terça-feira, 4 de setembro de 2012

Caim: o balanço

Acabei hoje de ler o Caim, do José Saramago. Não foi, de forma alguma, o livro deste autor de que mais gostei (continua a ser o Todos os Nomes). Contudo, gostei de o ler. É bastante óbvio o que Saramago pretendeu fazer com este livro: colocar à vista de quem o lê uma profunda injustiça e arbitrariedade nas supostas acções do «senhor*» do Antigo Testamento. Fazendo Caim saltar de cenário bíblico em cenário bíblico, somos confrontados com um outro modo de contar histórias tão conhecidas como o sacrifício que «deus*» exigiu a Abrãao (para quem não se recorda, mandou-o sacrificar o filho para provar a sua fé), a destruição de Sodoma, o drama de Job, a torre de babel e o dilúvio. Em todas elas percebemos, porque Saramago constrói a narrativa de modo a isso fique evidente, que a suposta entidade divina age de modo injusto e com pouca bondade. Eu, que até conhecia esses episódios bíblicos, nunca tinha verdadeiramente olhado para as coisas por esse prisma, porém Saramago constrói a narrativa de modo a que seja impossível não perceber aquilo que quer transmitir: aquele «deus» é mau, é rancoroso, é vingativo, é egocêntrico (tanto quanto uma entidade divina o possa ser, não sei...) e é, no fim de contas, tão culpado pelo mal como os homens que tanto condena.
 
Este livro, quando foi publicado, causou grande polémica, como todos sabemos. Realmente, ao lê-lo, percebi que existem lá algumas frases capazes de ofender aqueles que acreditam em Deus e que não toleram que alguém profira palavras mais ofensivas sobre Ele. Contudo, e tal como para a maioria dos livros, é preciso que exista espírito crítico. Eu sou católica, andei na catequese uma série de anos (por fim já só andava porque a minha mãe fazia questão) e passei por todos os sacramentos até ao crisma, mas não deixo de ter espírito crítico e de não entender como lindas e perfeitas todas as histórias que encontramos no Antigo Testamento. Por isso, embora até compreenda que muitas pessoas não tenham visto com bons olhos este romance do nosso Nobel, custa-me a crer que haja criado tamanha confusão. O espírito crítico e o distanciamento é necessário para qualquer leitura, sob pena de andarmos sempre ofendidos com o que se escreve ou de acreditarmos em tudo sem pormos nada em causa. Neste livro, essa capacidade crítica é necessária de modo a percebermos a mensagem que o autor procurou passar. Seguir uma religião até pode ser bonito e reconfortante, mas não devemos ficar cegos com ela ou com as histórias que ela nos apresenta. Li o Caim, gostei, e continuo a ser católica. Não passei a achar o Saramago a pior das pessoas, bem longe disso: cada vez me convenço mais de que era um génio.
 
 

5 comentários:

  1. Saramago faz parte das minhas raízes, lembro-me que as primeiras leituras, com 18 ou 19 anos, foram pequenas vitórias e a partir daí fui tentando acompanhar o que ia saindo, faltando-me sobretudo ler os livros mais antigos. Este "Caim" é possivelmente dos que menos gostei, a tocar o mesmo assunto prefiro "O Evangelho segundo Jesus Cristo" que foi o início de uma contestação a um grande escritor que me parece um disparate. Afinal, estamos a falar de literatura. Para além da escrita muito própria, sempre admirei a capacidade que este Nosso Grande Escritor teve de dotar as suas personagens de uma profunda humanidade, os não-heróis, os seres de carne e osso capazes de grandes feitos. Ainda hoje guardo com grande carinho a memória d "O Ano da Morte de Ricardo Reis"; "O Ensaio sobre a Cegueira", "Memorial do Convento"-acho-os do melhor que li, mas ainda me falta tanto:P
    Estava aqui a lembrar-me da dupla sensação que "Caim" me proporcionou- achei que voltar a este tema não era de todo necessário, para ateu Saramago parecia que estava irritado com Deus. Por outro lado, na apresentação do livro, Saramago já não era só o escritor fabuloso, era também um homem já debilitado, que nos contava que tinha a carapaça dura, por mais que o atingissem, nunca foi um autor reconhecido pelas elites sendo umas quantas vezes gozado, denegrido, mas o seu espírito superou cada obstáculo e acho que é disso que literatura também é feita, de superação- talvez sabendo que o fim estava próximo até que ponto retornar a este assunto não fosse também expor uma situação pela qual já tinha passado:)

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    1. Em miúda eu fui uma das preconceituosas que achava, "idiotamente", que o Saramago não sabia escrever. Um dia, já na faculdade, lembrei-me de experimentar ler o "Memorial do Convento" e fiquei espantada com a maravilha que tinha descoberto. A tão falada escrita saramaguiana não me aborreceu nem um pouco e adorei tudo naquele livro. Imagine o prazer que é hoje leccionar aquele livro ao 12.º ano... Depois, porque o título me atraía, passei ao "Todos os Nomes" e fiquei rendida. Foi, até hoje, o romance de Saramago de que mais gostei. Aquele Sr. José e a sua busca por alguém que até desejava ser buscada é tão humana e tão sincera que é difícil não nos rendermos à mestria do autor.

      A partir disso não descansei enquanto não comprei toda a sua obra. Tenho tudo, tudo, tudo. Não contente, comprei todos os jornais e revistas que sobre ele saíram quando morreu. Fui aplaudi-lo à C. M. de Lisboa, onde esteve em câmara-ardente e de onde partiu o seu caixão. Troquei algumas palavras com ele nas Feiras do Livro, consegui alguns exemplares autografados e, no dia em que morreu, vivi uma experiência estranhíssima ao deparar-me com um "duplo" dele (a história anda por aí numa quixotada de cujo nome não me consigo lembrar...). Enfim: transformei Saramago no meu autor português favorito. Encontrava nele muitas características minhas e nunca tive dificuldade em perceber os seus objectivos e as suas palavras. Coincidentemente até nascemos os dois a 16 de Novembro!

      Dele já li, para além dos dois que referi, "História do Cerco de Lisboa", "A Caverna", "Terra do Pecado", "Levantado do Chão", "Caim", "As Pequenas Memórias", "A Viagem do Elefante", "Conto da Ilha Desconhecida", "A Maior Flor do Mundo", "Caderno de Lanzarote I, II e III». Comecei a ler o "Ensaio sobre a Lucidez", mas acabei por pousá-lo por falta de tempo. O "Caim" não foi, de modo algum, o meu favorito. Tal como diz, parece que há ali uma grande revolta e por vezes isso tornou-se um pouco repetitivo. Contudo, percebo o seu objectivo e em termos de construção o texto está realmente muito bom. Não é o melhor de Saramago, mas é, ainda assim, uma boa leitura.

      Para mim, digam os Velhos do Restelo o que quiserem, Saramago era um génio e um profundo conhecedor do ser humano. Foi alguém capaz de se fazer a si mesmo, do nada, e de chegar onde muitos só podem sonhar. Foi, realmente, um escritor e um homem admirável. Acho que se percebe que gosto muito dele, não?

      Sabendo os livros dele que já li, qual me aconselha de seguida? As peças de teatro têm andado a sorrir-me, mas não sei... Já leu o "Manual de Pintura e Caligrafia"?

      E agora calo-me senão valia mais transformar esta resposta numa quixotada, dado o seu tamanho descomunal. :)

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  2. Antes de mais peço desculpa pela extensão do meu comentário, não me apercebi que me estava a esticar tanto.
    Quando digo que me falta ler a obra mais para trás (que disparate) fui ver e li entre 10 a 15 livros, falta-me portanto muita coisa. Ando a ler Saramago há 8ou 9anos, aos poucos porque preciso de saborear, se é tudo de uma vez "perco-lhe o gosto" (parvoices)
    Não li "Manual de Pintura e Caligrafia", eu gostei muito d' "O Ano da Morte de Ricardo Reis", mas também não li o "Levantado do Chão" e o "Clarabóia" é possivelmente o próximo romance de Saramago a ler (neste momento ando a ler o "Cadernos de Lanzarote-I".
    Saramago é daqueles autores que acompanham uma vida- é para ir lendo:)
    E lá me estou a alongar outra vez (não me pode puxar pelas minhas fraquezas:))

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    1. Comente à vontade que o espaço está cá para isso. :) Quando o Saramago estava vivo eu lia um romance dele por ano e às vezes nem isso. Porém dizia que adorava e que queria ler tudo. Mais do que uma vez perguntaram-me por que razão não lia mais livros dele, já que gostava tanto. Respondia sempre que ele já estava velhinho e que já não deveria escrever muito mais, por isso queria ler a obra dele devagarinho, para render mais ( ! ). Ora, como vê percebo bem isso de saborear estes livros: ando há anos a fazer o mesmo. :)

      Gostei bastante de ler "Os Cadernos de Lanzarote", em especial os dois primeiros. Tem-se uma outra perspectiva do autor. É verdade que se nota ali uma grande massagem ao ego, mas vá lá: uma pessoa como ele tem direito a isso.

      Esqueci-me de dizer que também li "O Homem Duplicado" (o tal livro que fez o encontro estranho no dia da morte de Saramago parecer ainda mais surreal). Esse livro tem umas últimas páginas impossíveis de largar.

      Curiosamente, não consigo ler o "rival", Lobo Antunes. Consegui ler o primeiro livro de crónicas e o seu primeiro romance ("Memória de Elefante"). Tentei o "Eu Hei-de Amar Uma Pedra" (porque achava e acho o título lindo), mas nem cheguei às quarenta páginas. Não consegui mesmo... :S

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  3. De Lobo Antunes li os 2 primeiros e algumas crónicas. Quando li "Os Cus de Judas" rendi-me, gostei imenso, senti-me perante beleza pura. Por essa altura lembro-me de ter colocado na carteira, para ler durante as deslocações diárias, um dos livros mais recentes (péssima ideia) e a coisa não resultou. Ao expor esta minha frustração disseram-me que a partir, acho que, da "A Ordem Natural das Coisas" a escrita de ALA sofreu grande alteração. Então ando com ideia de ler tudo seguido (o problema é que uma grande parte das minhas leituras é feita durante as deslocações, há quem o consiga, mas eu tenho limitações).:)

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