terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Quando tudo falta ou o poder de um livro

«No campo de concentração de Bergen-Belsen, os prisioneiros circulavam entre si um exemplar d’A Montanha Mágica de Thomas Mann. Um rapaz lembrava-se do período que lhe era permitido ter o livro nas mãos como “um dos pontos altos do dia, quando alguém mo passava. Ia para um canto para estar em paz e, depois, tinha uma hora para o ler”. Outra vítima polaca muito jovem, recordando os dias de medo e desalento, teve a dizer o seguinte: “O livro era o meu melhor amigo, nunca me traía, reconfortava-me quando eu desesperava, dizia-me que eu não estava sozinho.”»

Alberto Manguel in A Biblioteca à Noite, Tinta da China (p. 208)

Quando tudo falta, quando tudo falha, quando o mundo parece expulsar-nos de cima dos seus ombros, ainda sobram os livros para nos reconfortar. Ao ler hoje este excerto não pude deixar de ter pena de todos os que hoje sabem e podem ler, mas que escolhem não o fazer. Têm milhares de livros por perto, uma possibilidade imensa de aceder a novos textos, contudo dizem com gáudio que ler é “uma seca” e passam uma existência inteira sem lerem um único livro. As vítimas do campo de concentração referidas no excerto mostram um reconhecimento imenso pelo livro que, nem que fosse por uma hora, os levava para mais longe do inferno vivido. Provavelmente, dariam tudo para que esse reconforto permitido pela leitura durasse mais do que sessenta minutos; provavelmente adorariam ter acesso a outros livros e, sobretudo, provavelmente dariam tudo para estarem no sossego do lar com aquele ou outro livro. Não lhes foi possível nada disso. Mas no meio da maior das adversidades, reconheceram que o tempo passado com A Montanha Mágica era um curto tempo de paz em plena guerra. É este o poder dos livros e preocupa-me que sejam tantos os que hoje escolhem não ler, passando uma vida inteira sem sonhar o seja esta sensação de paz mesmo quando tudo arde; esta amizade e confiança transmitidas por um volume de papel passado de mão em mão por tempo limitado durante dias de verdadeiro terror. 


Nota: A imagem saiu daqui.

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