domingo, 19 de fevereiro de 2017

A História de um Rapaz Mau - o balanço


Terminei a leitura de A História de um Rapaz Mau há alguns minutos, por isso o balanço que faço é mesmo fresquinho.

Este livro, publicado pela Tinta da China, é, antes de mais, uma delícia no que à edição diz respeito. Aliás, esta editora é bem conhecida pelos belos volumes que publica e aqui está mais um exemplo. É um livro de pequenas dimensões, de capa dura e com um reforço vermelho na lombada. O tipo de letra usado, as margens e a inclusão de ilustrações de um contemporâneo do autor dotam a leitura de maior conforto, pois aqui e ali descansamos ao apreciar os desenhos que ilustram certas personagens ou momentos da acção.

Agora, relativamente ao conteúdo: desenganem-se os que iniciam a leitura à espera de encontrar um Tom Sawyer porque terão uma desilusão. O facto de a contracapa avisar que este livro terá servido de inspiração para uma das mais famosas personagens da literatura americana pode conduzir ao erro. Eu já sabia que não iria encontrar algo parecido ao que descobri nos livros de Mark Twain porque há uns anos a minha mãe leu este livro e experimentou a tal desilusão que acabei de mencionar-vos. Portanto, eu sabia ao que ia e foi com essa preparação que comecei a ler.

Este rapaz não é verdadeiramente mau. Pelo que percebi, o título vem do facto de o protagonista estar longe de ser o anjinho que apareceria noutras obras literárias. É um rapaz normalíssimo que vai à escola, que tem amigos e inimigos, que entra em brigas, que se apaixona, que participa em partidas várias, que sofre desilusões, que se diverte e que pensa sobre as coisas que acontecem à sua volta. Os disparates que ele faz recordam os que nós fazíamos em miúdos precisamente porque são disparates possíveis, não são completas aventuras impossíveis de acontecer. Aliás, o livro tem o seu quê de autobiográfico, portanto a infância e adolescência do autor estão muito espelhadas aqui. Deste modo, é um livro que se lê com um enorme prazer, porque ali tudo é possível, porque por muito caricata que seja a situação, nós podemos ter passado por coisas parecidas. Note-se, apesar de tudo, que falamos de um jovem na Nova Inglaterra da segunda metade do século XIX, e portanto considerem-se as devidas distâncias. Todavia, o que quero dizer-vos é mesmo que enquanto no Tom Sawyer nos deliciamos com as enormes alhadas em que o protagonista se mete, aqui deliciamo-nos também, mas de outra forma. Aqui há um grupo de crianças que vive a infância e que faz um ou outro disparate tão pouco grave que inevitavelmente pensamos «Mas isto não é um rapaz mau!». A ajudar, o modo irónico como o narrador adulto descreve as situações confere-lhes muita graça, por simples que elas sejam. Ou seja: não convém estar a comparar este livro com o de Mark Twain porque vamos estar a perder a oportunidade de ler uma história bem contada e divertida. Se este este livro fala de um rapaz «mau», é por oposição a outros, do género Eusebiozinho n’Os Maias, que nada faziam e que se limitavam a «estar».

Ao ler este livro, e fi-lo em praticamente dois dias, a sensação que tive sempre foi a de verosimilhança. Isto porque os episódios narrados têm muito de plausibilidade, como já vos disse. Além disso, embora o livro seja narrado por um adulto, a graça com que conta certas situações, as comparações que lhe ocorrem, as relações que estabelece entre o que sucedia à criança e o que sucedeu a personagens literárias nos livros em que vivem enriquecem o texto. É como se fosse a voz de um adulto que mantém toda a graça e simplicidade de uma criança, que ainda consegue saber como pensam as crianças. Mas é sobretudo a voz de quem olha para trás e vê com muito carinho as peripécias vividas num outro tempo. 

Se tudo o que disse antes não chegar para vos levar a ler este livro, espero que o maravilhoso e engraçado excerto que aqui vos deixo seja capaz de convencer-vos. Este pedacinho do texto aparece num momento em que o protagonista, sofrendo um desgosto de amor que resolveu tornar maior do que aquilo que era na realidade, se refugia num cemitério para reflectir nesta sua desilusão. Ao observar as lápides, verifica que muitas têm gravados anjos de carinha redonda e com umas asas abertas que parecem partir da zona das orelhas (lembrem-se dos enfeites natalícios porque há muitos com anjinhos nesse estado). Ora, diz-nos sobre isto o narrador:

«Aqueles emblemas mortuários davam alimento adequado à minha meditação. Costumava deitar-me na erva alta, congeminando sobre as vantagens e desvantagens de se ser anjo.

Esqueci-me do que pensava serem as vantagens, mas lembro-me muito bem de ter ficado num inextricável labirinto a respeito de dois problemas, a saber: como podia um anjo, sendo ele constituído apenas por uma cabeça e duas asas, sentar-se quando estava cansado? Ter de sentar-se na parte de trás da cabeça parecia-me ser uma incómoda solução. Mais: onde guardariam os anjos os indispensáveis artigos (tais como canivetes, berlindes e bocados de guita) que os rapazes, no seu estado terreno de existência, costumam trazer nos bolsos das calças?

Eram intrincadas perguntas, às quais nunca consegui dar respostas satisfatórias.»

in A História de um Rapaz Mau
de Thomas Bailey Aldrich
Tinta da China
293 páginas

Nota: Se o resto não vos convenceu, talvez esta última informação vos convença: este livro custa normalmente 17.97€, mas está a 12.58€ na página da editora, aqui

2 comentários:

  1. Estou convencidíssma. Obrigada :)
    Tão bom quando os adultos não se esqueceram do que é ser-se criança.

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    1. É uma leitura simpática. O livro lê-se mesmo muito bem. Só não se pode mesmo esperar um Tom Sawyer porque este livro é outra coisa. Boa leitura! :)

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