segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Nem sei que título dar a isto

Doze anos, mãe ao lado. Ele fala português sem pronúncia, mas a mãe tem sotaque de algum país de leste, embora se perceba bem o que diz. O miúdo vai tagarelando pelo caminho. A determinada altura, o arrazoado chama-me a atenção. Aqui ficam algumas das pérolas que uma pessoa ouve num autocarro.

Olhando para uma parede do outro lado da estrada, o miúdo lê uns rabiscos pintados a spray.
- «Passos Coelho é ladrão.». Quem é o Passos Coelho, mãe?
- Então, foi primeiro ministro há pouco tempo. Mas tu não te lembras de ouvir falar no Passos Coelho???
(Alguns momentos de silêncio, pensei que já nem fosse dizer nada. Enganei-me.)
- Eu não sei disso de «primeiros ministros». Eu sou mais de ciências, de inventar coisas, de ganhar o Prémio Nobel da Física.

Falando de uma colega que, pelo que dizia, teria algum tipo de necessidade especial.
- Mãe, ela é deficiente e a avó dela chateou-se e disse às raparigas da minha turma que elas todas deviam ter filhos deficientes para verem como era. 
A mãe tenta perceber que história é esta e vai puxando pelo filho a ver o que dali sai. Ele vai acrescentando informação.
- Ela não tem o direito de falar assim com elas. Ofendeu-as... Ofendeu-as um bocadinho. Ela é deficiente, mas ela podia estar a usar livros do oitavo e anda a usar livros do terceiro!
- Como???
- Pois. E ela se andasse numa escola de deficientes já teria filhos. Se calhar já tinha dois ou três. Talvez já tivesse netos! Não, netos também não...
- Mas que idade tem ela? Dezasseis?
- Então, eu tenho doze e ando no sexto ano. No sétimo vou ter treze... Ora, ela devia estar no oitavo... Sim, tem dezasseis.
(Lá se vai o Nobel da Física, pensei eu.)
A mãe tenta explicar-lhe que devem dar-se bem com a colega, falar com ela, andar com ela. Mas o menino não está pelos ajustes.
- Eu só simpatizei com ela um dia. Foi no dia do baile. Depois não simpatizei mais. 
- Mas que tipo de problema tem ela? É mental? É físico?
- É deficiente. É um atraso. É atrasada mental. Mas eu fui o único rapaz da minha turma que dançou com uma rapariga no baile, mãe.
- Não estou a ver quem é essa tua colega. Como era o vestido que usou no baile?
- Não me lembro.
(A mãe continua a tentar recordar a colega de que o filho falava antes. Tenta conseguir uma descrição.)
- Ela é magra ou é «forte»? - perguntou a mãe. Recordem-se de que o Português não era a língua materna dela.
- Ela é gorda, mãe. Mas não é forte.
...

Ora bem, eu podia esmiuçar isto, mas preferi recordar os meus colegas de escola quando tinham doze anos. Eram tontos, eram, mas não eram assim tão parvos e tão ignorantes. Nem tão imaturos no que diziam, como este menino que é de uma falta de coerência no discurso que dá dó. O menino foi o caminho todo a armar-se em janota, mas a dizer disparates que só ouvidos. Depois, cada vez que ele repetia «atrasada» para referir-se à tal colega que teria um problema... Eu até tremia. Nunca ninguém explicou àquele génio que não deve falar assim dos seus colegas??? Aparentemente não. Assim como ninguém o ensinou a contar, nem a conhecer a História recente do seu país ou, pelo menos, o nome dos protagonistas. Eu lembro-me de ser bem pequenita e saber na ponta da língua que o Presidente era o Mário Soares e o Primeiro Ministro era o Cavaco Silva (credo). Podia não saber mais nada sobre eles, mas sabia isso. Ao que parece, esperar ganhar o Nobel da Física excluí a possibilidade de saber outras coisas. Mas pior que não saber é procurar desculpas para a ignorância, coisa que agora abunda, não apenas em miúdos. Há coisas que todos temos a obrigação de saber. Quanto mais crescidos, mais temos de conhecer. Arranjar desculpas para o desconhecimento de coisas óbvias é hoje quase uma espécie de desporto nacional prestes a ser parte das modalidades olímpicas, cujas provas ganharemos com orgulho porque muito provavelmente estaremos sozinhos nelas. Ganharemos por falta de comparência de putativos adversários. É o que temos, minha gente, é o que temos. 

Como este menino há muitos adultos. Adultos que justificam o injustificável, que vivem da maledicência sem um pouco de compaixão pelo próximo, sem procurarm «calçar os seus sapatos», que nem sequer sabem que «atrasada» não é palavra que deva ser utilizada para designar ou descrever alguém. Isto devia corrigir-se em pequeno e o miúdo, apesar de parvo, ainda tem alguns anos para arrepiar caminho e mudar. Os adultos que permanecem nestes erros é que já não têm solução possível e isso é triste. Triste e terrível.

11 comentários:

  1. Ao ler o teu texto tremi. O meu filho tem necessidades educativas especiais (vai ser adiado inclusive a matrícula dele para a primária) e eu tenho um medo de morte que o apelidem de atrasado :(

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    1. Felizmente, nem todos os miúdos são iguais e muitos são até bastante protectores em relação aos colegas com algum tipo de necessidades. Geralmente, há sempre uma estranheza inicial na sala de aula porque todos têm de aprender a lidar com todos e isso é difícil. Mas se a educação for boa, se desde o início for fomentado um espírito de entreajuda e de camaradagem, as coisas têm tudo para correr bem. A vida, infelizmente, tende a ser mais difícil para quem é "diferente", mas muitas vezes somos francamente surpreendidos com os outros e com o bom acolhimento que nos dão. Vai correr tudo bem. Felizmente, miúdos como este são só alguns. Já conheci muitos outros que eram bem mais inteligentes e amáveis para com o próximo. Esses estão em maioria. :)

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    2. Espero que sim. Só o facto de entrar mais velho na escola já é motivo de estranheza, imagino quando o ouvirem falar... Enfim, espero que seja mesmo como dizes.

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    3. Não posso garantir-te que não venham a existir dias menos bons. Infelizmente, esses dias vão ter lugar e vais ter de lidar com eles. Mas eu não tinha necessidade nenhuma e passei muito mal na escola por isso estas coisas são uma incógnita. O que te aconselho é que fales com a/o professor dele e deixes bem claros os teus receios. Não terá necessidades ao ponto de precisar de uma sombra, como outros casos que conheci, mas sempre é boa uma atenção acrescida, até porque é uma criança a entrar para o ensino básico e que tem de ajustar-se tanto quanto possível a ele (embora devesse ser o ensino a ajustar-se à criança, mas pronto). Se a escola for sensível a estas questões e se o professor estiver atento a tudo, explicando desde o início a todos os meninos que ali ninguém é menos do que ninguém, as coisas correrão bem.

      Um exemplo: nos últimos sete anos dei aulas de português e passou-me muita gente pela frente. Muitas vezes pedia a um aluno para ler em voz alta e percebia risinhos dos colegas. Ou porque a fluência de leitura era muito pouca, ou porque tinham problemas na fala que tornavam a leitura diferente do habitual... enfim, quando eu notava algo de estranho na leitura, ficava atenta ao que se passava com a turma. Quando via risinhos, geralmente, deixava o colega acabar de ler, calmamente (o leitor raramente se apercebia do que se passava à sua volta), e agradecia-lhe a leitura. Passava a vez a outro e a outro até o texto terminar. Depois, fazia um discurso em que fulminava com o olhar e explicava que não admitia em momento algum que um colega fizesse pouco de outro que estivesse a ler. Que na minha sala de aula isso nunca ia acontecer porque certamente eu leria melhor do que todos eles juntos e mesmo assim não me ria deles! Bem, o discurso era de tal forma que com o avançar das semanas os risos morriam e o visado muitas vezes nem chegava a perceber que os risos tinham sido por ele. Pôr as coisas no devido lugar desde o início é fundamental. Mas mais uma vez, vai correr tudo bem. :)

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    4. Querida, se todos os professores fossem como tu, não havia mais de metade dos problemas que existem nas escolas.
      Felizmente o meu filho até é bastante desenrascado e social. Eu tinha um medo enorme dele ser vítima de bullying porque eu própria fui durante muitos anos (e feita parva nunca me defendi). Ele não bate por iniciativa própria mas defende-se quando se esticam e ganha respeito do resto da turma. É menos um peso nos meus ombros.

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    5. Isso é bom. Ser saco de pancada é que é mau. Mas se ele se impõe, é bom.

      Há de tudo nas escolas. E muitas vezes há bons professores que se tornam maus por cansaço das muitas coisas que os obrigam a carregar às costas. Os miúdos não têm culpa (exceptuando quando eles próprios criam o inferno na terra aos professores), mas às vezes levam com os danos colaterais. Eu sempre tentei ser sensível aos problemas deles e isso valeu-me descobrir que há miúdos que sofrem tanto. Os pais nem sonham e só ficam a saber depois de o professor contar o que descobriu. É uma profissão do caraças. Tinha tudo para ser maravilhosa, mas estragaram-na com burocracias e parvoíces que esmagam os docentes. Depois falta a paciência para quem dela precisa.

      Há por aí excelentes profissionais, apesar da minha conversa tão negativa. Por isso é que acho que vai correr tudo bem. 🙂

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  2. Sabes que uma coisa é a teoria e outra é a prática. Nós bem lhes dizemos que não fumem e eles lá continuam a cair no mesmo erro. Ou seja: em alguns casos, pregamos a peixes. Outros ouvem-nos e seguem o que dizemos. Mas como dizes, ainda que se eduque para a diferença, o resto da carneirada é tão igual que não é muito difícil ser-se diferente. Além disso, o espírito de grupo leva a que, por vezes, mesmo quem aceita a diferença e sabe viver com ela se deixe levar e cooperando ou não com os outroa mostre afinal não ser muito tolerante à diferença. Estas coisas deviam ser trabalhadas em casa com as famílias porque as escolas também não conseguem fazer tudo e não é raro os miúdos chegarem-nos já com uma formação cívica de bradar aos céus. Depois para alterar aquilo é que é difícil. Infelizmente, muitos pais deixam essa parte da educação para as escolas e, pior ainda, chegam a dar maus exemplos. E assim nascem ideias preconcebidas e erradas, racistas, xenófobos e outras pérolas quejandas. A educação começa em casa e se todos os pais fizessem bem o que lhes compete, as escolas teriam mais tempo para trabalhar outros aspectos também importantes.

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  3. Havia tanto para dizer.
    Educação em casa, desresponsabilização parental, falta de empatia, desculpabilização de pais (muito cansaço e falta de tempo) e de filhos (ainda é novo ou está numa fase).
    A educação e os exemplos são dados em casa. Mas se os exemplos são pobres, já se sabe.
    Enfim.

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    1. A falta de empatia daquele menino era chocante. Até compreendo que a mãe não corrigisse logo o uso da palavra "atrasada" naquele contexto, uma vez que não era portuguesa e talvez ainda não tenha a sensibilidade suficiente para perceber a carga de certas palavras. Mas provavelmente ela usa-a na escola e com outras pessoas. Será que ninguém lhe explica que ver assim os outros e falar assim está absolutamente errado?!? Algumas coisas que vejo na nossa sociedade aterrorizam-me e só não fico pior porque felizmente já convivi com muitos outros exemplos diferentes, miúdos que nos fazem mesmo ter esperança no futuro.

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    1. Fora as que ficaram de fora porque entre o fim da viagem e a escrita da quixotada ainda se passou uma meia horita suficiente para me esquecer de algumas coisas. Mas dá para ter uma ideia da dimensão da pérola que ali ia...

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