quarta-feira, 15 de agosto de 2012

O poder de uma rua

Terminei há pouco de ler o livro El Mundo, de Juan José Millás e gostei bastante. Primeiramente porque é um livro que se lê com um gosto enorme. Ainda que a infância e juventude do autor contenham uma série de episódios bastante complexos, o modo como o narrador os conta e os encadeia uns nos outros é encantadora e viciante.

No centro deste texto está a rua da infância do autor, a "Calle" (assim mesmo, com maiúscula por ser tão única), aquela em que viveu depois da mudança de Valência para Madrid. Uma rua da qual não avistava o mar e onde a sua casa era velha e pequena para uma família tão numerosa quanto a sua. Foi nessa rua que o pequeno Juanjo cresceu e, parece-me que muito em parte pelo pouco que por ali havia, desenvolveu uma imaginação admirável ao ponto de me ter levado a pensar que as histórias que ali conta só podem ser irreais. Note-se que não duvido de que o que ali é narrado seja verdade. Não duvido de que sejam episódios verdadeiros pertencentes a uma vida que, embora tenha parecido pobre de tudo à criança que foi, aparece como riquíssima ao leitor adulto que a observa. Cada infância parece única para quem a viveu e há episódios que só nós podemos assegurar como verdadeiros de tão diferentes que foram. A outros olhos só podem mesmo parecer produtos de uma imaginação imparável. Mas mais: percebemos, pois também fala de si enquanto adulto, o quanto aquela infância o influenciou e influencia ainda. Compreendemos até aquilo que a nossa própria meninice contribuiu para o que hoje somos. Muitos dos episódios contados por Juan José Millás fizeram-me recordar a minha própria infância e procurar perceber quanto do que sou hoje passa pelo que fui e vivi. E ainda, voltando à "Calle", o quanto o nosso meio, a rua em que habitámos, habita em nós anos depois de a termos deixado.

Percebemos que a "Calle" nunca deixou o autor, embora ele a tenha deixado fisicamente. A impressão que fica é a de que acaba sempre por voltar a ela (ou ela a ele, depende da perspectiva). Aquela rua em que a criança vivia e que observava todos os dias está, pelo que vamos percebendo através das suas palavras, nos textos que hoje produz enquanto escritor. As pessoas com quem conviveu, as personagens daquele cenário com o qual parece manter uma relação de amor/ódio nunca o abandonam definitivamente e por isso acabam a habitar os seus contos e romances. As experiências de descoberta que foi vivendo são constantemente evocadas e ainda hoje parecem ser lembradas com um deslumbramento semelhante ao sentido naquela época. A visão da rua numa perspectiva diferente da habitual é, para a criança, um fenómeno que tem de ser repetido de tão mágico que é. Juan José Millás, o adulto, evocará essa descoberta muitas vezes e em todas encontramos a mesma euforia. Como seria ele se nunca tivesse tido tal experiência? E como seríamos todo nós se a nossa rua tivesse sido outra? Se o nosso lugar fosse diferente? Se as pessoas não fossem aquelas com quem nos cruzámos tantas e tantas vezes?

Enfim, este não é livro que tenha enredo para apresentar. É simplesmente (ou não tão simplesmente assim) um homem que conta como foi em menino e que, assim, procura explicar com o passado aquilo que vive e sente no presente. Há episódios cheios de uma magia tão profunda que só uma criança os poderia viver. Contudo, claro, não vos vou contá-los porque julgo que só perderiam força e encanto (ainda que alguns sejam mais incómodos do que encantadores já que não nos deixam indiferentes). Este é um livro que merece ser lido pelo que é, pelo que o compõe, pelo que representa e pelas reflexões que permite. Creio que todos os que nele pegarem vão dar por si a recordar pormenores da sua infância que os marcaram (ainda que não costumem pensar muito neles) e a procurar perceber de que modo ainda hoje são aquilo que no passado viveram. Pensarão nos lugares e nas pessoas, na mãe e no pai, nos amigos, nos vizinhos, nas lojas, nas histórias, nas palavras, e até no céu da infância. Há viagens que vale a pena fazer e esta é uma delas.


Nota: Desafio-vos a não sentirem um carinho particular pela personagem Vitaminas e um ódio secreto pela sua irmã, Maria José. E desafio-vos a não se recordarem da vossa veia exploradora quando lerem o passeio pelo "Bairro dos Mortos". E ainda vos desafio a não recordarem os vossos desesperos infantis quando virem as promessas que o narrador faz a Deus em situação de aperto. Pronto, não revelo mais nada.

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