sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Mentes brilhantes

Quando penso que já nada no mundo dos livros me pode espantar, eis que surge uma ideia supostamente brilhante que me deixa de queixo caído. Ora, uma editora lembrou-se de fazer umas alteraçõezinhas a alguns clássicos de modo a torná-los mais interessantes para um certo tipo de público. Bom, isto só por si não é grave se tivermos em conta que, por exemplo, existem adaptações destes livros para que também as crianças possam conhecer as suas histórias. A questão é que estes senhores querem pegar em clássicos da literatura como Jane Eyre, Orgulho e Preconceito ou Sherlock Holmes e acrescentar-lhes um "picantezinho". Sendo concreta, pretendem acrescentar-lhes as cenas de sexo que os autores nunca lá colocaram. Pretendem, portanto, colocar os pormenores escaldantes que estariam behind the scenes, que nunca poderiam aparecer no texto final. Não querem, segundo a editora, reescrever os clássicos. Querem apenas torná-los apelativos a outro público que não aquele que já lê estas obras pelo que elas são.

Não consigo, por muito que tente, ver a utilidade de tal coisa. Quem queira efectivamente ler estes livros fá-lo-á pelo que eles são e não pelas cenas que muito posteriormente lhe foram acrescentadas. A meu ver isto é o mesmo que tentar passar um atestado de incompetência ao autor e aos eventuais leitores. Ao autor porque não acrescentou aquelas partezinhas calientes que supostamente fazem tanta falta e, por sua vez, aos leitores porque são tão totós que precisam de escritos apócrifos para conseguirem suportar certos clássicos. Repare-se: não falamos de um romancezinho de cordel, mas sim das obras maiores que a literatura já produziu, de textos que pertencem ao cânone há demasiado tempo para que agora alguém considere que precisam de um acrescentozinho para se tornarem interessantes. As adaptações, muitas vezes, já me enervam um pouquinho, porém com jeito entende-se o seu propósito. Mas isto não consigo compreender. Bem sei que o sexo vende, contudo não me parece bem incluí-lo à força onde ele não existe. Não vejo como pôr o detective Sherlock Holmes em cenas íntimas com o Dr. Watson possa acrescentar o que quer que seja de bom à história. Além de que, convenhamos, esta ideia de incluir cenas gays nem sequer tem muito que ver com a história: desde quando as duas personagens demonstraram terem mais do que uma grande amizade a uni-los? Mistérios...

Enfim, há uns anos assistimos à lógica de um professor americano que queria fazer alterações ao clássico de Mark Twain leccionado nas escolas, Huckleberry Finn, por considerar que a palavra niger, sendo hoje um insulto, não deveria figurar num texto lido por crianças e adolescentes. Assim, a solução seria substituí-la por outra menos ofensiva, como slave. Tudo seria muito lindo, não fosse o facto de, no tempo em que Mark Twain escreveu o romance, a palavra niger ser a que se usava comummente e de ter sido o correr do tempo o responsável por hoje ser um grave insulto. Isso dá-nos o direito de alterar um original com muitos anos de vida? Não me parece. Assim como o facto de textos escritos noutras épocas não incluírem aquilo que hoje vende não dever ser razão para que alguém pegue neles e acrescente o que julga que falta. A literatura, embora muitos se esqueçam disso, também é arte e sabendo nós isso teremos de ter em consideração que os clássicos são os exemplos maiores nesse domínio. Fazer o que esta editora pretende é extravagante e não serve, a meu ver, para nada. Quem não lê o Jane Eyre pelo que vale a obra, também não lerá pela expectativa de a imaginar a experimentar todas as posições do Kamasutra com o Mr. Rochester.

Quanto tempo faltará até que alguém se lembre de que uma Aldonza Lorenzo feia e a cheirar a cebola não vende e que o melhor é inventar uma Dulcineia del Toboso capaz de figurar nas páginas centrais das revistas masculinas, sempre preparada para arrancar a armadura do D. Quixote com os dentes? Mas deixem-me cá estar calada para não dar ideias...

10 comentários:

  1. Isso não faz qualquer sentido! E violar obra feita!

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  2. Descobriram que o sexo vende com o 50 shades of grey. --'

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    1. Então que escrevam livros cheios de sexo, mas deixem os clássicos em paz. Eu vejo cada coisa...

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  3. Olá! ;)
    Ai ai como é possível os editores estarem tão desesperados para ganharem dinheiro, porque essa é definitivamente uma operação financeira(Será que já não existem editores à antiga?). não entendo o interesse nesse tipo de livros se há Sade, Miller, Anais, Lawrence entre tantos outros. Não compreendo a moda. Sim o sexo vende, mas porquê o interesse repentino (basta ver o topo das livrarias-não entendo o fenómeno).

    Em relação ao caso Twain- achei-o ainda mais grave, com implicações perigosas. Para além de falarmos de Arte, falamos também de consciência colectiva, de história e de uma tentativa de passar uma borracha num dos momentos infelizes da história da humanidade.

    Já agora:) num comentário a um post anterior quando falou do uso de repetição por parte de alguns autores é verdade às vezes não era necessário (senti mesmo isso em relação ao "Servidão") E depois lá me pus a pensar nessa questão (as vantagens da blogosfera:)) e lembrei-me de um escritor que faz o uso "dessa ferramenta" na perfeição,o Thomas Bernard (pelo menos no que li).

    No meio deste caos, Boa leitura:) (eu vou debruçar-me sobre "Los Pasos Perdidos" do Carpentier)

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    1. Este mexer no que está perfeito só pode partir de quem não percebe nada de livros, o que é estranho, vindo de uma editora. Estranho e assustador porque se uma editora não percebe que isto não se faz, então vamos mesmo mal.

      Continuo a gostar do "Servidão Humana". Já houve ali uma ou duas páginas em que bocejei, mas felizmente não foi nada de grave e momentos menos interessantes ou conseguidos também são normais num romance. Por agora tenho o Philip a estudar arte em Paris e posso dizer que a personalidade dele me irrita. Vejo nele alguns traços que também tenho (o que me assusta!), mas também uma presunção, mania de superioridade (provavelmente para tentar superar o problema físico que o acompanha) e uma frieza muito enervantes. Mas, bem, as personagens perfeitinhas e isentas de mácula de outras obras, como as do Romantismo, também me irritam por isso não há nada a fazer. :S

      Obrigada e boas leituras para si também. :)

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    2. A propósito, encontrei-me agora com o seu blogue. Parece-me interessante! Vou continuar a segui-lo. :)

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  4. Olá!:D
    Generalizando (provavelmente porque é 2ªf :p):
    1- os editores não lêem o que publicam (do género este livro não é intelectualmente estimulante), mas querem dá-lo a ler (o meu romantismo ligado ao livro tem tantos problemas com isto)
    2- os livreiros (vá 80%- e o contrato diz caixeiro de 3ª) pouco lêem. Basta deambular pelas livrarias mais comerciais e ver achados de arrumação- por ex. o Sr Jorge Luis Borges na literatura portuguesa, há casos mais flagrantes, mas a memória bloqueou-os. Sempre idealizei aquele livreiro mais velho a transmitir conhecimento-qual quê:(
    enfim estes são os meus preconceitos-mas também há excepções a tudo o que disse, e essas excepções valem por si:)

    Já o blog, ai, é um auxiliar de memória, e uma tentativa de organização de pensamento. Se houver possibilidade de ser um espaço de troca ideias fantástico:)

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    1. Quando trabalhei numa livraria (creio que o único trabalho para o qual acho que tinha inegável talento: ainda sonho vir a ser uma livreira como aqueles que os amantes de livros tanto adoram recordar), também me deparei com exemplos semelhantes ao que conta. E lembro-me, ainda, de uma professora de Literatura da Faculdade de Letras contar que, numa livraria de Lisboa, o livro O Problema da Habitação, de Ruy Bello, estava arrumado na secção de Arquitectura… Pois.

      Bem sei que isto dos livros é um negócio e que interessa vender, nem que seja a maior porcaria. Acredito que vendam primeiro e pensem depois no que estão a vender (e duvido de que o façam). Mais do que nunca, o mundo dos livros passou a ser um negócio. Os bibliófilos podem desejar uma coisa completamente diferente, mas a realidade resume-se a números. Basta pensarmos na Feira do Livro, onde cada vez encontramos menos pavilhões de editoras independentes e cada vez mais “hipermercados” de livros de grandes grupos editoriais. Para mim isto empobrece a Feira e, ao ir aniquilando os poucos que ainda vão dando atenção aos livros e que não os fazem a granel, também vai deixando mais feio o mercado livreiro. Mas, enfim, só em cabeças tolas como a minha é que ele nasceu para ser bonito: na da maioria das pessoas serve para fazer dinheiro, como tudo o que existe.

      Ainda assim, se as editoras não querem os clássicos nos seus catálogos porque, enfim, não vendem, tudo bem. Mas ao menos não os estraguem ao modificá-los ao gosto de um público supostamente viciado em sexo. Se algum dos autores cujos livros serão alterados por estas editoras quisessem estas cenas nos seus livros, tê-las-iam escrito e pronto. Cada um lê o que quer e gosta, mas já se escreveu tanto, já se publicou tanta coisa que custa-me a perceber esta ideia peregrina de alterar o que está perfeito só porque não agrada a todos. Parece que querem dar a entender que o defeito está no clássico e não em quem o lê… Que coisa louca!

      Ah, isto dos blogues é um vício! Poder falar do que queremos e do que mais gostamos e ainda trocar umas ideias sobre isso é realmente fantástico. : )

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