quero viver a vida que tenho no bolso. Nem aquela que já tive naquela instituição. Apesar de não ganhar nada no fim do mês (fui eu que me despedi), pelo menos não estou a enlouquecer.

      Agradeço-te muito as leituras e os comentários. Este foi de grande ajuda (e os conselhos literários também são sempre muito úteis!). :)

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  2. Este tema dava pano para mangas.
    O caso do meu namorado era de loucos também. O telemóvel estava constantemente a vibrar com mensagens do Skype e com emails. Estás a ver a diferença horária que existe entre Portugal e os Estados Unidos. Pensas que isso interessava, que alguém se importava que era de noite aqui? E claro, ele respondia porque tem brio no que faz e porque tem sentido de responsabilidade. Não sei como não teve um início de esgotamento. Ele tem muito bom feitio, sempre alegre, às 6 da manhã já está a fazer piadas apesar de ter sono e não se aborrece com certas coisas apesar de muitas vezes ter motivos para. E ainda assim uma noite fui dar com ele à porta a calçar os sapatos para ir trabalhar. Estava lindo de pijama e sapatos! Cheguei a dizer-lhe que se ele fosse pai nunca veria as crianças.
    Claro que todos temos contas a pagar, mas nada paga a nossa saúde e o nosso bem-estar. Tu tomaste uma decisão muito corajosa e percebeste o teu limite. Isso é tremendamente importante e de muito valor. Como já te disse, agora ele chega a casa e faz o que lhe apetece. Algumas vezes joga (livros e consolas de jogos não faltam nesta casa), outras cozinha porque para ele funciona como forma de descontração. E é assim que deve ser, não é? Nos tempos que correm é imperativo estarmos sempre muito ocupados...
    Estamos sempre condicionados e como bem dizes, há quem se entregue e há quem fique refém.
    Há uns dois anos vi um documentário muito interessante e mesmo já não sendo sobre um tema actual, serve para termos um melhor entendimento de como as coisas funcionavam e funcionam. Century of the Self, sobre o impacto das teorias freudianas na sociedade de consumo, na política e controlo social,é assustador.
    https://www.youtube.com/watch?v=eJ3RzGoQC4s
    Há um outro mais recente, do mesmo realizador, Adam Curtis, mas que ainda não vi. Na senda da desconstrução dos tempos em que vivemos, embora num registo talvez não muito científico, meio surreal, e naquela fronteira interessante do sério e do lunático.
    Hypernormalisation.
    https://www.youtube.com/watch?v=-fny99f8amM

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    1. Obrigada. Vou ver isso. :)

      Sim, é mesmo um tema sem fim. Principalmente porque acho mesmo que muita gente não se apercebe de quão envolvida está nesta «vida de bolso». Quando se apercebem já estão de cabeça desfeita. Eu fiquei assim mesmo. Sinto saudades dos meus alunos (alguns foram meus alunos do 6.º ao 10.º ano, vi-os crescer dia após dia), mas é apenas disso que tenho saudades. A pressão constante, o medo que já sentia de que tudo descarrilasse num único email, o medo de usar as palavras erradas numa resposta a um email já me estavam a matar. Um dia, antes de ir trabalhar, cometi o erro de ver o email. Tinha um que era um ataque ao meu profissionalismo (quando na realidade punha em evidência o facilitismo que as altas ‘patentes’ queriam que eu adoptasse). Aquilo enervou-me tanto que me fui abaixo. Ainda não sei como fui trabalhar nesse dia e não fui directa para a urgência. O coração batia como doido e eu só conseguia chorar. Estava desfeita. Foi nesse dia que o meu moço percebeu a dimensão do problema e disse que acabava ali: acabando o meu contrato entregaria a carta e sairia, ficar doente devido ao trabalho e à pressão constante é que não. E assim foi.

      Não sabia que tinha ficado tão marcada pela experiência. Só quando saí dela é que me caiu verdadeiramente tudo em cima. Nunca poderia fazer como o teu namorado porque mesmo desligando em casa, o ambiente lá era tão mau que não dava mais. Por isso olha, desempregada, mas mais feliz. Com menos trocos no bolso, mas sem medo do telemóvel. Ando a viver uma vida que não guardo no bolso e isso é, apesar de tudo, muito bom.

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  3. Isso é mesmo assim, e é assustador. É inconcebível para as outras pessoas que tenhamos a desfaçatez de querermos algum tempo só para nós. Temos que estar sempre disponíveis para colegas, clientes e patrões, até familiares!, e nada justifica não ouvir ou ver uma chamada o um e-mail. Eu bem tento, mas às vezes não dá.
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