quarta-feira, 21 de junho de 2017

Peculiaridades de um leitor VIII

Li há pouco este artigo do The Guardian sobre gralhas que se tornaram famosas e, em alguns casos, extremamente valiosas. Já quando li o livro O Bibliófilo Aprendiz fiquei a saber que certas edições, precisamente pelos erros que escaparam, acabaram por tornar-se mais valiosas do que as que foram corrigidas.

Ora, acho que nisto das gralhas todos os leitores estão de acordo: preferem um livro que tenha pouquíssimas ou nenhuma. Inevitavelmente passa sempre uma ou outra, porém o problema começa quando de facto o livro está pejado delas ou quando as gralhas alteram o sentido do texto. Há uns anos, por exemplo, li O Monte dos Vendavais numa edição tão terrível que me livrei dela depois. As gralhas eram tais e tantas que chegavam a colocar personagens já mortas a conversar sentadinhas numa poltrona, numa clara troca de nomes. Está bem que o romance tem ali umas partes em que realmente parece andar por ali um espírito a fazer bater as portadas das janelas, mas o erro ia além disso e era inconfundível com qualquer elemento sobrenatural adicionado à história.

A primeira vez que li o Quixote, aos dezoito anos, foi inesquecível. Não só porque encontrei ali o MEU livro, mas também porque cheguei ao ponto de pegar num lápis e ir corrigindo as gralhas, que eram imensas. Para terem uma ideia, foram dezenas as vezes em que a palavra «urna» apareceu em vez do determinante artigo indefinido «uma». Está bem que graficamente até são parecidos, mas imaginem o significado que certas frases tinham...

Como disse acima, um leitor (e aqui nem precisa de ser dos melhores: basta mesmo gostar de ler) dispensa bem as gralhas que perturbam a leitura e que dão um ar desmazelado ao livro. Irritam ainda mais quando o mesmo nos custou mais dinheiro do que aquele que deveríamos pagar por livros, mas enfim. O trabalho de revisão devia, por isso, ser objecto de maior consideração. No entanto, a crise provocou o oposto e livros, jornais e revistas surgem pejados de erros que afligem os leitores e que conseguem mesmo, por vezes, afastá-los deles.

Ainda assim, certas gralhas, propositadas ou não, dão boas histórias. Quem leu o romance de Saramago História do Cerco de Lisboa recordar-se-á, certamente, da premissa que cria toda a acção. O revisor de um livro de História sobre a ajuda dos cruzados a Portugal na luta contra os mouros resolveu acrescentar a palavra «não» a uma frase, criando novos acontecimentos históricos e alterando para ficção aquilo que se queria real num livro de História. Ora, o próprio Saramago, que imaginou uma narrativa em torno de uma única palavra acrescentada às provas tipográficas, teria adorado estas gralhas referidas pelo The Guardian no já citado artigo: numa edição da Bíblia do século XVII, alguém fez o contrário e esqueceu-se da palavra «não» nos diferentes mandamentos. Assim, segundo aquela edição, matar, roubar, cometer adultério e cobiçar as coisas alheias passaram a ser permitidos e, inclusivamente, um dever. Essa mesma edição passou, por isso mesmo, a ser tida como «The Wicked Bible». 

Qualquer leitor detesta gralhas, mas acho também que qualquer leitor gostaria de ser dono de uma destas peculiares edições em que uma palavra muda tudo. O artigo do The Guardian refere outros exemplos curiosos que vale a pena conhecer. 

Por aqui recordo-me da gralha na contracapa da minha edição de Os Buddenbrook, de Thomas Mann, na qual está escrito que «Thomas Mann iniciou a escrita do seu primeiro romance - Os Buddenbrook - em 1986, com apenas 21 anos de idade, terminando-o cinco anos mais tarde.». Ora, Thomas Mann nasceu em 1875 e faleceu em 1955... Na altura a gralha irritou-me, mas agora até lhe acho graça. O resto do livro, felizmente, está livre de disparates assim e esta edição da Dom Quixote tem qualidade. Isto mostra-nos que, de facto, se de um modo geral dispensamos gralhas, em certas circunstâncias elas acrescentam qualquer coisa ao livro. Claro que quando até tomamos a iniciativa de pegar num lápis para as corrigir é porque a situação é ridiculamente desproporcional e prejudicial à leitura e compreensão do texto. Nem todas são como a celebérrima gralha da primeira edição do Memorial do Convento, na qual o autor, falando de música conhecida por Baltasar e Blimunda, a descreveu como «estridor operático», transformando-se isto em «escritor operário» depois da revisão. Quem sabe se o revisor pensaria no próprio Saramago ao realizar tal transformação no texto?...

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