sábado, 24 de junho de 2017

«Ana Paula» - o balanço


Ana Paula é o primeiro romance que compõe este conjunto de três livros publicados pela Guimarães Editora. Cada volume contém dois romances e todos eles têm por espaço a Lisboa do século XX durante a ascenção e declínio do período salazarista. Como o próprio nome dos volumes indica, Crónica da Vida Lisboeta, estes romances acabam por funcionar como crónicas dos costumes e não só de uma cidade que se perdeu no tempo. Assim, o enredo aborda questões próprias da época que saem reforçadas pelo cenário de uma cidade profundamente marcada pelas desigualdades sociais, onde enquanto a burguesia desfilava pelo Chiado e enchia as casas de chá, as varinas andavam de canastra à cabeça olhando para todos os lados para ver se a polícia não vinha lá. Ao mesmo tempo que passavam belíssimos automóveis, em alguns espaços andavam galinhas pelas ruas. Enfim, uma cidade cheia de contrastes, irremediavelmente marcada por códigos de conduta que, em boa parte, a religião ditava e que iam travando a vida de muitos, sobretudo a das mulheres, sempre consideradas menos importantes, mais fracas, obrigatoriamente submissas.

Ana Paula foi dos melhores e mais cativantes romances escritos em português que já li. Já para não falar do brilhante domínio da língua que marca a escrita do autor, Joaquim Paço D’Arcos, e que é coisa de que se sente uma certa saudade, o enredo é tocante, mas é tal e qual o que esperamos da época histórica retratada. A protagonista, que dá nome ao romance, cresce na Graça no início do século XX. Provém de uma família abastada cujo título já vem de longe e se deve a uma propriedade no norte do país. É a filha mais velha de um casal no qual a mulher é absolutamente submissa, sem opiniões, sem voz, que tudo aceita tacitamente e que casa quando já ninguém o esperava e apenas porque os seus bens ajudarão a situação económica do futuro marido, prejudicado ainda pela lei que retira aos morgados a totalidade da herança paterna. Não é mais do que uma transação comercial, mas sente-se feliz por casar porque, afinal, era isso o que qualquer moça desejava. O pai de Ana Paula, o Conde da Balsa, é um tipo de causas, desde que lhe dêem jeito. Luta pelas partes que crê poderem trazer-lhe vantagens, até que percebe que mais vale manter-se à margem dessas lutas antes que lhe saia o tiro pela culatra. Filha destes dois, Ana Paula cresce, ainda assim, saudável e feliz com as temporadas que passa na propriedade junto ao Tua. É livre, curiosa e até um pouco pespineta. É, portanto, uma criança absolutamente normal. No entanto, o pai considera que deve ser domada e, assim, levá-la-á para um colégio religioso na Galiza, onde será educada por freiras, tendo sempre em vista o temor a Deus. É assim que Ana Paula perde todo o viço e encanto da infância, trocando-os pelos limites impostos pelo divino. Sairá do colégio aos dezasseis anos completamente diferente. Aprendeu aquilo que uma menina precisava de saber. Também aprendeu o que era o pecado e que Deus não gosta de pecadores. Aprendeu a rezar. Foi, enfim, domada pela religião. Foi toda a educação que teve.

Um dia, enquanto tomava chá com a irmã e uma prima numa casa de chá do Chiado, conhece Jorge, um oficial conhecido em Lisboa por feitos de guerra importantes. Era admirado por todos pela coragem e pela bravura. Mas também era sobejamente conhecido por ser um estroina, um bon vivant que gostava de gastar o que tinha e o que não tinha. Gastou em três meses a herança que o pai lhe deixou e que foi criada ao longo de uma vida inteira de trabalho. Conhecia de olhos fechados o caminho para o Casino do Estoril. Contudo, obviamente, Ana Paula só sabia da primeira parte: que Jorge era um herói a quem o país devia muito. Casou e rapidamente travou conhecimento com a segunda. Não gostou, mas aguentou.

Esta última frase poderia sintetizar o livro: não gostou, mas aguentou. Ana Paula poderia ter sido diferente, não tivesse sido a sua educação como foi, no sentido de lhe impor limites que eram os esperados na sociedade lisboeta da época. Talvez se tivesse continuado a crescer livremente... Mas não sabemos. O que o romance nos conta são as provações de Ana Paula que, a determinada altura, se verá a braços com a possibilidade de cortar as amarras, libertando-se de um casamento que a humilha, que não lhe traz já qualquer felicidade, que a apequena todos os dias. Assistimos à luta interior de Ana Paula, luta essa muito condicionada pelo temor a Deus e pela sociedade que não aceita mulheres que, ainda que sofrendo, abandonem os seus maridos. Assistimos a um diálogo entre três pessoas, sendo uma delas a prima de Ana Paula, no qual percebemos bem o pensamento da época: «mulher que se separe do marido jamais entrará na minha casa», que é o mesmo que dizer que será excluída da sociedade pela própria sociedade. 

O final é o único que poderia ser, ainda que gostássemos de ver outro. Mas este é um romance que não permite que nos esqueçamos de que estamos da primeira metade do século XX, ali pelo ano de 1936. À luz do século XXI, não aceitamos as escolhas da protagonista, mas ela não é do nosso tempo e isso diz tudo. Perante uma sociedade que manda aguentar, quem tem força para remar contra a corrente? Quando Deus serve para condicionar os actos dos seres humanos, sobretudo os das mulheres, como conseguir a força para quebrar esse medo e seguir o caminho desejado? Quando se acredita mesmo que os pecados desta vida se pagam na outra, quem se atreve a escolher a felicidade em vez do que é moralmente certo? Quando a sociedade espera das mulheres espírito de sacrifício e quando é isso o que ouvem nos sermões e nos confessionários, como agir de modo contrário?

Por tudo isto, aconselho-vos a lerem este romance, do qual não vos desvendarei mais nada. Joaquim Paço D’Arcos não é o mais conhecido escritor português, mas merece ser lido. Tem mais livros além dos romances que compõem esta Crónica da Vida Lisboeta. Estes volumes da Babel são um pouco caros. Só os comprei na Feira do Livro porque me fizeram um desconto de 40% no penúltimo dia do evento. Pelos três paguei à volta de quarenta euros. Mas se puderem, requisitem-nos ou aproveitem as promoções que sempre vão aparecendo para irem comprando um de cada vez. Terão um enorme prazer a ler este maravilhoso uso da língua portuguesa aliado a uma história tocante e muito bem contada.

6 comentários:

  1. Aguçaste-me o apetite. Obrigada.
    Tenho os três livros desde o ano passado, se não estou em erro. Todos por ler.

    Iniciei ontem "Djan ou a Alma", de Platónov (Antígona), sobre o período estalinista. Uma alegoria interessante e desoladora, mas esperançosa também. Há uns anos li "A escavação" e gostei. Também uma alegoria.
    Pelo que disseste evitas certos temas, de qualquer das formas, deixo aqui a sugestão.

    Aos poucos vou pondo as leituras em dia.

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    1. Evito, sim. Mas mesmo assim já evitei mais. Devo estar a crescer. Por isso vou apontar as sugestões, que no futuro nunca se sabe. Por agora ando às voltas com a biografia de Einstein que deu origem à série «Genius», cujo último episódio passa na próxima quinta-feira; e com o «Incidente em Antares», do meu queridíssimo Érico Veríssimo, e que estou a adorar. De vez em quando sinto necessidade de voltar à literatura brasileira, que considero uma das mais ricas e interessantes de entre todas as que conheço. A quantidade de bons autores que aquele país deu ao mundo é brutal!

      Lê o «Ana Paula», do Joaquim Paço D’Arcos. É impossível ficar indiferente à vida pequenina que a sociedade destinava às mulheres portuguesas da primeira metade do século XX. Como disse, o fim não é o que queremos, mas o que tem de ser e o romance ainda ganha mais por isso. Qualquer outro final matar-lhe-ia a verosimilhança e, com isso, boa parte da sua qualidade.

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  2. Este livro apesar de ser desconcertante não tem (até agora) - para mim - o mesmo impacto de "Vozes de Chernobyl" ou de "Contos de Kolimá", por exemplo. É duro, mas diferente.

    Até hoje, de Veríssimo só li "Olhai os lírios do campo". Gostei da primeira parte mas da segunda nem tanto. Por me ter parecido inverossímil. Vou procurar o que lês.
    Tal como tu, gosto muito de literatura brasileira.
    Tenho "A menina morta" e estou em pulgas para lhe pegar. Mas os livros são tantos e o tempo tão pouco.

    Agora que já vejo bem ( malditas quedas de cabeça), sinto-me maravilhada.

    Ao fazer companhia à minha linda velhota no hospital, entretinha-me a inventar e a resolver problemas matemáticos na cabeça ou a recitar baixinho poemas.
    É maravilhoso tornar às letras impressas :)

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    1. Lembro-me de ter lido o "Olhai os Lírios do Campo" e de ter adorado. Tenho de o reler. Por causa dele fique tão fã do autor que comprei todos os livros dele a que consegui deitar a mão. Como praticamente está esquecido por cá, só me safei em feiras de livros usados.

      Li "A Menina Morta" no verão passado. É um livro estranho, mas também muito bom para, uma vez mais, observarmos o papel reservado à mulher numa determinada sociedade. No fundo, pareceu-me, um livro em que estamos sempre à espera de uma grande revelação. Não te digo é se ela chega ou não para não estragar a leitura. 🙂

      Acredito que ficar sem poder ler quando esse é talvez o passatempo favorito deva ser tramado. Eu fiquei preocupada pela ausência, mas não tinha como saber se ti. Um dia trocamos emails. Em caso de ausência prolongada de uma ou da outra, avisamos que estamos vivas. Agora que já podes ler, aproveita. Eu fiz um teste de acuidade visual e descobri que os meus olhos estão cinco estrelas. Passaram com 10/10 nos testes todos. Ainda bem. Com tanto que leio, imaginava que aos 31 já estivesse pitosga, mas afinal não. Acho que os ecrãs fazem pior do que os livros.

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    2. :)
      A edição de "Olhai os lírios do campo" que tenho é de 2014, do Clube do Autor. E hoje fui buscá-lo porque me lembrei que Veríssimo havia escrito um posfácio.
      «... Sua popularidade às vezes chega a me deixar constrangido. Vejamos claramente o que tenho contra ele. Para principiar, a construção. A primeira parte é intensa e cheia dum interesse que jamais enfraquece. Na segunda, porém, esse interesse declina, e a história se dilui numa série de episódios anedóticos sem unidade emocional. Eu mesmo já tratei de justificar esse defeito dizendo que a vida no fim de contas é assim, isto é, não se trata de algo simétrico e arrumado como nos romances bem feitos. A verdade é que nem eu mesmo consegui aceitar a validade de meus próprios argumentos.
      A dedicação, o altruísmo e a nobreza de Olívia me parecem inumanos. Não convencem. (...)»
      Foi isto que pensei, ninguém pode ser assim tão bonzinho mesmo quando é espezinhado inúmeras vezes. Mas isso sou eu.

      Ler para mim é um modo de vida ou de estar na vida. Foi complicado, sim. Tenho passatempos, mas para todos preciso de ver bem.
      O oftalmologista não encontrou nada de mal com os meus olhos, estava tudo bem.
      Os problemas de visão eram o sintoma e não o problema em si.
      Sabes quando abanamos um globo de neve e para que a neve torne ao lugar temos que esperar algum tempo? Foi o que aconteceu na minha cabeça. A queda fez com que algo se deslocasse e até voltar ao sítio, precisou de tempo. A Tomografia Axial Computadorizada estava limpinha. Felizmente.
      Estas pancadas fortes na cabeça podem até levar à cegueira. Portanto, muita atenção.
      Sim, trocaremos emails para fazermos sinais de fumo ;)
      Tenho muito que ler. Tenho que aproveitar porque segunda regresso ao trabalho.

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    3. Para ser honesta, li o "Olhai os Lírios do Campo" há dez anos. Lembro-me de ter gostado muito, mas lembro-me pouco das duas partes do romance. Recordo-me de episódios pontuais e pouco mais. Por isso é que tenho mesmo de voltar a relê-lo. Este "Incidente em Antares" está a ser uma agrável surpresa e cheira-me que a segunda parte (onde surge o tal "incidente") será ainda melhor.

      Bolas, isso foi a sério. :( Realmente, sem poder "usar os olhos" uma pessoa fica sem saber o que fazer. Ainda bem que já estás melhor. Nunca passei por uma coisa assim. O máximo que já me sucedeu foi estar sob vigilância para verem se tinha algum traumatismo craniano, mas felizmente não tinha nada. Enfim, já passou. E ainda tens uns dias para ler!

      Se algum dia precisares ou quiseres dar notícias sem ser em comentários no blogue ou se quiseres passar-me o teu email, basta enviares um email para o endereço do blogue: asminhasquixotadas@gmail.com Só eu é que lido com o blogue e tendo a ver o email com frequência.

      Boas leituras! :)

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