segunda-feira, 5 de abril de 2021

Os Despojos do Dia - o balanço

Wook.pt - Os Despojos do Dia


Ontem fechei este livro e pensei que já não lia um livro tão bom há algum tempo. A seguir, fui à Wook encomendar outro do mesmo autor porque queria continuar. É tão bom encontrar livros assim, que nos abanam, nos deixam a ansiar por mais. E este, na sua simplicidade, é de uma beleza comovente. Além de que levanta algumas questões que sem dúvida ficam a flutuar dentro de nós. É isso o que se quer: livros que nos acrescentem alguma coisa, que nos façam pensar em coisas que até podem parecer óbvias, mas com as quais tendemos a não perder muito tempo.


O protagonista deste livro é Mr. Stevens, um mordomo britânico que trabalhou durante muitos anos para um aristocrata inglês, dono de uma daquelas propriedades enormes, onde decorrem festas e outros encontros entre gente importante. Porém, tudo o que sabemos sobre os tempos de «Sua Senhoria» chega-nos através de reminiscências de Mr. Stevens, o fiel mordomo. Na realidade, o presente da narrativa é um tempo posterior ao da morte deste aristocrata, e o mordomo, embora mantendo o seu trabalho na mesma casa, tem agora um novo patrão a quem servir: um americano de gestos e carácter bem diferentes. Depois de duas guerras mundiais, a realidade é outra e o tempo das casas e das famílias ao estilo de Downton Abbey passou. Mr. Stevens reconhece agora no seu trabalho erros impensáveis nos tempos áureos do serviço prestado a «Sua Senhoria». Mas as exigências são outras e é com saudade que recorda o espírito de missão com que enfrentou cada um dos dias enquanto mordomo de uma casa tão distinta como Darlington Hall.


O novo patrão vai ausentar-se e propõe a Mr. Stevens que goze uns dias de férias. Para isso até lhe disponibiliza o seu Ford e compromete-se a custear os gastos com combustível. A princípio, Mr. Stevens não vê qualquer necessidade de abandonar a casa que é, no fundo, a sua vida, no entanto, a bem do futuro do serviço, resolve aceitar a proposta: usará a viagem para visitar uma antiga governanta de Darlington Hall que, ao que parece, se separou e deseja voltar a trabalhar na propriedade. Ainda que as receções sejam hoje poucas e a equipa de serviçais seja muito menor do que nos tempos de glória, talvez os erros de Mr. Stevens deixem de acontecer se conseguir aquela ajuda extra, que ainda por cima ele conhece tão bem. E assim parte em viagem pelas aldeias e vilas britânicas, vendo paisagens que nunca viu, conhecendo pessoas tão diferentes de si próprio, e aproveitando o tempo para refletir sobre o que foi a vida em Darlington Hall antes de «Sua Senhoria» cair em desgraça.


Se viram Downton Abbey, recordar-se-ão de Mr. Carson, o mordomo que nunca saía desse papel, que era o exemplo acabado da lealdade, que dedicava cada segundo da sua vida ao serviço da casa para que os seus senhores e a propriedade brilhassem e mantivessem a melhor reputação possível. Pois bem, Mr. Stevens é um desses mordomos à antiga, mas durante esta viagem, devido ao tempo que passará sozinho e afastado dos seus afazeres habituais, vai pensar e vai dar a conhecer as suas memórias e o modo como foi entendendo certos acontecimentos vividos em Darlington Hall. Aquilo a que o leitor assiste então é de uma profunda tristeza: a inocência deste homem e a sua devoção ao trabalho impediram-no de ler a real gravidade do que se passava à sua volta. A lealdade a uma pessoa impediu-o de compreender o enorme erro que «Sua Senhoria» estava a cometer. E pior: a devoção cega à profissão impediu-o de viver a sua própria vida, de cometer os próprios erros, de amar quando teve a oportunidade, de se despedir do pai quando o momento chegou... Mr. Stevens era o homem que estava sempre lá, que via e ouvia tudo - das reuniões entre figuras políticas importantes até aos desabafos do patrão -, mas que não entendeu nada. E, claro, quando lhe chega um lampejo do que perdeu, tem um momento de fraqueza. Porém, a dignidade que se exige a um bom mordomo não deixa que dure muito. Rapidamente reúne os cacos e torna a pensar em como poderá melhorar enquanto mordomo de um cavalheiro americano com usos, costumes e gracejos diferentes daquilo a que estava habituado.


O livro é fenomenal. A escrita é belíssima e o jogo entre o que o narrador inocentemente conta e o que o leitor interpreta, à luz de conhecimentos históricos que tem, mas também enquanto ser humano capaz de perceber o desajuste em muitas das atitudes deste mordomo, é feito de forma magistral. Estou ansiosa por ler outros livros de Kazuo Ishiguro,  Nobel de Literatura de 2017. Para já vem a caminho Um Artista do Mundo Flutuante, mas não vou descansar enquanto não os tiver a todos. Leiam este livro. Vão gostar muito.

2 comentários:

  1. Fiquei com vontade de ler, mas tenho tantos em lista de espera. Agora ando numa de autores portugueses

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