quarta-feira, 8 de agosto de 2012

O balanço dos anjos


Acabei ontem de ler o livro Os Anjos Nus, de A. M. Pires Cabral que tinha começado no Sábado (sim, ainda estou a ler o Hotel Majestic, mas o apelo dos anjos foi mais forte do que eu, mea culpa).

Nesta obra encontramos oito contos, sendo que o último surge dividido em duas partes muito distintas. Todos eles representam uma realidade trasmontana sobretudo de outros tempos. Encontramos as crendices populares, os trabalhos do campo, os namoricos às escondidas, a emigração para França e Luxemburgo no século passado e a não raras vezes consequente "viuvez em vida", o vocabulário tão próprio do norte do país e muitos outros aspectos relacionados com uma realidade que me é querida e que é, por vezes, tão pitoresca que só pode ser um gozo ler sobre ela.

Um dos aspectos que mais aprecio na escrita deste autor é, já o disse aqui quando falei do romance O Cónego, o humor que nos chega tanto pela linguagem quanto pelas próprias situações em que as personagens são colocadas. Os narradores destes contos dão às suas narrativas um toquezinho de comicidade e, não raras vezes, de ironia que, em meu entender, enriquecem muitíssimo o texto. Mais: para quem conhece as gentes do norte do país, a sua fala e os seus hábitos, estes textos tornam-se viciantes. Para mim, que passei muitas vezes férias no norte, tanto na Beira Alta quanto no Minho, este jeito de ser das personagens e este modo de falar evocam gentes que conheci e situações a que assisti. Apesar de representar Trás-os-Montes nos seus textos, creio que A. M. Pires Cabral pinta a cor local de boa parte do norte do país e fá-lo de forma magistral.

De um modo geral, posso dizer que gostei de todos os contos, embora por razões distintas. Dos dois primeiros («Os Anjos Nus» e «Uma cruz na testa, outra nas costas da mão») gostei pelo retrato de uma religiosidade caída em ridículo pelo excesso. Se num deles salta à vista a castidade exacerbada de uma beatona incapaz de enxergar para além dos preceitos da igreja, no outro são postos a nu os engodos de muitas santinhas forjadas apenas para encher os bolsos de uns quantos. Em ambos percebemos o papel central da religião na vida das pessoas das aldeias nortenhas (coisa que se vai perdendo) e os ridículos a que o exagero facilmente leva.

Nos dois contos seguintes, «Acender o cigarro no lampadário da igreja» e «Uma carta ao Menino Jesus», encontrei uma situação menos risível (excepção feita à linguagem usada por algumas personagens no primeiro destes contos) e mais moralista. E digo-o não num mau sentido, mas sim querendo salientar o facto de que estes dois contos (especialmente o «Uma carta ao Menino Jesus») podem conduzir a uma reflexão sobre alguns aspectos aflorados nos textos, nomeadamente os olhares que podemos deitar sobre a religião, sobre a existência (ou não) de Deus.

O terceiro conto, «O salvo-conduto», foi talvez aquele de que menos gostei. Também aqui percebemos que as crenças pesam muito no quotidiano das personagens, ainda que Leonardo (uma das personagens principais) não embarque nelas. As suas explicações para o que sucede são puramente racionais e não há padre nem Deus que as mude. Em boa verdade quase me parece que ele é que mudaria as convicções do padre, mas isso são outro assuntos...

Adorei os dois contos seguintes. Em «Para além das águas» percebemos uma tragédia iminente pela epígrafe que o precede e pelo nome da personagem feminina. É uma história de amores difíceis, testados pela distância e pelas permissões paternas. No fim de contas vence o amor e supera-se a distância. Retorna-se às origens por teimosia. Mas se as origens já não existem como se conheciam, ao que se pode regressar? Os lugares acabam, como dizia Jorge de Sena, e o lugar daquele amor acabou. O que espera, então, Ofélia? O que pode salvar a situação sui generis em que a teimosia do pai da rapariga (com a sua concordância) coloca aquele casal? No fim de contas, nada. Há nomes que carregam o signo da tragédia e o daquela noiva é um deles. Leiam, pois, o conto que vão gostar bastante. Tanto quanto gostarão do conto seguinte, intitulado «Vilar Frio», o nome da aldeia onde ocorre a acção. Nele encontramos o problema da emigração para França na década de sessenta do século passado. Um marido que parte, uma mulher que fica, uns olhos que não vêem, um coração que não sente, uns olhos que vêem, um coração que volta a sentir. Foi assim que vi este conto. Porém a história não se resume a isto. Há a questão da honra que importa lavar, da vergonha, do medo, do casamento que tem de ser para a vida e que não se dissolve nem que a partida do marido transforme a mulher numa, como outra personagem sugere, viúva em vida. Há a questão da lealdade, dos amores contrariados pela vontade paterna, do desejo contido e recalcado porque nunca poderá cumprir-se, do desejo que afinal se cumpre, embora tal não devesse suceder, do despeito e mesquinhez dos seres abjectos que se vingam quando não satisfazem as vontades. E há, por fim, o problema de não se saber viver com uma marca, com a vergonha. E por isso morre-se. Naquele tempo e em outros, essa foi uma realidade.

Este foi o conto de que mais gostei neste livro. Os sentimentos que o atravessam são tão complexos e tão actuais (já que estamos novamente em época de emigração) que é difícil não sentirmos algumas das dores daquela personagem feminina que, primeiramente, nunca quis colocar-se na situação de mulher de um marido ausente. Ela viu-se, não por sua vontade, naquela situação e em outras, caminhando inexoravelmente para um desfecho duro, trágico, mas comum num Portugal de outros tempos (e, infelizmente, também nos de hoje: veja-se a quantidade de mulheres que morrem ou que são maltratadas pelas mãos dos que mais amam). Todo o livro vale bem a pena, mas este conto em particular tocou-me o coração e, por isso, só posso aconselhar-vos a sua leitura. Não se esquecerão tão cedo da personagem Marta.

O último conto deste livro chama-se «O Diário de C*» e divide-se em duas partes. Na primeira é-nos descrito um objecto de grande valor para o narrador. Na segunda assistimos à análise de um diário que permite várias interpretações. Em meu entender, este é o conto em que o autor brilha mais. Ainda que todos os outros estejam incrivelmente bem escritos e sejam retratos fantásticos de um mundo que, feliz ou infelizmente se vai perdendo, creio que é aqui que o autor mostra realmente que merece um lugar de destaque na literatura portuguesa. O modo como domina as palavras, como mistura o sério com o risível, saltando de um para o outro com enorme mestria, o modo como mistura o erudito com o popular, como demonstra um profundo conhecimento dos seres e dos saberes de outros tempos, como constrói uma história com base em excertos de um diário e as conjecturas que estes permitem, enfim, tudo isto mostrou-me que este autor é muito mais do que um singelo pintor de um Portugal interior. Não é que não soubesse já que A. M. Pires Cabral é um autor merecedor de aplausos pela literatura que produz. O que aconteceu foi que o rendilhado deste conto, ao ter uma construção tão diferente da de todos os outros, me surpreendeu precisamente no final do livro. Creio que qualquer crítico literário terá muito para dizer sobre este conto, sobre a sua construção, sobre o narrador (ao fim e ao cabo a personagem mais fascinante de todo o conto), sobre a importância do documento quase descodificado que é este diário. Sentimos o cheirinho do topos literário do manuscrito encontrado, só que em vez de sair dele um Alonso Quijano, sai dele um C* humilde mas de vida cheia e de gozos infindos. Eu, enquanto leitora, posso apenas dizer que me surpreendeu bastante e que gostei muito de o encontrar no final deste livro.

Este é, então, um livro que recomendo. Creio que todos gostarão do uso que o autor faz desta língua lindíssima que temos e das suas variedades nortenhas. Creio que gostarão dos enredos tão simples, porém tão ricos e cativantes que constrói. Creio que todos admirarão os narradores dos vários contos, mestres no contar histórias utilizando todas as palavras de que dispõem, sem filtro nem censura, que assim é que tem de ser. Creio que adorarão as personagens, desde a beata até à pobre mulher vítima da emigração do seu homem. Creio que admirarão a construção do último conto, cuja primeira parte nada revela do que será a segunda. Creio que amarão aquele Portugal castiço de crenças, de encostos, de códigos de honra, de trabalho, de suor e de vida. Sim, porque esta gente que povoa os contos de A. M. Pires Cabral é gente de vida cheia. Quem disse que em Trás-os-Montes nada acontece?...

2 comentários:

  1. Eu bem digo que tenho em si uma leitora 5*****.
    Obrigado pela sua análise que, para além de me dar muito prazer, me ajuda a situar-me enquanto escritor. Peço autorização para transcrever alguns passos que possam ser importantes para mim. E já sabe: quando sair o próximo, lá lhe vou bater à porta...
    A. M. Pires Caral

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    1. Obrigada pelas suas palavras, caro autor. É difícil não gostar dos seus textos, por isso fiz este balanço tão positivo. Todos os contos estão muito bem, mas o «Vilar Frio» está maravilhoso! A "sina" da personagem feminina é muito tocante: criou ali uma situação em que, à primeira vista, a Marta merecia uma recriminação. Porém, olhando para a sua existência com alguma atenção, vemo-la muito mais como vítima de um destino que não escolheu, mas que a escolheu a ela, do que como a autora do seu próprio azar. Mas eis que já estou que não me calo! Eheh...

      Transcreva aquilo de que precisar. Não me importo.

      Cá esperarei o próximo livrinho. :)

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