quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Tempo português ou um regresso a casa

Tenho andado a ler o primeiro volume do Diário de Miguel Torga. A bem dizer, o primeiro volume publicado há uns anos pela Dom Quixote compreende os diários I, II, III e IV. Este foi um daqueles amores nascidos na livraria e que um outro amor resolveu: vi, há uns dois ou três anos, os quatro livros em que a editora da Leya arrumou os diários deste autor, acomodados numa caixinha especial preparada pela Dom Quixote para quem quisesse comprar todos os volumes em conjunto e não um a um, e um dia eles apareceram num restaurante, durante um jantar, como presente do meu moço, sempre atento aos meus desejos. Têm estado na estante e agora o primeiro volume dorme na minha cabeceira. 

Torga é Torga. Frase parva, eu sei, mas o que dizer de um escritor que da simplicidade dos seus montes e fragas escreveu linhas de enorme beleza, criou poemas que nos levam por ribeiros e árvores, por caminhos de pó junto de rebanhos e produziu reflexões que continuam a dar muito em que pensar? Torga é, para mim, um dos nossos maiores. Já o havia conhecido na prosa, depois na poesia, e agora conheço esta sua vertente diarística que conjuga escrita ficcional, poesia e impressões que as coisas do mundo lhe provocavam, levando-o à reflexão. Note-se que ele sabia bem que os seus diários seriam publicados, até porque Miguel Torga publicou os seus livros em edições de autor. Portanto, quem espera inconfidências amorosas e coisas parecidas esqueça. O que vemos é a mente de um escritor, a mente de um poeta e apenas conhecemos dos seus dias e dos seus pensamentos aquilo que nos quis mostrar. Mas aquilo que mostra é muito bom. Ver como uma qualquer data do calendário foi aquela em que nasceram versos únicos na nossa literatura é saboroso: parece que vemos o poema nascer em directo. Assim senti a leitura de "Ariane", poema que já conhecia, mas que nunca deixa de inquietar. É um poema sobre liberdade quando o seu autor estava privado dela, preso na cadeia do Aljube durante o Estado Novo. 

Mas os diários de Torga são para ser saboreados. Não são, parece-me, livros que se devorem, como sucede com outros que têm enredos alucinantes que somos incapazes de largar. Estes diários lêem-se com o mesmo vagar com que passavam os dias do autor e cada reflexão sua deve ser calmamente saboreada. Sim, porque Miguel Torga nunca nos entrega tudo de mão beijada. Pelo contrário: deixa-nos sempre a meditar sobre as suas palavras. Por isso, embora já vá no segundo diário, leio pacatamente porque cada dia de Torga é um mundo, mesmo que se resuma a uma impressão, a um desabafo, a um pequeno poema. 

Ora, se os diários de Miguel Torga pedem tempo e reflexão, sobram, ainda assim, minutos para encher com outras leituras. Podia dedicar-me à pilha de revistas por ler que vivem cá em casa, mas não seria a mesma coisa. Por isso, entre os dias do Torga, misturo o livro Astronomia, de Mário Cláudio. Recebi-o no meu aniversário, em Novembro, e como não andava muito voltada para autores portugueses, deixei-o parado desde então. Hoje fui buscá-lo para o tomar como intervalo para os passeios em São Martinho de Anta, em Leiria e em Coimbra pela mão de Miguel Torga (a propósito, sabiam que Adolfo Rocha adoptou este pseudónimo em homenagem a dois outros autores que muito admirava: Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno?). Duas boas leituras em bom português, proporcionadas por dois grandes escritores. De vez em quando sabe bem regressar a casa. 



Nota: As imagens das capas saíram da página da Wook. 

1 comentário:

  1. Gosto tanto de Torga.
    Durante algum tempo achei que os seus diários estavam esgotados há muito. Afinal, estava a confundir com os de V. Ferreira. Assim que os vi trouxe-os para viverem comigo :)

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