quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Peculiaridades de um leitor IV

Os vossos comentários a esta série de quixotadas a que pomposamente chamei «Peculiaridades de um leitor» têm-me feito pensar noutras particularidades de que falar. Ou seja, o vosso contributo, mesmo que nem dêem conta de que estão a dar-me ideias, é fundamental. Aquilo de que vou falar hoje nasce, precisamente, de um dos comentários que foi feito neste blogue, que desde já agradeço.

Todos nós temos as nossas manias para tudo na vida. Não apenas para a leitura e para os livros, mas para outros aspectos. Fazemos as coisas à nossa maneira, como nos dão prazer, mesmo que aos olhos dos outros soem a picuinhices. Para nós tem de ser assim e é importante manter esses hábitos. Quebrá-los pode até causar-nos alguma instabilidade. Mas, enfim, aquilo de que vos vou falar pode ser tanto uma mania quanto um método de leitura em que uns agem de uma maneira e outros de outra. Trata-se da leitura de uma obra que se divide em diferentes volumes.

Uma coisa que as editoras portuguesas adoram fazer, já o disse neste blogue, é partir livros em volumes. Isso faz com que cheguemos a Espanha ou ao Reino Unido e encontremos livros de mil páginas e aqui não. Aqui divide-se em volumes e geralmente pagamos bastante bem por eles. Ora, é fácil perceber que partir um livro em diferentes tomos tem influência sobre a nossa leitura. Reparem: se eu transportar comigo todo o livro, por exemplo, quando vou para o trabalho (como eu fazia, lendo nos autocarros), provavelmente só o devolverei à prateleira quando o terminar. Porém, se o livro estiver dividido em volumes, posso chegar ao final do primeiro, arrumá-lo na prateleira e não pegar imediatamente no segundo. Fazer uma pausa, respirar entre a leitura dos tomos da mesma obra. Raramente o fazemos durante a leitura de um livro que só tem um volume e quando o fazemos é sinal de que não estamos a gostar lá muito.

Portanto, perante obras divididas em volumes há duas maneiras de agir: ler todos os livros de uma assentada ou ler um volume, depois outro livro que não tenha nada que ver, voltar ao segundo volume, depois tornar a ler outra coisa. Enfim, ou assumimos a leitura da obra como uma missão a cumprir e não permitimos que nenhuma outra se interponha no caminho até à página onde tudo termina, ou vamos lendo os volumes ao sabor da vontade, descansando das personagens e lendo sobre outras noutros livros ou mesmo lendo livros de outros géneros.

Aqui me confesso: sou do segundo tipo. A obra pode ter mil páginas que eu aguento e leio-a de seguida, mas se estiver dividida em volumes raramente pego no segundo logo a seguir ao primeiro. A psicologia deve explicar isto, porém eu não sei fazê-lo. É como se precisasse de respirar entre os volumes. É disparate? É. Esqueço-me de pormenores entre o primeiro e o segundo volume quando passa muito tempo entre a leitura de um e do outro? Sim. Chegam a passar-se anos até pegar no segundo volume? Sim. E se a obra tiver mais do que dois volumes? Nem vos conto... É uma vida até a acabar. Foi assim com O Manuscrito Encontrado em Saragoça, cujo segundo volume ainda me aguarda; foi assim com A Família Forsyte (faltam dois volumes); foi assim com Os Pilares da Terra (em que não pegarei mais porque aquilo é uma porcaria). Enfim, são peculiaridades de um leitor, as tais que fazem com que todos sejamos diferentes mesmo quando fazemos a mesma coisa. Reparem: ler tudo de seguida não significa que a leitura seja uma obsessão, nada disso. Proceder de um ou de outro modo tem que ver, apenas, com uma maneira particular de organizar as coisas na nossa cabeça. Ler tudo de seguida significa que toda a obra ficará arrumada no nosso cérebro de forma, talvez, mais consistente, sem grande perda de pormenores. Lemos tudo e só paramos mesmo no fim, ficando desde logo com todo o conhecimento sobre o texto e com a possibilidade de o criticar na totalidade, de falar dele sabendo exactamente o que dizer. Mais: podemos dizer com toda a razão que lemos a obra A ou a obra B inteira. Ao lermos os volumes como eu, perdem-se algumas coisas pelo caminho, até porque pelo meio se vão cruzar outras leituras. Os momentos da vida em que vou ler um ou outro tomo também vão ser diferentes e isso, como vos disse ontem no texto sobre Os Maias, também influencia a nossa relação com o texto.

O que mais uma vez importa é que não há uma maneira certa ou errada de ler uma obra dividida em volumes. Há aquilo que nos deixa confortáveis. Eu fico confortável dando um tempo entre as leituras, mesmo que isso signifique ter uma experiência que deixará de fora pormenores que, inevitavelmente, serão esquecidos. Na leitura é isso mesmo que interessa: conforto. Temos de estar bem. Ler num banco de pedra também não é o mesmo que ler na esplanada ou na cama. Ler no autocarro não é o mesmo que ler numa espreguiçadeira à beira da piscina. Todos estes factores influenciam a nossa leitura e o conforto não tem apenas que ver com o sítio onde o nosso rabiosque está pousado enquanto lemos. Tem que ver com muitas mais coisas e é fundamental para que continuemos sempre a ser leitores.

4 comentários:

  1. La está, cada um faz como quer, mas isso para mim não dá.
    Não descanso enquanto não leio o livro até ao fim e sou daquelas que se o livro for mesmo bom, até me sinto órfã de livro no fim :D

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    1. Eu tendo a ser bastante calma com os livros. Já ne aconteceu entusiasmarem-me tanto que os pousava só para me acalmar. 😂 Ridículo. Daí que me seja relativamente fácil largar uma história no fim do primeiro volume e voltar daí a um ano, por exemplo.

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  2. :)
    Sou apologista do viver e deixar viver.
    Como já sabes, leio os volumes todos seguidos. Não acabo um e vou a correr pegar noutro, dou tempo para pensar no que li, mas depois pego no seguinte. Para mim faz sentido, mas entendo que para muita gente não faça. Há quem goste de limpar o palato com outros estilos e outras histórias. O importante é que se tire prazer do lemos. Como a leitura é feita pouco importa.
    Tens toda a razão quanto à divisão dos livros em vários volumes. A edição que tenho da "Família Forsyte" é inglesa e num só volume. Nem sabia que eram três.
    Quanto ao "Manuscrito encontrado em Saragoça", poderia muito bem ser apenas um só volume, não havia qualquer necessidade de dois.
    E foi por causa da mania das divisões que fiquei muito surpreendida quando editaram "O quarteto de Alexandria" num só volume, a edição anterior tinha quatro volumes.

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    1. É o que encontro de tão perfeito no mundo dos livros. É que além de haver livros para todos os gostos, somos nós que gerimos as nossas leituras como queremos, como gostamos e, por vezes, como tem de ser por não termos tempo para mais. Não há uma maneira certa ou errada de fazer as coisas. Há apenas o "fazê-las" como nos der gosto.

      Quanto aos volumes, é coisa que considero uma praga em Portugal. Em Espanha, por exemplo, encontram-se volumes enormíssimos. A mesma coisa no Reino Unido. Aqui parte-se tudo aos bocadinhos (para sair mais caro, diria eu...). Não gosto. Preferia um volume único.

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