Ontem acabei de ler o Servidão Humana, de Somerset Maugham, e tenho sobretudo coisas boas para dizer. Foi um livro de que gostei e que se mostrou interessante do início ao fim. Muito do que apreciei neste livro deveu-se ao facto de a personagem principal, Philip, ter uma personalidade muito parecida com a minha (o que nem sempre foi uma descoberta que me deixasse satisfeita, diga-se). A sua veia solitária, a incapacidade para compreender atitudes bondosas que lhe eram dirigidas, o gosto pelos livros e, não raras vezes, o facto de os preferir como companhia em vez de desejar rodear-se de conhecidos foram aspectos que me levaram a crer que, de certa forma, temos personalidades parecidas. Contudo, houve imensos aspectos das sua maneira de ser que me deixaram à beira de um ataque de nervos (ainda que os tenha compreendido quase sempre). A sua relação com a personagem feminina pela qual se apaixona ainda antes de a história chegar a meio é capaz de enlouquecer o mais estóico dos leitores. Momentos houve em que pouco faltou para gritar com o livro. Via o nome da Mildred numa página e começava a abanar a cabeça «Não, não, não!». Foi, julgo, uma das personagens mais irritantes, mais nojentas e mais reles que encontrei numa obra literária. Podia bem juntar-se ao Heathcliff de O Monte dos Vendavais: só se estragava uma casa.
Este Servidão Humana é um livro extremamente bem escrito que evoca, sobretudo, as relações entre as pessoas e o modo como elas podem ser livres e saudáveis ou, por outro lado, verdadeiros grilhões castradores de uma liberdade que se suporia inerente a qualquer ser humano. Nele encontramos, também, as alterações que a convivência com diferentes tipos de personalidades pode gerar e o modo como o crescimento e a chegada à idade adulta acontecem. É fácil perceber que Philip, um miúdo adorado pela mãe, foi aquilo e não outra coisa devido à educação que recebeu, à frieza com que foi acolhido, ao desgosto pela sua pequena diferença (sofre de pé boto) e ao pânico de que a realidade desse problema de saúde se sobrepusesse a tudo o que ele poderia ser. Philip é como é porque foi assim que o mundo foi com ele e o facto de o conhecermos desde pequenino permite-nos ter consciência das mudanças que se operam na sua personalidade e no modo como observa o que o rodeia. É, aparentemente, um rapaz frio, um pouco revoltado, desagradável e bastante calculista. Contudo, isso não nos soa estranho: Philip não podia ser de outra maneira. Julgo que não faria sentido, tendo em conta a vida que teve. Tanto foi um tipo com muito azar como um tipo com muita sorte: depende do momento e do ponto de vista. É também, não podemos esquecer, fruto de uma época que permitia atitudes que hoje não podemos imaginar. O modo como Philip encara a necessidade de escolher um caminho que lhe permita, um dia, deixar de viver do que os pais lhe deixaram e que passe a garantir-lhe o seu sustento é hoje um pouco difícil de compreender. Porém, é motivo para se recordar a questão da liberdade (ou da falta dela) e o modo como somos todos, muitas vezes, conduzidos para aqui ou para ali não porque nos amarrem, mas porque os conselhos, as palavras que nos dirigem e os comentários que nos fazem funcionam tão bem quanto cordas e correntes. No livro Servidão Humana, todos são um bocadinho servos de qualquer coisa, seja ela a religião ou o dinheiro, o amor ou a obsessão, o medo ou a vergonha.
Assim, é uma leitura que sugiro. São setecentas páginas que valem bem a pena, escritas numa prosa fluida (mesmo quando se abordam questões ligadas à arte, à filosofia ou à religião) e fácil de ler. Além disso, e mesmo sendo irritante, vale a pena ler este livro para que fiquem a conhecer a famigerada Mildred: far-vos-á, certamente, agradecer aos céus o facto de nunca terem topado com tamanha víbora.
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