quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Personagens que lêem

«Inconscientemente, desenvolveu o hábito mais encantador do mundo, o hábito da leitura: não sabia que, assim, estava a construir o seu refúgio para todas as agruras da vida; também não sabia que estava a criar para si próprio um mundo irreal que iria tornar o mundo real do quotidiano numa fonte de amargas desilusões. Entretanto começou a ler outras coisas. A sua inteligência era precoce. O tio e a tia, vendo como se entretinha sem dar trabalho nem fazer barulho, deixaram de se preocupar com ele. Mr. Carey tinha tantos livros que não os conhecia todos e, como lia pouco, esquecia-se das montanhas de livros que tinha comprado várias vezes por grosso por serem baratos. [...] Philip tinha poucos amigos. O hábito da leitura isolava-o das outras pessoas, sendo uma necessidade tão premente que ao fim de algum tempo de convívio começava a ficar impaciente e cansava-se da companhia; sentia vaidade na vasta cultura adquirida no contacto com tantos livros, possuía um espírito observador e faltava-lhe talento para esconder o seu desprezo pela estupidez dos colegas. Estes queixavam-se de que ele era presunçoso e, como só se destacava em assuntos que para eles não eram importantes, perguntavam trocistas o porquê de tanta presunção.»


in Servidão Humana, de Somerset Maugham.



«Uma única coisa me impedia de entristecer absolutamente. Meu pai tinha deixado num gabinete, no segundo andar, uma pequena colecção de livro; o meu quarto ficava paredes meias e ninguém pensava nessa biblioteca. Pouco a pouco, Roderick Random, Peregrine Pickle, Humphrey Clinker, Tom Jones, O Vigário de Wakefield, Dom Quixote, Gil-Brás e Robinson Crusoé saíram, glorioso batalhão, desse precioso gabinete para me fazerem companhia. Eram eles que me tinham a imaginação alerta, davam-me a esperança de um dia poder fugir desse lugar. Nem esses livros, nem As Mil e Uma Noites, nem as histórias dos génios, me faziam mal, porque o mal que aí podia encontrar-se não me atingia; eu não compreendia patavina. Espanto-me hoje de como tinha tempo para ler esses livros, no meio das minhas meditações e dos meus desgostos sobre motivos bem mortificantes. Espanto-me ainda da consolação que eu encontrava no meio das minhas pequenas provações, que eram grandes para mim, a identificar-me com todos quantos eu amava nessas histórias, onde, naturalmente todos os maus eram para mim um Mister e Miss Murdstone. Fui durante mais de oito dias Tom Jones (um Tom Jones infantil, a mais inocente das criaturas). Durante todo um mês julguei-me um Roderick Random. Eu tinha a paixão das narrativas de viagem; havia algumas nas prateleiras da biblioteca e recorda-me que passei dias inteiros a percorrer o adar em que eu habitava, armado com a tala de umas estopas, a fazer de capitão da marinha real, em grande perigo de ser atacado pelos selvagens e resolvido a vender muito caro a vida. [...]

Era a minha única e fiel consolação. Quando nisso penso, torno a ver sempre diante de mim uma linda noite de Verão; as crianças da aldeia brincavam no cemitério e eu lia na cama como se a minha vida disso dependesse. Todas as herdades da vizinhança, todas as pedras da igreja, todos os cantos do cemitério tinham, no meu espírito, alguma associação com esses famosos livros e representavam algum lugar célebre das minhas leituras. Vi Tom Pipes subir ao campanário da igreja; reparei em Strass, com o seu saco às costas, sentado na barreira a descansar, e sei que o comodoro Trunnion presidia ao Club com Mister Pickle na sala da pequena taberna da nossa aldeia.»


in David Copperfield, de Charles Dickens.


 
Deixo-vos aqui dois bons exemplos de duas personagens, ambas em tenra idade, que descobrem o poder animador da leitura e que a tomam como um refúgio para as terríveis realidades das suas vidas. É uma pena que cada vez menos as crianças, não as literárias, mas as de carne e osso, descubram o gosto pela leitura e os seus benefícios. Perdem experiências que só um leitor pode viver e verão, certamente, o mundo de um modo muito distinto e, talvez, menos rico do que o vêem aqueles que têm os livros por companhia.


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