Eu nasci a meio da década de oitenta. Na década de noventa, quando já tinha uns oito anitos e daí em diante, comecei a ir sozinha a casa das minhas amigas que moravam aqui na zona. Encontrávamo-nos e da casa de uma íamos para a de outra e assim andávamos. Íamos juntas ao quiosque para comprar as saquetas de cromos da Barbie e depois corríamos para a casa de alguém para fazermos as necessárias trocas e colarmos tudo bem coladinho nas cadernetas. Ao fim do dia regressávamos calmamente às nossas próprias casas. No dia seguinte, escola outra vez, trabalhos de casa e nova ronda pela zona umas com as outras. Assim fomos felizes e se passaram anos, até que os cromos dessem lugar a conversas sobre rapazes e a trocas de cd’s.
Lembrei-me disto porque aqui no prédio acontece uma situação que para mim, nascida em oitenta e cinco e criada na liberdade dos anos noventa, é inconcebível. Os meus vizinhos da frente têm uma filha que deve ter uns doze anos. No mesmo prédio, mas num andar superior vive a avó materna e a miúda vai para casa dela todos os dias, jantando lá e tudo. Até aqui, tudo bem. Mas o que me causa estranheza acontece quando ela volta para casa dos pais. Ouço a porta do elevador abrir, a miúda a tocar à campainha de casa e a dizer alto para o telemóvel «Beijinhos!», tornando a repetir o mesmo quando a chave de casa dos pais começa a rodar na fechadura. Isto todas as noites. Ou seja: a miúda vem ao telemóvel com a avó (que, repito, mora no mesmo prédio, mas uns andares mais acima) e só desliga quando entra em casa.
É triste este mundo a que chegámos. Esta geração é, talvez, a que mais coisas tem ao seu dispor, mas é de todas a mais privada de liberdade. Paradoxalmente, provavelmente aos dezasseis (ou antes) andará pelas ruas do Bairro Alto ou de Santos, mas por agora até para descer uns andares tem de o fazer ao telefone com a avó para garantir que chega bem à sua casa, que fica no mesmo prédio.
Muitas vezes os meus alunos falavam comigo sobre isto: sobre a falta de liberdade que sentiam. Muitas vezes também nós, professores, concluíamos pelo comportamento à segunda-feira o grau de encerramento em casa durante o fim-de-semana. Tinham tudo: brinquedos, jogos, roupas caras, faziam viagens extraordinárias com os pais. Contudo, se lhes apetecesse comer umas bolachas, mesmo que tivessem catorze ou quinze anos, não tinham a liberdade de ir ao supermercado no fundo da rua. Sabiam que, se preciso fosse, poderiam sair à noite, pois os pais iriam levá-los e buscá-los. Mas essa coisa básica de ir para a rua, ir a pé a casa de uma amiga, isso não podiam. Só se um dos pais os pudesse levar. E eis que agora, que já nem lhes posso contar isto, me deparo com esta situação que mostra bem o medo que existe nos nossos dias e como a vida deu às nossas crianças e jovens com uma mão para facilmente lhes rapinar com a outra.
Eu aos 6 anos já ia sozinha para a escola e até lá sempre brinquei com os meus amigos na rua. A minha irmã, 8 anos mais nova do que eu, nunca foi para a escola sozinha em pequena, tinha de ser eu a ir buscá-la muitas vezes.
ResponderEliminarDepois o contrário. Aos 15 anos já saía de noite para casa de amigas. A mim só me foi permitido sair de casa à noite aos 17, para estar perto do prédio com o meu namorado da altura. Um bocado contraditório.
Com o meu filho vou ter um pouco de atenção porque noto que a maturidade não é a mesma, a localidade também não e os tempos muito menos. Mas não sou nenhuma mãe galinha nem fundamentalista, tem de se saber desenrascar sozinho.
É paradoxal, mas é exactamente como referes: em pequeninas brincávamos na rua, mas depois para nos deixarem sair à noite era um tormento. Agora, não podem fazer nada quando são mais novitos, mas aos quinze ou dezasseis dormem fora de casa. Não entendo.
EliminarSim, a maturidade é outra. Os quinze de hoje são os doze de há uns anos, mas mesmo assim esta história de descer ao telemóvel e de só desligar mesmo quando a porta é aberta faz-me muita confusão. É sobretudo muito deprimente.
É verdade, penso muitas vezes nisso. Eu cresci numa terra pequena e apesar de não ter o hábito de brincar na rua, quando andava na escola primária, ia às compras, à casa da minha avó, das amigas ou para a escola sozinha. Com 10 anos, nas férias, apanhava o autocarro e ia para Viana (a 17 km) para as aulas de Inglês porque os meus pais trabalhavam e não podiam ir levar-me - e não havia telemóveis para avisar que chegamos bem. Hoje, não só as crianças são mais dependentes até tarde, como os perigos reais estão muito mais presentes, e a maioria dos pais não é apenas "galinha", infelizmente têm mesmo com que se preocupar.
ResponderEliminarSim, têm com que preocupar-se. Mas este «galinhismo» extremo causa-me ainda mais estranheza quando penso que um enorme perigo está dentro de casa e muitas vezes sem qualquer controlo parental: a internet. Mais: o próprio paradoxo de mal poderem pôr um pé na rua para irem comprar bolachas, mas poderem sair à noite aos quinze anos (ou menos) é algo que não entendo. Então este caso da menina que só desliga o telemóvel quando os pais rodam a chave na fechadura, estando uns quatro ou cinco andares separada da avó... É perturbante.
EliminarA mim também me faz confusão. A minha experiência é muito semelhante à tua.
ResponderEliminarQuando tinha nove ou dez anos convidava para actividades alguns amigos e colegas. Desde nadarmos, a passearmos na serra de Sintra, actividades ao ar livre.
Havia mães e pais que se recusavam deixá-las ir. Porque passear numa serra é para homens (não para meninas) e porque as meninas não deviam ser vistas de fato de banho pelos meninos.
Agora repara, os passeios eram com os meus pais, o convite para nadar era na casa dos meus pais e com eles presentes.
Algumas delas, soube mais tarde que engravidaram aos 15 anos, outras juntaram-se com homens quase idosos de má índole.
Não consigo entender este resguardo todo para depois os largarem como adultos que não são.
Será que o que fizeram não se deveu ao cárcere em que viviam?
Esse exemplo da neta e da avó é doentio.
Sabes que muitas vezes quanto mais proteges, mais tornas tudo mais apetecível. Nesses casos em particular de que falas, é isso que me parece. Há uma frase que tenho sempre em consideração e que esses pais também deviam ter tido em conta: «O que eu temo eu crio.». Muitas vezes, tanto tentam evitar aquilo que temem que acabam a conduzir para lá os acontecimentos.
EliminarMas aquilo de que falo nem é de saídas para Sintra ou de férias com amigos. É tão mais pequeno que se revela tanto mais assustador! Já viste o que é desceres de elevador com a tua avó pendurada num ouvido quando acabaste de sair de ao pé dela? A miúda até podia dar um berro no nosso patamar que a avó ouviria lá em cima. É assustador este nível de medo. Imagina a preocupação que esta gente sente ao ponto de agir assim? Nem consigo imaginar tal coisa.