quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Peculiaridades de um leitor III

No mundo há dois tipos de leitor: os que fazem o culto do livro e os que o vêem como um objecto que se usa e que enquanto é usado é para ser vivido e não adorado. A coisa ilustra-se mais ou menos assim: os primeiros são os que têm capas para pôr o livro que andam a ler, que marcam a página com marcadores, que o guardam muito bem para que, Deus nos livre!, alguma coisa lhe aconteça e o deixe definitiva e tragicamente marcado; os segundos são os que fazem «orelhas de cão» (nome dado às dobras feitas no canto superior para marcar a página em que vamos) nas páginas, os que não têm problemas em sublinhar, tomar notas, que enfiam o livro que andam a ler dentro de sacos e malas cheias de tralha, sem capas, sem nada.

Durante muito tempo achei que este segundo modo de agir com os livros é próprio de quem não os adora. Agora já acho que não é bem assim. Há muitas maneiras de gostar de um objecto. Há quem prefira viver quase da contemplação do mesmo e há quem, pelo contrário, queira experienciá-lo, vivê-lo. Para uns as marcas na capa ou nas páginas são motivo para uma apoplexia, para os outros são marcas de guerra que mostram que aquele volume não viveu apenas trancado na biblioteca: saiu, apanhou ar e exibe gloriosamente as suas cicatrizes. Podemos censurar uns ou outros? Acho que não. A relação com os livros é muitíssimo pessoal. Creio até que não haverá duas relações iguais porque, cá está, essa relação constitui uma das peculiaridades de cada pessoa enquanto leitor. E mesmo o mais cuidadoso dos leitores, como eu, tem um ou outro volume na biblioteca que foi manuseado mais vezes, lido com mais paixão e que exibe algumas marcas dessas leituras. Muitas vezes, mesmo esse leitor cuidadoso exibe esse volume com orgulho, mostrando que se ele está assim é porque foi o seu fiel companheiro de uma determinada viagem, ou porque esteve consigo muitas vezes ao longo da vida... E também os que fazem «orelhas de cão» nos livros podem ter um ou outro volume que estimem com particular cuidado, ou porque foi oferecido por alguém especial, ou porque é antigo, ou porque foi muito caro, ou porque é uma edição rara... 

Enfim, há dois tipos de leitores, mas acredito que todos nós conseguimos ser um bocadinho de um e bocadinho do outro, dependendo do livro em questão e das circunstâncias em que nos encontramos. Eu pendo mais para os extremamente cuidadosos. Quero os livros imaculados. Mas depois também não deixo de achar uma certa graça quando a lombada começa a ficar quebrada em virtude de ter aberto o livro tantas e tantas vezes. Essas marcas provam que ele me passou verdadeiramente pelas mãos, que «foi» e que não se limitou a «estar». E isto leva-me a crer que nós, os leitores, somos uns seres muitíssimo complexos e que a relação entre as pessoas e os seus livros é muito maior do que aquilo que num primeiro momento poderíamos julgar.

3 comentários:

  1. Eu sou um misto dos dois: não uso protecções exteriores, andam na mala, mas por dentro têm de estar o máximo impecáveis possível.

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    1. Eu tenho dias de tudo. Ora bem que ponho uma capa de pano catita que comprei numa feira de artesanato, ora bem que o enfio na mala e seja o que Deus quiser. Mas geralmente sou a pessoa mais cuidadosa que existe com os livros. Gosto que estejam impecáveis. Às vezes penso que este cuidado todo até nos impede de os desfrutarmos ainda mais. Mas, por outro lado, pode ser um sinal de respeito e de amor aos livros.

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  2. Não uso capas. Uso marcador, sempre. O mesmo há mais de 10 anos, lindo, da ilustradora Ana Ventura.
    Não consigo sublinhar e muito menos fazer orelhas de cão. Escrevo as frases de que gosto num caderno. Só escrevo o meu nome e, quando são comprados fora de Portugal, em viagens, a data e a cidade em que foram comprados.
    Mas tenho livros antigos comprados em alfarrabistas (a extinta Fyodor!)quase a cair aos pedaços.
    Tenho muito cuidado e tenho-os em excelente estado. Também me acontece maltratá-los sem querer na mala.
    Entendo quem rabisque. São opções e cada um faz à sua maneira. Tal como para mim é importante mantê-los praticamente novos há quem os prefira mais "respiráveis".

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