terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Istambul - o balanço


Terminei ontem o livro Istambul - Memórias de Uma Cidade, de Orhan Pamuk, autor vencedor do Nobel da Literatura de 2006. Gostei muito do início, mas depois surgiram-me alguns «mixed feelings». E porquê? Já lá vamos. Primeiro deixem-me falar sobre aquilo de que gostei mais.

No fundo, o que Orhan Pamuk fez com este livro foi um entrançado que uniu as suas memórias às de uma cidade que muito mudou durante o período da sua infância e juventude, mas que já estava em grande mudança quando nasceu. O ponto de partida é o de que a nossa existência está irremediavelmente ligada a um lugar e que, por isso, ele nos afecta, nos molda, nos muda. Istambul agiu sobre ele tanto ou mais que a família em que nasceu ou os estudos que fez. A cidade, a sua melancolia, a sua dualidade entre orientalismo e ocidentalismo, a queda do império otomano e as marcas que permaneceram em todos os lugares por onde passou, mas sobretudo nas pessoas que tiveram de aprender a viver numa nova cidade, numa Istambul em constante mudança e em busca de identidade, enfim, a soma de todos esses aspectos interferiram na sua personalidade. É por isso que este livro tem memórias do autor e factos ou sensações sobre a cidade: ele nunca deixa de ver-se como um ser humano envolvido num determinado local num determinado período de tempo e, portanto, a sua história pessoal é também feita da história da cidade. 

Ao longo do livro, vamos sendo apresentados a aspectos de Istambul que, de alguma forma, exerceram algum tipo de influência sobre Pamuk. Quer fossem os vestígios do antigo império otomano que os ocidentalistas queriam apagar ou os prédios recentes que substituíram os velhos edifícios, mudando o horizonte da cidade, nos trinta e sete capítulos do livro, o leitor pode percorrer a história da cidade e tentar perceber a luta que nela se travava entre o passado grandioso e o futuro incerto, dividido entre oriente e ocidente, sem se saber muito bem se o modelo a seguir devia ser o europeu ou outro. 

A acompanhar todo o texto estão dezenas de fotografias a preto e branco, algumas do próprio escritor e outras de conhecidos fotógrafos (isso surge explicado num texto final). O facto de serem a preto e branco não tem apenas que ver com o facto de serem antigas, mas também com o sentimento que Istambul causa em Pamuk: um sentimento sem outras cores que não as duas das fotografias, como se a cidade estivesse mesmo encravada num tempo passado sem perceber bem que outro caminho seguir. Portanto, o leitor consegue acompanhar visualmente as memórias evocadas, refira-se ele a antigas casas do império otomano ou mesmo a pinturas de visitantes que ao longo do tempo se deixaram apaixonar pela cidade. Deste modo, acedemos às suas vivências, ao modo como elas se ligam a Istambul e vemos, inclusivamente, como eram certos pontos da cidade noutros tempos.

Claro que, observando o título da obra, não podemos esperar outra coisa que não memórias de Istambul. No entanto, inicialmente ficamos com a sensação de que as memórias do autor, ainda que ligadas às da cidade, terão um maior destaque. No entanto, em alguns capítulos, a leitura torna-se mais aborrecida porque o autor fala de aspectos que estão muitíssimo afastados do que conhecemos e porque não me parece que a contextualização seja assim tão bem feita. Quando, por exemplo, fala de certos autores antigos e caídos em desgraça, penso que se alonga demasiado e, como não são escritores de que falemos todos os dias, fica a sensação de que valia a pena saber um pouco mais sobre eles e sobre a importância que têm na literatura turca. Mais: por vezes, Pamuk escolhe um tema e disserta sobre ele de uma forma que me soou repetitiva. Algumas ideias surgem repetidas ao longo destas memórias, mas não de uma forma muito interessante. 

Contudo, a característica do livro que mais me decepcionou e cuja responsabilidade não é tanto do autor como das editoras prende-se com a necessidade de o leitor precisar, hoje, de um mapa da cidade que lhe mostre onde são os subúrbios e onde está o centro; que situe espacialmente alguns dos bairros pobres que são nomeados, mas que não sabemos onde estão; que indique em que zonas da cidade ficavam as diferentes casas onde Pamuk viveu. Se nos diz que, mudando a situação financeira da família, mudou várias vezes de casa e se nos mostra que os diferentes apartamentos e as vistas que observava pela janela foram importantes para si, seria importante para o leitor poder perceber esse seu itinerário. Não bastam os nomes dos lugares se não conseguimos relacioná-los com um espaço. Claro que poderíamos procurar nós essas informações, mas considerando a quantidade de nomes referidos, seria um trabalho moroso que mataria o prazer que a leitura tende a trazer.

Assim, esta falta de um mapa que nos facilite a leitura, a repetição de algumas ideias e a falta de informações que levem o leitor comum a perceber melhor a importância daqueles que o autor refere como sendo importantes para a cidade (isto acontece mais no campo literário) tornam por vezes a leitura aborrecida. Mesmo assim, o livro é interessante até porque compreendemos que uma cidade tão embrenhada em mudanças constantes exerce um poder incrível sobre os seus habitantes, especialmente os que nela nascem e crescem. Creio que precisava, apenas, de que aqueles aspectos referidos fossem trabalhados de outro modo. Mesmo assim, para quem gosta de ler sobre outros lugares, é um bom livro. Não esperem propriamente um livro de viagens daqueles a que estamos habituados. Esperem as memórias de um lugar que passou por muito. O título não engana.

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