terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

A Menina Quer Isto LXXXV


Na actual edição da revista Ler (Inverno 2016/2017), surge um enorme texto de Timothy Garton Ash sobre privacidade e liberdade de expressão. No final do artigo, percebemos que o que ali está reproduzido corresponte ao prefácio e ao séptimo capítulo do seu novo livro intitulado Liberdade de Expressão, publicado este mês pela Temas & Debates.

O texto que surge na revista ocupa um total de vinte e oito páginas, o que parece inicialmente um exagero num periódico, tornando-se depois numa leitura inquietante e muito interessante. Obviamente, no final surge a vontade de continuar a ler mais e para isso aí está o livro, quentinho ainda. 

O texto é inquietante na medida em que aborda questões actualíssimas, muitas delas presentes de alguma forma no nosso dia-a-dia, mas nas quais tendemos a pensar pouco. As redes sociais são mesmo o aspecto mais referido pelo autor para ilustrar a perda de privacidade a que nos temos sujeitado, bem como ao mau uso da liberdade de expressão, que culmina muitas vezes num ataque e em danos à nossa reputação. Ilustrando o que vai dizendo com exemplos, uns mais conhecidos do que outros, o autor vai procurando mostrar que o mundo em que vivemos e a nossa ingenuidade conduz-nos muitas vezes a partilharmos mais do que seria vantajoso, alertando para as consequências que daí podem surgir. Cada vez mais o ser humano é penalizado em algum momento da vida por coisas ditas, feitas e publicitadas no passado. Mais: recorda-nos que tudo o que entra na internet fica lá para sempre e que a nossa reputação pode restaurar-se (ainda que em processos longos e difíceis), mas jamais a nossa privacidade. 

É, portanto, um texto que inquieta porque expõe com exemplos factuais, acontecidos num passado mais ou menos distante, o que esta cosmópolis, como lhe chama o autor, pode fazer por nós. Se por um lado nos permite a ligação a pessoas que nunca conheceríamos de outra forma, também nos expõe mais do que aquilo que sonhamos. E pior: quando pensamos que está tudo controlado, que só dizemos o que queremos, que só sabem o que queremos que saibam, estamos normalmente muito enganados. Facebook e quejandos sabem mais sobre a maioria de nós do que seria desejável. A verdade é que contribuimos e muito para que tal aconteça. Pensamos que estamos a partilhar uma coisa sem maldade alguma com os nossos amigos e acabamos a fornecer dados sobre nós à empresa e ao mundo. Acredito que se o Facebook fizesse um dossiê com as informações que recolheu sobre cada utilizador, não havia sala neste mundo capaz de albergar tamanha quantidade de informação. E nós, inocentes, lá vamos mexendo nas definições de privacidade, achando que assim nos protegemos mais. Como explica Timothy Garton Ash, somos pequenos ratos nesta luta contra grandes gatos e cães.

Foram vinte e oito páginas que se leram de uma assentada e que mostram que a liberdade de expressão colide, muitas vezes, com a nossa privacidade. Atenção que o autor não defende que se devia limitar a liberdade de expressão. No fundo o que faz é mostrar que tem de existir sensatez no que se diz e no que se faz de modo a preservar-se aquilo que de mais nosso temos: o direito à paz, a só revelarmos o que queremos, a podermos manter como privado aquilo que não desejamos dar a conhecer. O que é complicado é manter essa privacidade quando escancaramos a boca para o mundo e contamos sobre nós o que devemos e o que não devemos contar. É complicado exigir respeito pela nossa privacidade quando somos os primeiros a espalhar por aí tantos pormenores sobre as nossas vidas (mesmo que nem demos conta de que o fazemos). No fundo, falamos tanto que quando desejamos silêncio, o nosso e o dos outros, pode ser já tarde para consegui-lo. E, neste sentido, o caso dos jovens e crianças que utilizam as redes sociais também é abordado pelo autor, na medida em que as consequências para o que é dito e feito podem ser imensas. Como exemplo ilustrativo, o caso de um jovem que se suicidou quando viu tornar-se viral um vídeo seu que foi alvo de chacota pela internet fora. Como este caso, tantos outros. O facto de muitos ainda não olharem para a internet como um oceano sem fim, cheio de tubarões e onde somos apenas uns marinheiros de água doce é preocupante. Este mundo virtual não tem fronteiras e quem acha que tem está redondamente enganado. Julgamos que é algo facilmente controlável, mas frequentemente nós e os nossos dados é que estamos a ser controlados, sendo material precioso para quem deles vive. Por isso, saber o que se diz é fundamental, saber a quem se diz e como nos apresentamos também. Não é à toa que muitos blogues e páginas do Facebook funcionam sob pseudónimo. Ainda que continuemos a ser muito indefesos para lutar contra os grandes perigos deste mundo em linha, são pequenas precauções que talvez dilatem a nossa liberdade de expressão. Se vou dizer mal do meu trabalho, é bom que não saibam quem eu sou, sob pena de um dia ter uma má surpresa. Se não quero que uma parte dos meus amigos saiba que escrevo num blogue para poder ter a liberdade de dizer o que quiser, então convém tomar precauções nesse sentido. Enfim, não é fácil viver com olhos na nuca e com receio de tudo, mas é preciso ter cuidado. É preciso, sobretudo, ter a consciência de que temos de ter cuidado. A Capuchinho Vermelho, neste mundo, não sobrevivia meio minuto: o Lobo Mau nem lhe daria tempo de chegar perto da casa da Avozinha.

Por tudo isto, quero continuar a ler este livro. O tema é interessante e actual. É inquietante, mas real e os exemplos são alertas para o que a internet já conseguiu. É um facto de que nos divertimos muito com ela e que, se de repente a eliminassem da nossa vida, pareceríamos tontos sem saber muito bem como viver a partir de então. No entanto, e como em tudo na vida, o facto de ser divertido não faz significar que possa fazer-se tudo. Nem o facto de termos liberdade de expressão deve querer dizer que devemos dizer a totalidade do que nos passa pela cabeça. Há coisas que são nossas e que ficando para nós contribuem e muito para que a nossa querida privacidade se mantenha tanto quanto desejamos.

Sem comentários:

Enviar um comentário