segunda-feira, 23 de abril de 2018

Nos sapatos dos outros


Durante os quarenta dias do internamento do meu pai e tendo ido ao hospital vê-lo quase todos os dias, encontrei muitas pessoas a viverem dramas tão ou mais difíceis que aquele que eu e a minha família vivíamos. Não sei se o mesmo acontece nos outros serviços dos hospitais, mas fiquei com a sensação de que quando se passa tanto tempo num serviço tão delicado quanto o dos transplantes, tornamo-nos todos muito próximos e as histórias vão correndo ao ritmo da aflição de cada novo dia. 

Quando um familiar adoece e passa a precisar de um transplante, vivemos tudo de forma muito solitária. A pessoa doente está lá em casa e facilmente nos esquecemos de que como ele há muitos outros. Queremos que o seu nome seja o primeiro na lista de espera para a recepção de um órgão compatível e nem pensamos em mais nada. Depois, quando este aparece e passamos a viver dia após dia a realidade da convalescença em ambiente hospitalar, olhamos em volta e percebemos que há tantos, mas tantos pacientes que vivem o mesmo que o nosso familiar. Compreendemos que há tantas outras famílias que rezaram como nós, que esperaram como nós, que viram apenas a situação do seu familiar tal como nós só olhámos para a do nosso. Nesse momento faz-se luz e nasce em todos os que vivemos aquela experiência qualquer coisa absolutamente nova que só se compreende verdadeiramente quando é sentida na pele. É uma empatia desconhecida até então. Posso ter passado a minha vida toda a achar que sentia empatia pelos outros ou mesmo a tentar transmitir aos meus alunos o que é isso de ser empático para com o próximo, contudo, a verdade é que mesmo eu só passei a perceber a enorme dimensão dessa identificação com outras pessoas depois de ver o meu pai a lutar pela vida e de olhar em volta, vendo tantos outros fazendo o mesmo. 

Aprendemos a parar nas salas de espera, nos corredores, nos elevadores, à porta das casas de banho para perguntar a quem vamos sistematicamente encontrando por ali como está o seu ente querido. E habituamo-nos a alegrar-nos com as melhorias de uns e a entristecer com os retrocessos nos estados de outros. Saímos do quarto onde está o nosso famíliar porque vão fazer-lhe um RX ou por outras mil razões possíveis e, enquanto esperamos na sala de espera para podermos voltar para junto dele, vamos sabendo junto dos que como nós aguardam como vão decorrendo as outras recuperações. Mais: à medida que vamos conhecendo outros testemunhos vamos também tomando consciência de que percebemos cada vez melhor aquelas pessoas porque agora estamos no seu lugar, calçamos os seus sapatos e eles calçam os nossos. É talvez a altura em que melhor podemos dizer que percebemos aquilo por que os outros estão a passar. Podemos mesmo afirmá-lo com certeza porque estamos a viver outro tanto e, por isso, sempre que desejamos «as melhoras» de alguém, fazemo-lo de coração porque queremos o mesmo para o nosso familiar.

Ouvi inúmeras histórias enquanto passei pela sala de espera dos Cuidados Intensivos e enquanto passei pelos diferentes quartos da Unidade de Transplante em que esteve o meu pai. Conheci uma rapariga, que aparentava ter a minha idade ou pouco menos, cujo pai estava doente há vários anos com uma doença oncológica. Cresceu com a doença do pai e, subitamente, viu-se ali porque ele viveu uma situação aguda muito complicada que gerou uma enorme hemorragia e muitas consequências dificílimas. Durante vários dias vi-a a ela, à mãe e à tia revezarem-se para visitarem o seu familiar. Começámos a perguntar uma à outra pelos respectivos pais. Cruzávamo-nos nas entradas e, enquanto desinfectávamos as mãos, fazíamos o ponto de situação. Quando o pai dela melhorou e foi transferido para outro serviço, tendo o meu permanecido nos Cuidados Intensivos, senti-me feliz por ela porque vivi nos seus sapatos durante algum tempo. Porém, também me senti mais sozinha porque era menos uma voz empática que iria ouvir (e foi de todas aquela com que melhor me identifiquei). Mas depois apareceram outras pessoas, outras histórias, outras dores e voltámos a ligar-nos uns aos outros desejando o melhor para nós e para todos.

Acho que me lembrarei para o resto da vida de todas as histórias que ouvi, de todos os casos de doença, de esperança e de desesperança, que infelizmente também existia muita. Mas recordarei particularmente a situação de uma mãe que vivera a doença do filho dezoito anos antes, o acompanhara durante a recuperação de um transplante e que agora, tanto tempo depois, esperava na sala de espera a pior das notícias chegada da Unidade de Cuidados Intensivos. O filho contraíra uma bactéria que se espalhara e os médicos haviam-lhe dito, como numa série de televisão, que «agora só um milagre». A mãe, na sala de espera, nem conseguia entrar para ver o filho. Ia ao hospital acompanhada por outros familiares, como o neto, mas não conseguia atravessar o longo corredor e abeirar-se da cama onde estava o filho. Quando lhe perguntávamos como estava, dizia-nos que só queria um milagre e que custava muito. Muito, muito, muito. Chorava, dizia que era horrível e eu, a viver também momentos difíceis, mas ainda invadida pela esperança, não conseguia calçar os sapatos dela. Ficavam-me apertados: ainda não eram para mim. Desejei muito que não perdesse o filho e que o milagre acontecesse. Desejei que ela ganhasse forças para o ver. Desejei nunca viver o mesmo que ela estava a viver. Não sei que desfecho teve a sua história, embora continue a desejar que tenha surgido o tão pedido milagre. Sei apenas que, mesmo quando estamos numa situação destas na qual pensamos que todos já calçamos os sapatos dos outros, há ainda casos que nos ultrapassam e que nos mostram que, mesmo na adversidade e quando a empatia impera, há quem esteja sempre mais perto do inferno. Há sempre mais para aprender e há aprendizagens que, de facto, preferimos nunca ter de vir a fazer.

Creio que estas experiências não se esquecem e tenho a certeza de que algumas imagens, sons e cheiros me ficarão na memória. Tenho a certeza de que vivi tempos muito difíceis, mas felizmente nunca pensei que as coisas pudessem acabar mal e isso ajudou-me. Todavia, por outro lado, também me ajudou muito saber que ali à volta havia outras pessoas a saberem o que eu sentia, com experiências semelhantes e com tantas palavras simpáticas para dizer. Mesmo que as suas vozes também saíssem a custo, mesmo que também tivessem medo, mesmo que lhes fosse difícil falar. É, apesar de tudo, mais simples quando estamos todos a experimentar os sapatos uns dos outros.

Nota: A definição de «empatia» saiu daqui.

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