terça-feira, 17 de janeiro de 2017

A reportagem e os manuais escolares

Tenho andado a morder-me toda para não comentar a reportagem que passou ontem e no Domingo na TVI sobre os manuais escolares. Mordo-me porque não quero perder tempo a pensar no que vi para não me chatear. É que aquilo chateou-me a sério e é mais uma coisa a levar-me a pensar que, de facto, ser professor em Portugal não vale mesmo nada a pena.

A reportagem abordou o tema dos manuais escolares pegando no seu preço, no enorme encargo que representam para as famílias, na promoção dos manuais... Enfim, pegou em vários aspectos, se bem que o que mais me chocou foi quando basicamente se insinuou que os manuais eram caros por culpa dos professores. Não só porque a quantidade de materiais que as editoras produzem para auxiliar os docentes nas suas aulas podem encarecer os livros, mas também porque as ofertas de exemplares que anualmente as editoras fazem aos docentes também lhe aumentam o preço. Foi ainda dado a entender que os encontros promovidos pelas editoras em Abril e Maio, geralmente em hotéis, com o objectivo de apresentar os projectos aos docentes também encarecem os manuais. Ou seja, e pensando de forma linear: a culpa de os livros escolares serem caros é nossa, professores. Mais: somos nós que escolhemos o manual a adoptar, por isso por que não escolhemos os mais baratos? Melhor ainda: por que não deixamos os alunos usarem manuais sem metas nas nossas salas de aula, poupando assim uns trocos aos pais? Todas estas questões foram levantadas e algumas ofenderam-me mesmo e espero que tenham ofendido outros docentes.

Vamos lá ver: eu sou a primeira a dizer que os manuais escolares são vergonhosamente caros. Num ensino que, de acordo com a Constituição, se quer tendencialmente gratuito, pagar duzentos ou trezentos euros todos os anos e por filho é absolutamente impensável. Acho, sinceramente, que algo devia ser feito para que um manual escolar não custasse quase (ou mais de) três dezenas de euros. Mas a responsabilidade pelos preços dos manuais não pode ser atribuída aos professores, por muito que apeteça culpá-los pelos materiais que as editoras criam para eles; por muito que se diga que são uns trogloditas por não aceitarem livros anteriores às metas (e assim o reaproveitamento entre irmãos, por exemplo); por muito que apeteça criticar os encontros em hotéis fantásticos onde equipas que se matam a trabalhar e a percorrer o continente e ilhas apresentam os frutos do seu trabalho para que depois os professores os escolham ou não. Por muito que apeteça, a culpa não é nossa. Não sei de quem é, mas não é nossa. 

Em primeiro lugar, senti uma enorme revolta quando a autora da reportagem abordou a questão dos muitos materiais feitos apenas para os docentes e de como aqueles podem encarecer o produto final adquirido pelos encarregados de educação. Como muito bem alguém respondeu, a profissão docente é trabalhosa e aqueles materiais vão ajudar os professores a não passarem o seu tempo livre a preparar materiais completamente novos e de raiz. Estas pessoas que fazem estas perguntas de profundo senso comum têm ideia de quanto tempo, por exemplo, demora a preparar o enunciado de um teste? E de quantas vezes temos de fazer mais do que um enunciado por turma porque há alunos com dislexia, com necessidades educativas especiais que têm adequações no processo de avaliação? Têm noção de que, muitas vezes, somos docentes de várias turmas de diferentes níveis (como eu fui sempre nos últimos anos, chegando a ter uma turma de cada nível desde o quinto até ao nono ano) e de que os materiais criados para uma turma são-no exclusivamente para ela e não servem para outra? Têm noção de que corrigir testes, fazer grelhas de avaliação, corrigir trabalhos, planificar aulas já toma muito do nosso tempo livre (não estou a falar de horas de trabalho: estou a falar de tempo livre, quando devíamos estar com as nossas famílias e a descansar um pouco)? Claro que não têm. Apenas falam de forma populista: para que recebem os professores tantas fichas, tantos materiais se depois alguém, que não eles, tem de pagar a factura? Sim, os livros são caros, mas não vão por aí.

Depois, por muito obscuro que pareça o negócio dos manuais escolares, de certeza que não vão ser os professores a torná-lo mais claro nem a regulamentá-lo. A quem ache estranho os professores receberem amostras dos manuais eu pergunto: compraram o vosso vestido de noiva sem o experimentarem? Não? E só o usam um dia! Um professor trabalha com o manual escolar adoptado durante (se tudo correr bem) seis anos. Se não o virmos antes com atenção, como podemos fazer uma escolha consciente? Acho que sobre isto nem vale a pena dizer mais nada.

Sobre as apresentações em hotéis... Meus caros, são locais geralmente de fácil acesso, com salas de conferências onde existem muitos lugares disponíveis e materiais audiovisuais que facilitam as apresentações. Se há café e bolinhos não me interessa nada porque nunca os provo. Se me dão blocos de notas e esferográficas, ainda bem, pois gosto de tirar algumas notas a respeito do que ouço. Eu preferir, até preferia que viessem apresentar os projectos cá a casa, mas dá-me a ideia de que isso é que iria encarecer os livrinhos.

Relativamente à acusação de que muitos professores não deixam utilizar livros anteriores às Metas Curriculares impedindo, assim, a reutilização de manuais escolares entre irmãos, por exemplo, j’accuse, como diria o Zola: eu não deixo. Porquê? Porque se há disciplinas em que as Metas alteraram poucas coisas e os manuais até estão parecidos, no caso do Português há textos inteiros que desapareceram para dar lugar a outros, há matérias gramaticais que desapareceram de um nível para só entrarem no nível seguinte, há abordagens que passaram a fazer-se e que antes quase não se faziam. Com uma rápida vista de olhos ao manual pode parecer tudo igual, mas não é. Lidar com livros diferentes em turmas com trinta alunos serve para enlouquecer alunos e professores. O docente pede para abrirem numa página, uns abrem e encontram o texto pedido, os outros abrem e encontram outro texto. "E agora, professora?”, “Olha, Maria, senta-se ao lado da Joana e o Pedro vai para ao pé da Laura que por sua vez vai pôr o livro na diagonal de maneira a que o João e a Inês também consigam acompanhar.”. Isto parece-vos normal? Parece-vos boa prática pedagógica? Imaginem ao vivo e a cores a loucura que é.

Por fim, quanto à dúvida que a reportagem lançou sobre o facto de os professores não escolherem os livros mais baratos, deixem-me dizer-vos umas coisinhas. A própria reportagem concluiu que eles custam sempre o preço máximo, logo não há cá livrinhos mais baratos. Além disso, e isto é importante, quando recebo amostras, muitas delas nem trazem o preço marcado. Dizem apenas “Oferta ao professor. Amostra não comercializável.”, portanto eu não faço ideia de quanto custa o livro quando estou a analisá-lo e a decidir se é com aquele que quero trabalhar ou não. Escolho de acordo com o grafismo, a estrutura e o nível de exigência. Não vou a correr pesquisar o preço. Deduzo que serão muito caros a julgar pela aparência, pela quantidade de materiais que os acompanham (e que dão trabalho a muita gente) e pelo facto de serem sempre caros (já o eram quando eu ainda estudava). Mas não escolho com base no preço. Assim como também não escolho por me oferecerem uma caneta ou um bloco, por me darem um livro de leitura que vai ser estudado na sala de aula e que faz parte do programa. Se assim fosse, só escolhia uma editora e não era isso que fazia quando estava no activo. Novamente: escolhia com base na qualidade e com aquilo que me parecia essencial num manual. Nunca nenhuma oferta me fez alterar a escolha. Não posso falar por todos os docentes, mas duvido que a maioria se venda por canetas e blocos de notas.

Os livros são caros, sim. Talvez fossem mais baratos se se cortasse nas corzinhas, nas imagens, nos recursos audiovisuais tão queridos dos alunos e dos pais hoje em dia (eu, enquanto professora, detestava-os, imagine-se), enfim, se se cortassem os extras todos. Percebo isso tudo. Só não percebo que tantas vezes na mesma reportagem se tente virar o problema para o lado do costume, mesmo quando desta vez não é nada connosco. Senti-me acossada, como se cometesse um crime ao querer o melhor no meu trabalho, como se fosse um verdadeiro troll por querer evitar perdas de tempo durante as aulas que inevitavelmente acontecem quando dentro da mesma turma há diferentes versões de um livro. Senti que mais uma vez a culpa era dos mesmos e que para nós, professores, já só há uma saída para não sermos vistos como “criminosos”: arrepiar caminho, procurar outro futuro.

8 comentários:

  1. Pergunta nada a ver com o tema... Tens visto o Ministério do Tempo?

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Vi os dois primeiros episódios, não vi ainda o desta semana. Não tem comparação com o original espanhol, mas dá para entreter. O problema é que é tão copiado que dói. Só mudam as épocas em que os problemas aparecem ou os heróis porque a nossa história não é igual à espanhola (por exemplo, em vez do Lope de Vega a entrar no barco errado, adivinha lá que autor é que estava destinado a morrer no mar se não fosse o auxílio da patrulha...). Às vezes soa muito a falso, mas enfim... Ando a poupar os episódios da segunda temporada espanhola por isso tenho de aguentar-me.

      Eliminar
  2. Eu já vi os três, por isso estava a perguntar. Tenho exactamente a mm sensação, acho que não é tão mau como estava à espera, mas ter visto primeiro a espanhola torna tudo mais exigente. É tudo muito "copiado" mas às vezes tb tiram detalhes que parecem importantes. Mas enfim, vai se vendo :)

    ResponderEliminar
  3. Não acho, nem nunca achei, que a culpa dos manuais serem caros seja dos professores. Assim como não acho que os livros no geral sejam caros por causa dos seus leitores. Simplesmente, as editoras gostam de ser pagas, e bem pagas. Os manuais não são mais caros porque não é possível, porque se fosse, seriam ainda mais escandalosamente caros. É o interesse comercial que está em causa, como sempre.

    Por acaso, não sabia que os professores faziam enunciados diferentes/adaptados para os alunos com alguma "dificuldade" (não sei se devo chamar assim). "No meu tempo não era assim", mas provavelmente, "no meu tempo" é que estava mal.
    ****

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Talvez noutros tempos não fosse assim, mas agora é obrigatório por lei. Se o aluno tiver diagnosticado com algum tipo de necessidade educativa especial, se tiver dislexia, disortografia ou outras e se tiver no seu processo um relatório que o ateste e afirme que precisa de adequações na avaliação, somos obrigados a fazê-las. Cheguei a fazer quatro enunciados diferentes por turma. Ninguém imagina quão extenuante isto é. Este tempo en que fazemos os enunciados dos testes é tempo nosso porque as horas de trabalho nas escolas não chegam para imaginar os enunciados, fazê-los, cotá-los e ainda fazer os cenários de resposta. Fazer isto quatro vezes numa única turma é horrível. E se mesmo com adequações o aluno tem negativa, a culpa é SEMPRE do professor porque não adequou bem o teste. Chegaram a dizer-me que para um aluno do sétimo ano eu, professora de Português, devia pôr um texto, no máximo, com quatro linhas. Ironicamente perguntei como faria no nono ano, quando o aluno estudasse Os Lusíadas, que está escrito em oitavas... Felizmente, despedi-me antes de o menino chegar ao nono e de eu enlouquecer com isto. É muito difícil ser professor hoje em dia. Este tipo de reportagens que, não sendo directamente sobre nós, parece conduzir-se petigosamente no sentido de nos acusar de mais qualquer coisa é só mais uma para provar que esta profissão é terrível.

      Eliminar
    2. Não fazia ideia que era obrigatório, mas tem a sua lógica, porque os miúdos não têm culpa de ter esses "doenças". Eu tinha e ninguém queria saber. Fazia os testes como os outros e se tirasse má nota, a culpa era minha (mesmo quando era realmente do professor, mas isso eram situações pontuais em que o professor era realmente mau).

      Quatro linhas de texto para um miúdo do oitavo? Isso é absurdo. Há realmente miúdos com muitas dificuldades, mas outros que são apalermados pelos paisinhos que os vêm como coitadinhos.

      Reportagens destas tinham de ser da TVI. As da SIC são muito melhor preparadas, bem pesquisadas e objectivas. Já por isso só vejo a TVI pelo Max e pelo programa de imitações de sábado à noite - e só quando me lembro.

      Eliminar
  4. Muitas reportagens são feitas quase em regime de "ataque" e não há preocupação de mostrar uma imagem isenta, como deveria ser obrigação do jornalismo. Um dos meus melhores amigos é professor e ouvi muitas histórias semelhantes ao que contaste, percebo perfeitamente. Beijinhos

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Esta reportagem foi exemplo disso. A quantidade de vezes que a jornalista perguntava pelos materiais feitos para os professores, pelas apresentações de projectos feitas aos professores, pelos exemplares de amostra enviados aos professores só faz pensar que se quer passar a imagem do professor que se deixa corromper pelas editoras e que não faz nenhum porque estas já lhe enviam tudo feito. É de uma sacanice sem limites. Ainda bem que há quem me perceba. :) Beijinhos.

      Eliminar