sábado, 11 de fevereiro de 2017

A Menina Quer Isto LXXX


Ontem li, em dois textos diferentes, rasgados elogios a este novo livro de Mário Cláudio. Ainda só está em pré-venda, pelo que o correcto seria «A menina quererá isto», mas fica a ideia. Entretanto dei um pulo à página da Wook e vi a sinopse do livro, que podem consultar aqui.

Considerando que a vida de Camões é um mistério, que são mais os buracos que encontramos na sua biografia do que os factos inequivocamente provados, é sempre possível imaginar-lhe novos rumos, ou melhor, outros rumos além daqueles que preenchem as narrativas sobre a sua vida. Camões é hoje mito nacional e a imagem do poeta de pena e espada que consegue salvar a sua obra-prima de um naufrágio é muito renascentista, mas também muito romântica. Camões tornou-se o patriótico por excelência, mesmo tendo passado uma epopeia inteira a apontar aspectos a melhorar em Portugal e nos portugueses. Muito ainda se pode escrever sobre ele, pois uma vida envolta em mistério (nem se sabe quando e onde nasceu) deixa muito, mas muito espaço à imaginação. No ano passado, julgo, a Maria João Lopo de Carvalho escreveu um romance sobre as mulheres da vida de Camões. Bom, não li e por isso não comento, mas tendo a preferir o estilo do Mário Cláudio. Contudo, não é isso que me importa. O que interessa é que aqui está mais um livro que procura inventar outros desfechos para o nosso, acho eu, maior poeta de sempre (vá, pessoanos, atirem-me com tomates!). Mas sobre Camões, o texto que ainda hoje consegue, a meu ver, evocar aquilo que foi a sua vida e a memória que haveria de ficar é o poema de Jorge de Sena intitulado «Camões dirige-se aos seus contemporâneos». Creio que é brilhante, mostra a enormidade do homem que nos deu uma epopeia e que viveu e morreu na miséria, nada apreciado pelos outros autores do seu tempo. Mesmo sendo sobejamente conhecido, deixo-vos aqui o poema que é, como tudo o que saiu da cabeça de Jorge de Sena, absolutamente certeiro e maravilhoso. É por poemas assim que adoro literatura, que adoro livros, que adoro o muito que se pode fazer com as palavras. 


Camões dirige-se aos seus contemporâneos

Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos, 
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável 
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos, 
Que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
Para passar por meu. E para os outros ladrões,
Iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.

3 comentários:

  1. Parece muito interessante. Tenho um livro de Mário Cláudio que ainda não li.
    Camões, Pessoa, temos tantos e tão bons escritores. Li Rui Nunes há 3 anos + - e perguntei-me como nunca tinha ouvido falar nele. Mesmo às traças literárias muito escapa.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não conheço esse autor, mas vou pesquisar um bocadinho.

      É verdade. Temos excelentes autores. Mas ou vamos dar sempre aos mesmos ou acabamos a preferir os estrangeiros. Ainda que considere que falta um bocadinho de humor à nossa literatura, que somos muito sérios naquilo que escrevemos, há autores contemporâneos muito bons. Se não conheces A. M. Pires Cabral corre já a uma livraria e compra o romance "O Cónego". É MARAVILHOSO! E depois compra os livros de contos dele e as suas poesias. É um autor vivíssimo e fabuloso. Tenho-o como amigo no Facebook e é uma pessoa admirável de tão simpática e simples que é. Escreve deliciosamente e nem sempre é conhecido. Uma das minhas professoras universitárias de Literatura Portuguesa nunca tinha ouvido falar nele, mesmo sendo um autor que já venceu alguns prémios literários e tudo. É muito, muito bom. Quando trabalhei numa livraria, comprei "O Cónego". Gostei tanto que rapidamente vendi os outros quatro exemplares que por lá havia. Sempre que alguém me pedia uma sugestão, pumba!: era sempre aquele livro.

      É uma agradável surpresa no meio de literatura por vezes tão pesada e tão melancólica.

      Eliminar
    2. Rui Nunes tem uma escrita muito própria, é polifónica e fragmentária. Regra geral as personagens são sombrias, solitárias e passam-nos algum desconforto. Eu gosto muito mas admito que possa não agradar a todas as pessoas.
      Já li "O cónego" e adorei! Li também "Os anjos nus" e para ler tenho "O porco de Erimanto e outras fábulas".
      Gosto mesmo muito da ruralidade descrita e das suas palavras. Só li prosa, tenho que conhecer a poesia.

      Eliminar