sábado, 7 de janeiro de 2017

Paradoxalmente

Na crónica de Miguel Sousa Tavares publicada no semanário Expresso da semana passada, o autor falava das redes sociais e de como elas e as falsas notícias que propagam à velocidade da luz estão a alterar o nosso conhecimento, o modo como (não) nos informamos.

Para o efeito refere as constantes notícias que vieram a público sobre Hillary Clinton por alturas da campanha eleitoral. Boa parte delas eram falsas, mas foram suficientes para minar a opinião de muitos “consumidores” de redes sociais que, por azar, também eram eleitores. A partir disso, Miguel Sousa Tavares reflecte sobre como tão facilmente comemos as mentiras propagadas pelas redes sociais, transformando-as em verdades simplesmente porque lá estão. Nós vamos acabando por habituar-nos a devorar as notícias que, por exemplo, nos aparecem no mural do Facebook e raras vezes vamos verificar se são verdadeiras ou não. Refere ainda o autor da crónica que paradoxalmente, até os meios de comunicação como as televisões acabam por servir-se do que aparece no Facebook para gerar notícias, servindo-se para isso da expressão “viral” como forma de justificar o surgimento de tal notícia nos seus blocos informativos. O paradoxo está, refere Sousa Tavares, precisamente no facto de serem as redes sociais e as muitas notícias (falsas e verdadeiras) que veiculam as responsáveis pela cada vez mais significativa quebra nas vendas de jornais, por exemplo. Muitas pessoas que querem informar-se não vêem os noticiários nem compram jornais: consultam o Facebook. Pelo meio acabam por engolir o verdadeiro e o falso, o bom e o mau. Quem quer outro tipo de informação recorre a outras fontes, vai mais além do imediato que nos chega pelas redes sociais. Mas estes últimos, infelizmente, são poucos e vão sendo cada vez menos.

Nunca tivemos tanto acesso à informação e também nunca tivemos de ter tanto cuidado com ela. Não só pela quantidade de informação incorrecta que por aí circula, mas ainda pela falsa sensação de conhecimento que tantas notícias, textos expositivos ou outros provocam. Disse-se em tempos que um dia os professores deixariam de fazer falta, já que o conhecimento estaria acessível a todos e a mediação de um docente deixaria de ser necessária. Afinal verifica-se que, embora o conhecimento esteja por aí, é preciso que exista alguém capaz de ensinar a separar o trigo do joio (muitas vezes sem grande sucesso, tão grande é a devoção pelo que é mau e a pouca vontade crítica para questionar o que nos chega com enorme facilidade), e, por isso, os professores continuam a assumir o seu lugar nas salas de aula. No entanto, para muitos que já abandonaram os bancos da escola ou que não fizeram a aprendizagem que deviam ter feito enquanto por lá andaram, tudo o que vem à rede é peixe e se na internet diz que fulano fez isto é porque fez e assim podemos espalhar a informação pelos nossos conhecidos. Se no Facebook me aparece um link para uma notícia de uma página qualquer sobre o que sicrano fez, posso sempre partilhá-lo com os meus amigos. Seja verdade ou não. Posso desatar a comentar qualquer coisa que nem sequer é bem assim. Posso nem me dar ao trabalho de verificar se a fonte é fidedigna ou se é mais um distribuidor de petas. Enfim, posso fazer o que quiser com a informação que me chega e isso é francamente perigoso.

Há uns anos li um artigo na New Yorker que mostrava um dos lados ocultos da internet e que sempre gostei de partilhar com os meus alunos. Nesse artigo pediam-nos que imaginássemos uma situação: separadas por uma cortina estão duas pessoas. Uma vem do século XIX e faz várias perguntas à que está do outro lado da cortina. Pergunta sobre Música, sobre Literatura, sobre História, sobre Ciência... E a tudo o outro responde. O homem do século XIX, que só sabe que do outro lado está alguém do século XXI, fica estupefacto com as respostas correctas e a acreditar que neste nosso século somos todos uns génios. O que ele não pode imaginar é que do outro lado da cortina está alguém com um telemóvel com acesso à internet, onde buscava imediatamente a resposta a qualquer pergunta que lhe fosse feita. A questão que nos era colocada era: quem sabe mais? O homem do século XIX ou o do século XXI? O artigo atirava uma resposta: quem provavelmente saberá mais é o homem do século XIX porque o seu conhecimento foi solidamente adquirido e consolidado através do ensino, das leituras que fez, das peças a que assistiu, das viagens que fez... Já o do homem do século XXI é um falso conhecimento: ele descobre as respostas automaticamente recorrendo ao telemóvel e a ferramentas com as quais estamos hoje familiarizados. Mas perguntemos-lhe na próxima semana o que aprendeu hoje nos sites que consultou e provavelmente ouvi-lo-emos gaguejar. Isto porque hoje temos a informação na palma da mão, mas isso não significa que ela nos fique na memória para uso futuro. Estamos expostos a tanto conhecimento que acabamos por não reter quase nada. Já no século XIX, fruto também do tipo de ensino praticado, a memória era fundamental e o conhecimento não estava em todas as esquinas, pelo que acabava por ser mais escasso, mas também por ficar mais tempo connosco. Paradoxal, não? Quanto mais podemos saber, menos sabemos de facto. Recorda-me a “síndrome das fotocópias”, de que falou Umberto Eco: muitos estudantes tiram fotocópias e depois não as lêem. Sentem que já estão preparados para o teste porque já têm as fotocópias, mas depois adiam e adiam a sua leitura.

Ou seja: a internet e, concretamente, as redes sociais condicionam o nosso conhecimento e, em consequência, as nossas opiniões, o que é manifestamente perigoso (especialmente quando alguém se quer aproveitar disso, como parece que aconteceu nos Estados Unidos com a Hillary Clinton). Vimos o resultado disso nas eleições norte-americanas e temo que cada vez mais o vejamos. O melhor dos mundos seria aquele em que as pessoas não se ficassem pela internet e consagrassem tempo a buscar informação em jornais e revistas de qualidade, bem como nos livros que sempre cá estiveram, estão e estarão para nos ensinar e ajudar a pensar. Mas a cultura do imediato leva a que cada vez mais se ignore o prazer da procura pela informação apenas porque é muito mais rápido ir ao Facebook e ler alguma coisa sobre determinado assunto, colocar um “like”, partilhar a página e pronto. Nunca o mundo nos deu tanto e, paradoxalmente, nunca nos apoucámos tanto como nos dias que correm.

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