terça-feira, 16 de janeiro de 2018

A Família Golovliov - o balanço


Há personagens literárias que são inesquecíveis, quer pela grandeza dos feitos, quer pela pobreza de espírito. Umas ficam na memória pelas melhores qualidades e outras ainda pelos piores defeitos. Lembro-me de ficar impressionada pela crueldade de Heathcliff em O Monte dos Vendavais, por exemplo. Recordo-me da maldade e do desdém com que Mildred Rogers trata o protagonista do romance Servidão Humana. Lembro-me de ficar emocionada com a sinceridade de Sancho Pança ao admitir que o amo é louco, mas que o quer mais do que às fibras do seu próprio coração e que, por isso, não o pode deixar. Estas são, por tudo isto, algumas das personagens literárias que, ao serem tão bem construídas, ao aproximarem-se tanto daquilo que nos torna humanos, ficam na nossa memória. Creio que são precisamente estas figuras capazes de espelhar aquilo que podemos ser as que mais nos arrebatam durante a leitura e que transformam alguns livros em verdadeiros «criadores de emoções», como se aquelas personagens fizessem de facto parte da nossa vida e, assim, nos enervassem ou nos comovessem realmente.

Em A Família Golovliov encontramos, como o título afirma, uma família. Além disso, encontramos um lugar: Golovliovo. Ambas as coisas parecem ser suficientes para uma criação literária que provoca no leitor as mais variadas emoções. Se é inevitável rir perante alguns absurdos, também não se consegue evitar a raiva que provoca tanta mesquinhez e hipocrisia juntas numa única personagem. Porfírio, normalmente tratado por «sanguessuga» ou «pequeno Judas», sempre deixou a mãe desconfortável. Havia algo no seu olhar, na sua calma que a preocupava. Ao mesmo tempo e embora soubesse desde sempre que aquela criatura era dissimulada, Arina Petrovna, a mãe, sempre se deixara enredar nas suas palavras melífluas, fazendo exactamente o que ele queria e quase sem se dar conta disso. Não que esta mãe seja o cúmulo da ingenuidade, nada disso. É, até, bastante matreira e está  bastante atenta ao que acontece à sua volta, na tentativa de conseguir os maiores lucros e, assim, aumentar os seus rendimentos. O facto de Arina Petrovna ser uma das personagens que se deixa levar pela hipocrisia de Porfírio é menos a prova da sua simplicidade e mais a de que ele é, efectivamente, um grande manipulador. 

Creio que não há uma página deste livro, no qual se conta a história desta família, que não revele a personalidade mesquinha, hipócrita e manipuladora de Porfírio. Escondida atrás da religião, do temor a Deus, de orações recitadas sem verdadeira fé ou ditas diante dos ícones, mas contrariadas por acções desprezíveis no minuto seguinte, esta personagem passa todo o tempo da narrativa à procura de colher benefícios. Mais: procura-os mesmo onde ainda não é assim tão evidente que possam estar. Pretendendo ser um bom cristão, um homem de fé e um familiar preocupado, Porfírio não dá ponto sem nó e, aos poucos, vai conseguindo sempre o que quer, ao ponto de acumular ganhos consideráveis. É um «farejador» capaz de lucrar sempre com a desgraça alheia, seja a dos irmãos, a dos filhos ou mesmo a da mãe. Passa os dias entretido em cálculos absurdos que, além de procurarem manter controlados os ganhos e os gastos, imaginam formas de aumentar os primeiros e de diminuir os segundos. Faz contas absurdas que o levam a perceber coisas estapafúrdias como quanto ganharia ele se todas as vacas da zona morressem à excepção das suas e se estas começassem a produzir o dobro do leite. Desenvolve cálculos cujas parcelas podiam ser «e se...», pretendendo apenas manter o cérebro ocupado, ainda que nenhuma daquelas contas vá realmente ajudá-lo na vida diária.

Não pensar é, precisamente, uma das tarefas que as personagens desta obra mais procuram desenvolver. E por isso jogam ao burro, falam sobre o tempo, usam provérbios e frases feitas até lhes esgotarem o pouco sentido que têm. Também por isso muitas usarão a vodka como forma de escapar à vulgar e triste realidade. Evitar pensar é mesmo o mais importante para as personagens que nasceram e viveram em Golovliovo e que, mais tarde ou mais cedo, lá vão para terminar a vida. Aliás: podemos afirmar que aquela propriedade familiar que Porfírio tanto deseja que se torne sua é mesmo um lugar de morte, um espaço onde a capacidade mental se deixa adormecer até que também o corpo morra. Apenas Porfírio parece ir sobrevivendo a tantas sepulturas que à sua volta vão nascendo, sempre afirmando que ele é piedoso, que ele respeita Deus, que ele é humilde e virtuoso. Na realidade, Porfírio é o mais apodrecido de todos quantos nos passam à frente durante a leitura. É ele que concentra em si a capacidade de influenciar os outros e apenas com palavras que são, sempre, repetitivas, vazias, aborrecidas. Se Porfírio vir alguma hipótese de lucrar com uma dada situação, então tentará fazê-lo, mas não com o uso da força: apenas com o uso de palavras doces carregadas de veneno e de más intenções. Se um familiar morre e ele é o herdeiro, Porfírio levará a herança até ao último botão, escudando-se em Deus e nas suas vontades, rezando depois de mãos postas pela alma que partiu e que era tão boa, mas... Com ele há sempre um «mas». Mesmo quando ora pelos outros, esta personagem consegue falar mal deles, dizendo coisas como: a mãezinha foi tão boazinha e teve uma morte tão santa, mas... Podia ter escolhido outra altura para morrer que nesta não me dava jeito nenhum, a malvada! Porfírio é um hipócrita e chegamos a um ponto em que não percebemos se esta sua hipocrisia é consciente ou inconsciente, isto é, se é por deliberada maldade ou se, por outro lado, ele só sabe ser assim. A verdade é que esta é daquelas personagens capazes de nos deixar à beira de um ataque de nervos. Ora quase nos mata de tédio com as suas longas conversas desprovidas de interesse, ora quase nos mata de raiva por ser tão mesquinho ao ponto de querer tirar lucro de tudo, seja seu ou não. Mesmo quando só lhe resta a solidão, mesmo quando já não existe o fito de deixar o que é seu a outros, Porfírio continua numa espiral de ganância, dizendo a quem pode que nem tudo o que parece é e que se a uns pode parecer que até tem uns dinheiritos, tudo contado pode ser que até nem tenha nada e que ainda precise de ajuda. Mesmo sabendo nós, leitores, que ele é um grande proprietário e que podia, com os seus haveres, ter tido uma vida sossegada, sem se afadigar em conseguir mais e mais e mais.

Se lerem este livro, verão que não mais esquecerão esta figura. Verão que a forma dissimulada como procura entrar na consciência dos outros e alterar os seus actos é muito enervante. Mas encontrarão, sobretudo, uma história bem contada, divertida em vários momentos e capaz de nos fazer pensar na questão da hipocrisia, sobretudo daquela que, ligada à religião, mostra alguns homens que se julgam mais merecedores do bem e sem a necessidade de darem nada em troca. Como disse, não sabemos verdadeiramente se Porfírio tem consciência desta sua ganância e da sua hipocrisia crescente ou se considera, por outro lado, tudo muito normal e dentro daquilo que tem mesmo de ser. É uma incógnita. O que ele é, sem dúvida, é um tipo chato que é perfeito enquanto personagem, que cumpre o seu papel num livro fantástico e que, provavelmente, consegue como poucos um lugar na memória dos leitores. 

Este é, portanto, um dos livros que vale a pena ler em 2018. Foi reeditado recentemente pela Relógio D’Água, por isso o meu conselho é o de que não esperem muito para ir conhecer Porfírio e a sua terrível mãe que desconhece o amor maternal, limitando a sua tarefa a «atirar uns ossos» aos descendentes, esperando que não mais a aborreçam. E mais não vos conto. Leiam o livro. Contudo, deixo ainda um conselho: se na vossa edição estiver, como naquela cuja capa aqui deixo, uma introdução de James Wood, leiam-na no fim ou ficarão a conhecer demasiados pormenores da história ainda antes de a começarem.

3 comentários:

  1. :)
    Que bom que gostaste.
    Para mim, Porfírio ombreia com as melhores personagens da literatura russa.

    (Algumas introduções e alguns prefácios são demasiado reveladores, o que me parece absurdo.)

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    1. Caí na asneira de começar a ler a introdução antes da narrativa e fiquei logo a saber de um aspecto de Golovliovo que é decisivo para a história. Parei logo de ler a introdução, mas infelizmente a surpresa (pelo menos quanto àquela característica da propriedade) já estava revelada.

      Este autor merece uma salva de palmas pela capacidade que teve de criar um tipo a quem só apetece bater. Só as personagens bem construídas conseguem despertar tais vontades nos leitores. Porfírio é um chato manhoso e só apetece apertar-lhe o gasganete. Ahah.

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  2. Estou bastante curiosa quanto ao seu conto na antologia da E-primatur. Mas claro, continua em espera. Haja tempo!

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