sábado, 25 de fevereiro de 2017

A Menina Quer Isto LXXXIII



Gosto muito de ler Pirandello. É um autor capaz de tratar temas sérios e intemporais criando situações cómicas ou ridículas que nos fazem rir. Rimos, todavia acabamos por pensar no que acabámos de ler e inevitavelmente temos de reflectir sobre aquele problema que é da personagem, mas que é também de todos nós. Talvez não tão exagerado como no livro, mas muitas vezes aquilo que as personagens vivem, nós também vivemos, ainda que de forma mais saudável. Estou, por exemplo, a pensar na personagem do romance Um, Ninguém e Cem Mil: um marido que ouve a esposa dizer-lhe que tem o nariz ligeiramente torto. Esse comentário da mulher vai encher a cabeça do protagonista até à loucura, mostrando-nos pelo caminho que nunca sabemos como os outros nos vêem. Nós temos uma ideia de nós próprios, mas os outros enxergam-nos de outra maneira e nunca chegamos verdadeiramente a saber o que vêem eles afinal quando nos olham. Bom, pensando assim isto é um bocadinho inquietante, mas acho que ninguém são enlouquecerá a pensar nisto. Ninguém à excepção da personagem de Pirandello que, incapaz de conseguir digerir o comentário da esposa e os muitos pensamentos que dele derivam, entra numa espiral de acções loucas que terminam com um protagonista completamente aniquilado pelas preocupações provocadas por um nariz torto e pelo medo de não saber o que dele pensam os outros. Ou seja: Pirandello pega em aspectos muito humanos e exagera-os, expõe-nos ao ridículo de modo a que nós, depois de rirmos, também digamos «Mas espera lá: isto faz sentido e eu nunca tinha pensado nisso!».

Pirandello recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1934. É muito conhecido como dramaturgo, mas escreveu também contos e romances. Dele já li três livros e garanto-vos que todos eles são inquietantes, ainda que bastante capazes de nos arrancar uma gargalhada. Tenho por ali mais dois em lista de espera (contos e duas peças de teatro). No entanto, ontem fiquei a saber que a Cotovia publica estes pequenos volumes com algumas peças do autor (penso que há um terceiro livro da mesma colecção, mas que está esgotado). Fiquei interessada, até porque o preço é simpático. Pirandello é daqueles autores que jamais desilude, pelo que podemos comprar todos os seus livros com a certeza de que será dinheiro bem gasto. Por isso, a menina quer mais isto. Como são pequenitos, encontram bem espaço onde se enfiar e se não encontrarem, a pilha da mesa de cabeceira ainda não chegou ao tecto e poderão sempre ir para lá.

Nota: As imagens, como bem se vê, saíram da página da Wook.

2 comentários:

  1. Também gosto muito de Pirandello.
    Dos livros que já li encontro sempre a temática da identidade. Talvez se devesse ao desequilíbrio psicológico da sua mulher, não sei. E o humor também está sempre presente ao mesmo tempo que nos passa ideias importantes.
    Tenho para ler o livro de contos e "Pena de viver assim", já li "Um, ninguém e cem mil", até agora foi o que mais gostei, "O falecido Mattia Pascal" e "O turno". Nunca li as peças, já acrecentei à lista, claro.

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    1. Já leste os mesmos que eu, portanto. Tenho aqui para ler os contos e um livro que tem duas peças de teatro («Henrique IV» e «Seis Personagens em Busca do Autor»). Como ando a ver episódios passados do programa «Os Livros», da RTP 3, apanhei um dos episódios que foi sobre um desdes livrinhos da Cotovia. Investiguei mais um bocadito e percebi que havia outro. Um terceiro está esgotado.

      Adoro a escrita deste autor. É como dizes, trata muito a questão da identidade. E fá-lo sempre com algum tipo de recurso ao humor. Mas é tão eficaz que não nos perdemos no riso inconsequente. Pelo contrário: é impossível ler um livro de Pirandello e não ficar a pensar nele. Por exemplo com a questão do nariz torto do pobre homem: já tinha pensado como é que os outros me verão, mas nunca tinha pensado tanto nisso como quando li o livro. A propósito, isto lembra-me algo que o Guterres disse há algum tempo e que surge num texto da edição de Fevereiro do Courrier Internacional. Não vou citar porque não tenho a revista junto a mim, mas vou tentar parafraseá-lo. A sua ex- mulher (falecida em 1998) era psiquiatra e ensinou-lhe algo valioso que ele usa na sua vida e sempre que conversa com alguém: quando falamos com uma pessoa, há simultaneamente «seis pessoas» a participar na conversa - a que cada um acha que é; a que cada um é de verdade e a que o outro acha que nós somos. Agora acrescento: multiplica isto em proporção ao número de interlocutores que tiveres e vê o número de opiniões que são feitas sobre ti, incluindo a tua e aquela que, não sendo a tua, corresponde ao que és na realidade. É assustadoramente «pirandellesco»!

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