segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Um bicho em extinção

É paradoxal: em Portugal a população é cada vez mais qualificada, porém cada vez menos pessoas são capazes de escrever um texto em Português sem dar erros de algum tipo. É coisa que começa a fazer-me confusão. Quanto mais estudamos, pior se está a tornar o nosso domínio de uma língua que devíamos amar e dominar na perfeição. São erros que ferem a vista, que chocam a alma, que colocam questões assustadoras com respostas ainda mais terríveis. Quando não conseguimos sequer dominar a nossa língua materna ao ponto de sermos capazes de escrever um texto sem erros, que saberemos nós? Independentemente da área profissional em que nos movamos, saber falar, saber escrever, saber fazer um uso correcto das palavras é essencial e devia ser condição sine qua non para tudo o que viéssemos a fazer neste país. Devia mesmo ser proibido o final do percurso escolar sem que o aluno soubesse produzir um texto sem falhas sintácticas, sem erros ortográficos, sem problemas na acentuação. Porém, tal não acontece e todos os anos saem dos ensinos básico, secundário e superior muitos alunos incapazes de escrever correctamente (já para não mencionar o facto de serem incapazes de falarem com correcção).
 
Seria admissível se estes fossem uma minoria, mas não são. Atrevo-me a dizer que são, sim, a maioria. Faz-se uma voltinha pela internet e vêem-se textos e textos e mais textos em que encontramos, quanto ao conteúdo, muita parra e pouca uva. Quanto à forma erros sobre erros: preposições misteriosamente desaparecidas, acentos gráficos omitidos, clíticos mal colocados, duplos «s» e cês cedilhados trocados. Encontramos estrangeirismos sem aspas ou itálico, citações por assinalar (o que, não raras vezes, roça o plágio), vírgulas desaparecidas ou, por outro lado, numa fartura assustadoramente aleatória. No fim, por vezes, um pedido de desculpa do tipo «perdoem os erros, mas não tive tempo de corrigir», manifestando uma profunda falta de brio e de preocupação com um uso correcto das palavras. Assiste-se a um enorme desrespeito pela nossa gramática e a uma desdramatização do problema: «não corrigi o que escrevi e publico com erros, mas não faz mal porque é perceptível». A questão é que passar a mensagem não chega. O nosso namorado pode dizer que nos ama enquanto está sentado na sanita: isso satisfaz-nos? Não: a mensagem passa, é verdade, porém o modo como como ela é transmitida retira-lhe muito do que poderia ser. Provavelmente ninguém levaria a sério as palavras do namorado numa situação tão pouco romântica como a que evoquei. No entanto muitos seriam os que, perante um texto profundamente mal escrito, prefeririam ocupar-se apenas da mensagem, ignorando a sua forma.
 
Vivemos numa época em que abrir um blogue e publicar para o mundo é fácil. Toda a gente pode, hoje, fazer uma espécie de diário online onde fala do que apetece: moda, desporto, a vida privada, a vida profissional, os livros favoritos, os filmes de uma vida, a música que se ouve, tudo. Mas são tantos os blogues onde proliferam orgulhosamente erros que além do primeiro ciclo do Ensino Básico deixam de fazer sentido. Escrever não pode ser despejar apenas, no papel ou no ecrã, uma sequência de palavras que se espera que seja compreendida. Não: escrever obedece a regras que devem ser seguidas e respeitadas. Somos todos tão expeditos a encontrar gralhas nos rodapés dos telejornais e depois preocupamo-nos tão pouco com o uso diferenciado de maiúsculas e minúsculas ou com as regras de pontuação. Assusta-me pensar que um bom domínio da língua portuguesa, da nossa língua, será, daqui a alguns anos, capacidade reservada a uns poucos. Tremo só de imaginar que esta lógica do «escrevi à pressa, mas que se lixe: vocês percebem o que quero dizer» não morra e tenha, até, longa vida.
 
Escrever é um processo complexo. Importa planificar, realizar e rever. E isto, minha gente, não é mariquice de uma professora de Português que voltou agora a fazer ditados porque conclui que os meninos não sabem escrever sem dar erros. Isto é preocupação séria e já uma boa dose de revolta pela leviandade com que a língua é tratada. É já uma certa raiva pela constante omisão da preposição «de» em expressões como «ela tem o desejo de que tudo corra bem»; ou pelo aparecimento de vírgulas a separar o sujeito do predicado; ou, ainda, pela inexistência da básica divisão do texto em parágrafos, sendo estes tão essenciais quanto as vírgulas e os pontos finais. Muitos são os que enchem a boca para criticar quem escreve de forma diferente da canónica, como Saramago, esquecendo que o autor o fazia seguindo uma lógica que fazia, efectivamente, sentido. Muitos dos que criticam a escrita saramaguiana esquecem, depois, que o sujeito deve concordar com o predicado, que não podemos escrever «é vários dias» ou que é errado dizer «este problema é derivado ao...» porque derivar, deriva o leite da vaca.
 
São tantos os exemplos e tantos os nervos que isto me dá que passaria a noite numa quixotada infinita sobre o ataque constante que é feito à língua portuguesa. Se um jornalista se engana, toda a gente que ouve passa automaticamente a ser um Camões pronto a chamar energúmeno ao dito. Mas se for esse «pseudo-Camões» o detentor de um blogue alegadamente escrito à pressa e sem tempo para revisão, aí já há desculpa, já não há dedos para apontar. Do modo como isto anda, talvez haja, sim, palmadinhas nas costas e um «deixa lá: nós percebemos na mesma». Não pode ser. Não podemos exigir que miúdos de dez anos escrevam sem erros, não podemos pedir a meninos de quinze que saibam produzir textos exemplares se nós, adultos, arranjamos desculpas que perdõem erros imperdoáveis e facilmente evitáveis. Não podemos rir com os disparates que os meninos escrevem quando nem nos esforçamos por evitar os nossos próprios disparates.
 
Todos nós aprendemos a escrever. Uns vêm a ter mais talento do que outros: isso é óbvio. Contudo, o esforço para melhorar essa capacidade que, muitas vezes, usamos diariamente devia ser de todos. Saber escrever é hoje uma aptidão desvalorizada. É actividade executada em cima do joelho, sem esmero nem brio. Escreve-se porque sim, porque todos aprendemos a fazê-lo nos bancos da escola. As regras ficam lá para a professora, uma vez que fora do recinto escolar e do percurso académico a vida é diferente, mais rápida e sem espaço para figuras de estilo ou para correcções. Errado. A professora fica com as regras, sim, depois de as ter partilhado com os alunos que virão a ser homens e mulheres de muitas profissões diferentes, possíveis autores de livros e de blogues. Porém a vida não deixará de conter muitas palavras a pedir papel, caneta e cuidado. A ele chegam cada vez menos e a mensagem, minha gente, já não passa.

Sem comentários:

Enviar um comentário